A voz do silêncio escrita por Juh Viana


Capítulo 4
Capitulo 4


Notas iniciais do capítulo

Apesar de ser uma historia fictícia alguns elementos do texto são reais.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/524934/chapter/4

Santa Maria das Graças está escrito no letreiro do hospital. Minha mãe segura minha mão para atravessarmos a rua, como se isso fosse realmente necessário. Puxo minha mão e digo:

– Eu sei atravessar!

Percebo o quanto ela está nervosa. Suas mãos estão geladas e ela fica agarrando o braço do meu pai o tempo todo. Sei o quanto o Implante é importante para ela, o quanto ela lutou por isso a vida toda. O implante* parece mais uma conquista dela do que minha. Meu pai diferentemente consegue aceitar o fato de eu não poder ouvir.

Sentamos-nos em cadeiras de espera desconfortáveis, o que deixa minha mãe mais nervosa, porque a cada segundo ela se levanta para beber água, se alongar, ou ir ver o que tem no lado de fora da janela.

Isso pode parecer loucura, mas não sei se realmente quero ouvir. Tenho medo de não me adaptar, ou pior de mudar o que sou. Já conheci uma surda que fez o IC e mudou completamente, hoje ela nem se quer fala com surdos. Eu preso muito minha personalidade, e não quero mudar isso nunca. É como se fosse um refúgio que eu lutei por toda minha vida para construir, sem ele não sei quem sou.

Alguns minutos depois o médico chama meu nome. Entramos na mesma sala branca e triste do meu exame passado. O nome do médico está escrito em seu jaleco, me aproximo para poder ler. Dr. Vinicius Pedroso.

– Bom dia - diz ele.

– Bom dia - digo desconfiada daquele sorriso falso, nunca confiei muito nas pessoas.

– Bom dia - diz meu pai.

– Bom dia - diz minha mãe- então os resultados dos exames?

– Estão aqui - diz o Doutor entregando varias folhas para minha mãe.

Minha mãe franze as sobrancelhas ao ler cada palavra daquele papel. Meu pai encosta- se em seu ombro para ler também. Finalmente minha mãe levanta os olhos confusos e nem um pouco feliz.

– O que significa isso?

O Doutor respira fundo antes de responder e morde os lábios como se estivesse escolhendo as palavras que vai dizer. Começo a pensar que não fui aprovada para o IC, talvez minha mãe esteja pensando isso, pois agora seus olhos brilham, ao segurar a tristeza que quer sair.

O Doutor se vira para mim e diz:

– Desculpa, preciso dizer isso em português.

Fico com vontade de reclamar, mas simplesmente não consigo com minha mãe me olhando desse jeito.

– Vamos ser curtos e diretos- diz o Doutor- sua filha não foi aprovada para o Implante Coclear Baha, como já deve saber Laila tem malformações cocleares*, o que a impede de receber os benefícios do Baha. Sinto muito.

Minha mãe parece paralisada. Ela nem se quer olha para mim, apenas fica com um olhar vidrado para a escultura de ouvido. De repente ela começa a chorar como uma criança quando recebe não dos pais. Meu pai passa a mão em seus cabelos com a esperança de consolá-la, mas não adianta ela o empurra e se levanta. Começa a gritar coisas para o Doutor. Nunca vi minha mãe assim antes!

–Acalme- se, por favor, fizemos tudo que podíamos - diz o Doutor paciente e calmo, como se isso já tivesse acontecido milhões de vezes.

– Não! Não! Não! Vocês precisam achar um jeito, ela precisa ouvir - grita minha mãe batendo na mesa.

– Acalme-se.

– Não! - diz ela derrubando a escultura de ouvido no chão.

Eu fico assustada e começo a chorar. Queria poder gritar para ela poder parar, mas não posso. Meu pai tenta imobilizá-la, mas ela resiste. O Doutor acena para uma enfermeira jovem de pele morena. Ela pega uma seringa e injeta no braço de minha mãe.

– Não! Não, não... - suspira minha mãe chorando enquanto cai no chão.

Não consigo decifrar o que sinto agora.

Meu pai me olha com uma expressão cansada. Eu estou derramando em lágrimas. Estou com raiva. Com raiva do médico por ter falado em português e não em língua de sinais, com raiva da minha mãe, com raiva da enfermeira que a dopou, com raiva por meu pai não ter surtado com minha mãe, com raiva de mim por existir!

Meu pai fica do meu lado e passa a mão em meu cabelo. Fico com raiva desse toque que soa como "vai ficar tudo bem". Eu sei que não vai. Afasto sua mão e saio correndo para longe desse pesadelo.

••••

Fico repassando na minha mente o que aconteceu, e não consigo parar. Minha mãe não fala comigo desde que apagou. Tento me concentrar no céu azul sereno, nas aves voando, nas crianças que brincam na rua, no lodo que corroí o telhado que estou sentada, mas tudo que vejo me faz sentir- me pior. Talvez eu não devesse existir assim minha mãe seria mais feliz e menos preocupada.

Larissa disse que é normal, que pessoas surtam o tempo todo. Mas não minha mãe. Ela não é assim. Ela tem autocontrole.

Algo pequeno e sólido bate na minha panturrilha. Pego e vejo que é uma pedra. Olho para cima e não vejo nada, então olho para baixo e vejo minha mãe com o rosto inchado acenando para eu descer. Com certeza para se desculpar.

– Vou pela escada ao lado - digo.

– Não... - Ousa dizer algo, mas desiste. Então acena para eu descer.

Ando em pé pelo telhado com maior habilidade já que fiz isso várias vezes. Coloco meus pés na escada que é acoplada na parede. Desço degrau por degrau, madeira por madeira, até chegar no chão. Sinto a grama úmida para então me dar conta de que estou descalça.

Minha mãe dá um sorriso sem graça. Ela me convida para sentar nas cadeiras brancas as quais costuma tomar banho de sol. Respira fundo e começa:

– Desculpe por hoje. Estava tão ansiosa com o IC que nem pensei na possibilidade de você não ser aprovada.

– Tudo bem.

– Eu não tenho sido uma ótima mãe ultimamente. Exijo muito de você.

– Não mãe, está tudo bem.

– Não, não está - ela segura as lagrimas - sempre ajudei as pessoas a superar seus traumas, mas nunca consegui superar meu próprio. Depois que tive Nícolas, meu sonho era ter uma menina. Ficava imaginando as coisas que faríamos juntas, como fazer compras, cozinhar, pintar unha, cantar como loucas. Coisas de mulher. Então quando soube que você era surda achei que nunca faríamos essas coisas, e isso foi um choque para mim. Prometi a mim mesma que lutaria até fim para você ouvir.

– Mas podemos fazer essas coisas mãe, só não cantar como loucas - digo, e rimos um pouco.

– Me desculpe por não ter conseguido - Diz ela não podendo mais conter as lágrimas.

– Não precisa se desculpar, você já lutou até o fim. Obrigada. - digo com lágrimas nos olhos.

Abraçamos-nos, o que faz a dor sumir do meu peito. Não queria que ela pagasse três mil num simples implante. Queria simplesmente que ela me desse 3 mil em abraços. É só o que preciso. Isso me lembra um texto que diz "O amor suporta todas as coisas, acredita em todas as coisas, espera todas as coisas, persevera todas as coisas". Amor. A única coisa que pode superar todas as barreiras, até as da comunicação.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

*O implante coclear é um dispositivo eletrônico de alta tecnologia, também conhecido como ouvido biônico.
*A cóclea é a porção do ouvido interno dos mamíferos onde se encontra o órgão de Corti, que contém os terminais nervosos responsáveis pela audição.



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "A voz do silêncio" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.