Designium escrita por Caio Historinha


Capítulo 7
Lionel II


Notas iniciais do capítulo

Capítulo escrito por Caio Tavares



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Ele se levantou do seu colchão de plumas, lavou o rosto, pôs os óculos e vestiu um roupão azul-marinho de seda chinesa. A luz do sol entrava pelas frestas na cortina bege ao lado direito da cama, um despertador natural para ele, mas não para Emmet. Fechou melhor a cortina e andou silenciosamente até a sala.

Todas as paredes do apartamento de Lionel eram pintadas de bege-claro, e todos os móveis eram do mesmo tom marrom-avermelhado. Na sala de estar havia um belíssimo piado de cauda – o último presente que seu pai lhe dera antes de morrer. Era belíssimo, esculpida em uma única peça mogno da mesma cor que todos os seus móveis e ficava sobre um patamar elevado, para que ele não precisasse se encurvar. Havia uma caixa de charutos de prata em cima dele, e Lionel pegou um e acendeu com seu isqueiro prateado da Segunda Guerra.

Era quase um ritual. O sabor de menta do charuto ajudava afastar o gosto que Emmet, que ainda estava impregnado em sua boca. Sentou-se no banco e começou a tocar “Yesterday”, em homenagem a Paul McCartney, que se encontrava hospitalizado e à beira da morte. Espero que melhore, meu velho. Lionel pensou. Era fã dos Beatles desde muito jovem, e já fora aos anos 60 inúmeras vezes para ver seus shows na era de ouro. Já estava em “With a little help from my friends” quando o som de passos atraiu sua atenção.

Emmet vinha do quarto, guiando-se pelo apartamento que já lhe era velho conhecido. Estava descalço e enrolado em um roupão branco e felpudo. Era magro, mas não demais. Deveria ter um pouco mais de um metro e setenta, mesmo assim baixo diante dos dois metros de Lionel. Tinha cabelos loiro-prateados e uma barba bem aparada da mesma cor. Seus olhos eram verde-claros como as águas cristalinas de um lago escocês, e o sorriso era tão lindo que parecia ofuscar o sol.

– Bom dia, dorminhoco. – Lionel disse zombeteiro.

– Dorminhoco é o caralho. – ele riu e o beijou.

Emmet sentou-se ao lado do homem de óculos e dedilhou as teclas do piano.

– Quer aprender qual música hoje¿ Que tal “Hey Jude” ¿

– Nenhuma, Leo. Preciso trabalhar.

– Tão cedo¿

– Não está tão cedo. – Emmet respondeu, mostrando que seu relógio marcava oito horas. – Além do mais, hoje tem reunião com o reitor. E você não tem que trabalhar¿

– Não. A próxima seção do Parlamento é em dois dias. Estarei no restaurante quando seu horário terminar.

– Vou até lá. – e se levantou.

Ele teve vontade de fazer o tempo voltar várias horas, só para ficar mais tempo com Emmet, mas não podia fazê-lo. Se houvesse algum farejador por perto, descobriria que o famoso senador Lionel Vegger era um SD, e então procurariam atingi-lo por meio da pessoa que ele mais amava. Não deixaria isso acontecer de novo.

Tocou piano por mais duas horas, mesmo depois de o professor de terno ter saído, deixando-o com um beijo na nuca e as palavras “tome cuidado com esses charutos. Eles acabam com o seu pulmão”. Estava protelando ao máximo o dia e suas obrigações, algo que fazia constantemente e lhe dava certa dose de vergonha. Assumira um cargo de senador e a missão de intervir em favor dos SDs, uma responsabilidade grande demais para alguém como ele. Quando seus dedos e braços cansaram, decidiu começar o dia.

Ele desce as escadas vestindo bermuda e camisa pólo, como um senador comum se portaria em seus dias de folga. Andou alguns quarteirões na rua, até encontrar um beco suficientemente profundo para ativar seu poder. Fechou os olhos às dez da manhã, e quando os abriu, eram oito novamente. Não liberou o relógio: queria estar na Base no horário marcado por Salize. Ainda levou um bom tempo até trocar de roupas no restaurante e então descer as escadas de um bueiro.

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O dia estava quente, mas o nervosismo era quem o fazia suar. O tempo todo olhava para o lado, para certificar-se de que Rick ainda estava lá, como se o segurança pudesse sumir a qualquer instante. Jeff odiava conhecer gente nova, odiava lidar com assuntos importantes, mas acima de tudo, odiava ser capacho do pai. Sempre desprezara aquele saco de banhas, mas via-se obrigado a seguir suas ordens à risca, afinal tudo o que ele era devia ao pai. De qualquer forma, preciso aprender, ele pensou consigo mesmo. Um dia tudo isso será meu. Desceram do caro a vinte metros da sala do diretor.

O ar cheirava a desinfetante e a ar-condicionado. Quando tirou os óculos escuros, Jefferson Belford pôde observar melhor o homem que estava sentado atrás da mesa. Era alto e largo, com um rosto flácido cheio de listras. Vestia um terno branco-pérola com gravata e botões prateados, totalmente oposto ao terno preto de Jeff. Deveria ter mais de sessenta anos, dado o fato de seus cabelos serem totalmente grisalhos, embora o sorriso carismático e os olhos verde-claros lhe tirassem um pouco do peso da idade.

Jefferson pediu para Rick fechar a porta, e então olhou para o home de branco.

– Diretor Strauss. Phillip Strauss. Meu pai enviou-me para tratar com o senhor.

– Seu pai¿ - o velho respondeu, enquanto se levantava e punha um par de óculos grossos no rosto. Sua voz era grave como o ressoar de um trombone. – Ah, sim! É claro que é você. – Estendeu a mão para cumprimentá-lo, e Jeff cedeu com relutância. – Esses olhos azuis e cabelos negros são inconfundíveis. Como anda o nobre senador Robert¿

– Vai bem, senhor. Enviou-me para conversar sobre seus alunos. – deu certa ênfase à última palavra, arrependendo-se logo em seguida. Era óbvio que o velho saberia do que se tratava.

– Sim, é claro. Vamos andando, não é na minha sala que você os encontrará. – deu um sorrisinho – Mas eu poderia saber quem é seu amigo¿

– Este é Richard, meu segurança. – Jeff explicou, apontando para o homem alto e forte de terno e chapéu pretos. Ele carregava duas pistolas na cintura, embora ficassem ocultadas pelo paletó. – Espero que não haja problemas em termos a companhia dele.

– Tenho certeza de que ele preferirá permanecer aqui. – Seu sorriso murchou, e então ele tocou a orelha e sussurrou dois nomes. Só então Jeff percebeu que havia um ponto no ouvido do velho. Em três segundos, dois seguranças vestidos de branco surgiram na sala. – Por favor, meu caros, façam companhia ao senhor Richard. – Strauss disse aos homens, que carregavam armas mais visíveis e mais potentes que as de Rick.

Por um momento, a tensão pairou no ar, mas um aceno de cabeça de Jeff acalmou Rick. Parece que não haveria escolha dessa vez. Assim que saíram da sala do diretor, um jeep elétrico branco (cujo motorista vestia branco) parou perto deles. Ambos entraram e o idoso sussurrou o destino.

– Imagino que seja a primeira vez que visita minha humilde escola, filho do Belford.

– É sim, senhor. – ele disse, enquanto procurava se distrair olhando para o imenso pátio da escola. – Jefferson. Meu nome é Jefferson, senhor. – ele o ignorou.

O pátio era feito de concreto liso, da mesma cor que tudo ali. Uma miríade de pequenos prédios o rodeava, e um deles era a sala de onde saíam. O jeep os deixou em frente à sala de exercícios, ou pelo menos era isso que o letreiro acima dizia.

Parecia maior por dentro do que por fora. O número de aparelhos de ginástica era incontável, embora Jeff conhecesse todos eles pelo nome. Motivado pelo desejo de ser diferente do pai, ele passara a adolescência em academias de ginástica, fazendo todo tipo de exercício disponível. O resultado, agora que tinha vinte e dois anos, fora um corpo anormalmente inchado e definido. Não era muito alto, nem bonito, nem inteligente, mas pelo menos era forte. E diferente do pai.

A branquidão do ambiente era quase cegante, mas ele conseguiu ver algumas dezenas de jovens se exercitando naquelas máquinas. Não havia nada de especial, até que Strauss começou a falar.

– Bom, meu caro, é aqui que meus alunos passam a maior parte do tempo, embora a Escola de Jovens Promissores tenha muito, muito mais a oferecer. O que sabe sobre nós, Jeffrey Belford¿

– Quase nada, senhor. Jefferson. Meu nome é Jefferson.

– Pois bem, então eu vou lhe contar. Como todos comentam por aí, o mundo está infestado de seres sobre-humanos, cujas capacidades constituem em ameaças ao bem-estar da nossa sociedade. Fundei esta escola em 87 para unir os poucos super-dotados que estavam dispostos a servir ao país. Mediante uma remuneração, é claro. – ele sorriu. – Nossa função é fornecer os melhores talentos às forças de extermínio aos mutantes, e aos poucos construímos um mundo melhor. Meus amigos do Parlamento, dentre os quais se inclui seu nobre pai, sempre me ajudaram a manter meu projeto sem interferências da lei e sempre com o melhor funcionamento possível.

– Mas seus alunos não se sentem mal em exterminar sua própria espécie¿

– Sua própria espécie¿ Bom, meu pai serviu a Adolf Hitler durante a Segunda Guerra, talvez devêssemos fazer esta pergunta a ele, não¿ - sorriu mais uma vez. – Sob o incentivo certo, não há o que não possamos fazer. Além do mais, apenas um quarto dos meus alunos são mutantes. Só trabalho com a melhor qualidade: não há deformados ou ciborgues na minha escola, isso eu deixo para os laboratórios clandestinos que existem por aí. O resto dos meus alunos é de soldados voluntários, todos dispostos a dar sua vida em nome da Boa Causa.

– Em nome do dinheiro, o senhor quis dizer. – Jeff o provocou.

– E existe causa melhor que o dinheiro¿ - o velho riu – Venha, quero lhe mostrar alguns destaques.

Havia uma mulher alta, loura e de porte atlético pedalando em uma bicicleta ergométrica. Phillip Strauss tocou seu ombro e acenou com a cabeça, apontando discretamente para Jeff. Ela fez sinal de que entendeu e começou a pedalar mais rápido. Muito mais rápido. Seu rosto não se alterava, mas seus pés mais pareciam turbinas de avião.

– Esta é Darlla. – o velho disse – Consegue correr a dez vezes a velocidade do som, sem sofrer nenhum dano ou se cansar. – Pode parar, querida. – ele tocou o ombro dela novamente, e então a velocidade voltou ao normal.

E este aqui é Grupius. - Ele disse apontando para um homem negro e magro com cabelo armado sentado em um banco perto da parede, que estava dando nós em algo que parecia ser um tubo de borracha. – Por favor, Grup, dê-me o tubo.

Ele o entregou, e Strauss passou para as mãos de Jeff. Era sólido e gelado, além de ser bem mais pesado do que parecia.

– É de aço. – Jeff concluiu. – Super- força, é isso¿

– Ah, não, Grupius não é mais forte do que eu ou você. – o velho explicou – Na verdade, seu poder é alterar a matéria que toca. Veja. – Devolveu o tubo ao negro, que voltou a dar nós e mais nós. – Ele transformou aço em borracha mole, assim como pode transformar seu coração em uma pedra. – sorriu mais uma vez.

Jeffrey conheceu mais superdotados naquele dia do que a maioria das pessoas poderia esperar conhecer em uma vida inteira. Havia Naji, um japonês capaz de transformar seus dedos em um estoque infinito de adagas para atirar; Dhamma, uma indiana que podia envenenar o sangue de alguém apenas com um olhar, e Johannes, que tinha o poder medonho de, por meio de um raio telepático, forçar qualquer um a cometer suicídio. Por fim, Phillip Strauss lhe perguntou:

– E então, Belford, gostou de algum dos meus prodígios¿ Ainda há muitos se quiser ver, mas estes são os melhores atualmente.

– Gostei sim. – Jeff respondeu. – Vou querer a garota rápida. E a dos venenos. E mande o alemão do suicídio também, e mais aquele negro que controla a matéria. E mais dois mil soldados comuns.

– Ótimo, ótimo. São seis milhões por Darlla, minha menina veloz; e cinco por Dhamma e seus venenos. Grupius sai daqui por sete. Por Johannes, vou cobrar vinte milhões.

– VINTE¿ - Jeff perguntou, indignado.

– Sim, é um preço justo. Johannes é um telepata de nível onze, o que quer dizer que é mais poderoso que aquela Salize da Resistência. Embora só tenha uma habilidade mental, seu poder não pode ser barrado pelos escudos daquele careca.

– Ainda assim é muito caro. Pago dez milhões, e quero mil soldados de brinde.

– Dezoito, e dou cem soldados.

– Quinze, e quinhentos soldados.

– Cobro dezessete milhões, e darei seus quinhentos soldados. Para os outros dois mil, é o preço de sempre: dois milhões. Não se fala mais nisso.

– Está bem. – Jeff se conformou.

Ele observou os mutantes serem chamados e encaminhados para outro lugar, e de lá em diante seriam enviados para o EEM e treinados por instrutores militares. Os dois homens de terno voltaram à sala do diretor, onde Jeff assinou o cheque de trinta e sete milhões de libras. Ultrapassara um pouco o orçamento recomendado por seu pai, mas na importava, afinal os impostos estavam altos, e os cofres públicos, cheios.

– É sempre um prazer fazer negócio com vocês, Belford. – Strauss disse sorrindo, enquanto admirava o cheque. Estendeu a mão para cumprimentar Jefferson, mas abaixou quando ele não correspondeu.

– Tenho uma última pergunta, diretor.

– Pois não¿

– O senhor... O senhor é um deles¿ Um mutante¿

– Sou um superdotado, se é o que quer saber. Bem, ao menos é isso que os exames mostram.

– E qual é o seu “poder” ¿

– Meu poder é o dinheiro, meu caro. – ele sorriu – E pode acreditar que não existe nenhum mais forte que este. Mas se está se referindo à habilidade que o destino me deu, sou totalmente insensível aos poderes dos outros.

– Interessante. Até mais ver, senhor Strauss. – e apertaram as mãos.

_____________________________________________________________

Salize estava mais puto do que de costume.

– Mais rápido! Mais rápido! – ele gritava para o novato Ted, enquanto este penava para desviar dos golpes que o telepata lhe dava com uma barra de madeira. – Que merda, novato, mais rápido!

Ted suava feito um porco, e os hematomas nos seus braços variavam do vermelho ao roxo. Lionel terminou de comer seu sanduíche e bebeu um pouco de refrigerante – que ele se dispunha a trazer do restaurante para os SDs uma vez por semana. O som de madeira batendo em carne já torrara sua paciência, e assistir ao treinamento dos novatos não era propriamente uma atividade agradável.

– Salize! – ele chamou, mas o careca o ignorou. – SENHOR SALIZE! – desta vez ele ouviu.

– O que foi, Boobba¿ - ele perguntou, a uns vinte metros de distância.

– Não há mais o que fazer pelo novato. Deixe isso para amanhã e vamos conversar.

– Está bem. – ele parou de bater em Ted, que ofegou aliviado. – Novato, veja se melhora essa porra de desvio. Nem todos os soldados do EEM são sensíveis à sua telecinese, e se não souber lutar individualmente, vai morrer.

– Sim, senhor. – Ted respondeu em um tom quase inaudível. Estava tão cansado que desabou no chão. Arrastou os pés até a tenda-cozinha e pediu um pouco de água.

– Estou sem paciência para treinar esse aí. – Salize resmungou, alto o suficiente para todos ouvirem. – Tyra, você o treinará a partir de amanhã. Ou de hoje, se esse corpinho frágil de corretor de seguros ainda agüentar.

– Sim, senhor. – Tyra respondeu das sombras. Lionel sentiu pena de Ted, mas sabia que não era boa ideia contrariar o Líder na frente de todos.

Quando se sentaram no interior da tenta, Salize bebeu um pouco de água, sem desfazer a careta de mau humor.

– O que há, amigo¿ - o temporizador perguntou.

– Amigo¿ Não me chame de amigo, Boobba.

– Está bem, senhor. O que há de errado¿

– Para começar, você seria útil se passasse mais tempo aqui embaixo, como todo mundo.

– Tento ser útil lá em cima.

– Ah, sim, grande senador. – Salize disse com um olhar de desprezo. – Ontem à noite tive que atacar mais um orfanato.

Então tudo ficou claro. Os orfanatos, onde empresas do submundo misturavam crianças a robôs e as transformavam em máquinas de matar. Depois de um tempo elas cresciam e se tornavam os membros mais perigosos do EEM. Seres sem alma, sem consciência, cujo único objetivo é exterminar SDs.

– Eu... Eu sinto muito. – Lionel disse, quase sussurrando.

– Não importa mais. – Salize passou suas mãos magras pelo rosto pálido. – Porra, Boobba, o que eu faço com esses filhos da puta¿

– Eu já sugeri uma vez, que me deixasse voltar no tempo e impedir que sejam criados.

– Não dá, você sabe disso. Essas empresas têm seus próprios temporizadores. Nenhum é tão forte quanto você, mas juntos podem impedir que qualquer mudança se concretize. Enquanto isso, o número de ameaças só cresce, e nós ficamos cada vez mais acanhados nesses esgotos.

Lionel ficou um tempo sem dizer nada. Salize era um homem inteligente, mas não em proporções sobre-humanas. Demandava tempo até que tivesse uma ideia mirabolante que resolvesse seus problemas. Até lá, teriam de agüentar sua face de velho resmungão.

– Nosso farejador no Brasil está voltando. – Salize tornou a falar. – Aedan, lembra-se dele¿

– Sim. Quais são as novidades¿

– Ainda não sei. Poderia rastrear sua mente, mas se algum telepata do EEM interceptar, estão todos perdidos. Tudo o que sei é que ele deve chegar em breve. Sinto a presença dele, talvez já esteja no aeroporto de Londres.

– Bom saber que teremos novos membros. Espero que você seja mais paciente com esses.

– Ah, vai se foder, Boobba. Quando eu era jovem, ninguém teve paciência comigo. No meu tempo era “aprenda rápido, ou alguém melhor que você tomará seu lugar”. Mas o jeito é esperar. Porei Elétron e Diamont como tutores de quem quer que venha.

– Está bem. E por falar em treinamento, creio que seja a hora do meu. – Lionel se levantou. Tente relaxar, Salize. Se quiser, posso buscar uns charutos no meu apartamento para você.

– Agradeço, mas não. O fumo não tem nenhum efeito sobre mim.

– Então até mais ver.

O líder respondeu com um aceno de cabeça, e Lionel sair da tenda. Encontrou os gêmeos Tannen sentados em seus postos, cada um devorando um bife de dez quilos. Esses dois eram quem mais custava ao restaurante, mas muitas vezes haviam sido decisivos em batalhas.

Encontrou Ted recostado a uma parede, gemendo de dor enquanto o rapaz Rock enrolava gaze em seus hematomas.

– Dia difícil, não¿ - dirigiu um meio sorriso ao novato, enquanto se sentava ao seu lado.

– Sim, senhor. – Ted respondeu.

– Ah, longe de Salize você pode me chamar de Boobba.

– Certo. – ele gemeu mais uma vez – Boobba.

– Eu sei que está quase morrendo de dor, mas todos se sentem assim no começo. Não é verdade, Rock¿

– Sim, senhor. Boobba. – Rock respondeu. Ele fazia parte da resistência há pouco mais de um ano, então deveria se lembrar melhor.

– Estará disposto a treinar amanhã¿ - Lionel perguntou a Ted.

– Tenho que estar, não¿ Se não estiver, sinto que Salize vai comer meu cu enquanto eu durmo.

Lionel gargalhou.

– Não se assuste tanto, Ted. O nosso líder é um bom homem, mas tem uma vida um tanto dura. Recentemente muitas coisas o têm aborrecido, então é natural que ele tenha esses acessos de raiva. – esperou um momento, acompanhando as caretas tragicômicas que o novato fazia. – Mas se eu estivesse na sua pele, não me preocuparia com Salize, e sim com Tyra.

– Rock me disse a mesma coisa. O que essa Tyra tem de tão especial¿

– A princípio, saiba que ela é a melhor lutadora com facas de toda a Resistência. Na luta de cajados, perde apenas para Alys, e sua habilidade com as chamas dispensa armas de fogo. Concorda comigo, Rock¿ - o rapaz de cabelo longo fez que sim com a cabeça.

– Puta que pariu. – Ted disse.

– Mas tem algo que a maioria aqui não sabe. Digo, todos conhecem a fama da nossa Dama de Fogo, mas não sabem sua história. O início, como você já deve ter ouvido, é igual para todos nós.

– Uma infecção. – Ted respondeu.

– Exato. Tudo começou nos anos 30, quando Adolf Hitler ascendeu como o Fürer da emergente Alemanha, e automaticamente tornou-se uma ameaça a todas as outras potências. Os Aliados logo uniram recursos para desenvolver armas mais poderosas, desde simples metralhadoras de guerra até a famosa bomba de Hiroshima. Mas também houve muitos testes com armas químicas e biológicas. Vírus super potentes produzidos em laboratório, bactérias virtualmente imortais e toxinas extremamente poderosas foram liberadas em áreas despovoadas da Sibéria e da Groelândia. Como não houve efeitos nocivos à população a curto prazo, todos pensaram que estava tudo bem.

“Eles não poderiam estar mais errados. As descargas radioativas provocadas pelos testes nucleares acabaram por modificar a estrutura genética de certos seres microscópicos, seres que tivemos a sina de encontrar. A maioria dos infectados morreu sem maiores explicações. Os médicos supunham ser alguma epidemia ou até confundiam com doenças tradicionais. Ao fim de trinta anos, dez milhões de soviéticos estavam mortos.”

“Tyra nasceu muito depois de a União Soviética ter acabado. A vida em Moscou já não era repleta de medos, afinal a ditadura acabara, e, aparentemente, as doenças. Ela poderia ter crescido uma garota comum, vivido uma vida comum e morrido como uma idosa comum, mas tudo foi por água abaixo nos seus catorze anos. Seus pais tiveram a infeliz decisão de visitar a Coreia do Norte. Não era um destino turístico convencional, mas tinham dinheiro e curiosidade, então foram. Aí você sabe o que acontece.”

– A Grande Destruição. – Ted concluiu. – Mas se Tyra estava lá, como poderia ter sobrevivido¿

– Certamente não por meios humanos. – Lionel continuou. – E aconteceu. Em seu último ato de loucura, o ditador resolve detonar todo o seu arsenal nuclear em suas próprias terras. Claro que o Sul também ficou arrasado, mas nada foi tão catastrófico quando a destruição do Norte. Como você deve ter ouvido, o estalo de um SD geralmente ocorre em um momento de forte estresse. O meu veio quando meu pai morreu. O de Salize... bem, ele nunca diz a ninguém. Talvez seja tão terrível quanto o de Tyra.

“As nove ogivas dispararam de uma só vez. Tudo o que era sólido se tornou pó, e o que era líquido virou vapor. Os vivos não só morreram, mas tiveram sua estrutura molecular estilhaçada pela explosão. Exceto por Tyra. Ela viu tudo acontecer, e assim me contou. Seis dias depois, pescadores japoneses encontraram um fogo-fátuo gemendo no meio da noite. Ela não era mais matéria, apenas chamas. Seu corpo levou dois anos para se regenerar totalmente, e até aí ela fora reverenciada como uma espécie de divindade naquele vilarejo. Mas vieram os farejadores do EEM, e por muito pouco não enfiaram uma bala em sua cabeça. O nosso Aedan foi resgatá-la com sua equipe de SDs, e nos últimos oito anos tem vivido entre nós. Se mesmo antes do treinamento ela já foi capaz de escapar de uma bala, imagine o que não pode fazer hoje.”

Lionel sorriu e se levantou. Ele adorava a história de Tyra: fazia parecer que todos os SDs eram heróis. Ele próprio não se considerava um, mas não deixava transparecer. Todos ali estavam desamparados, e o que menos precisavam era de um general inseguro.

Ele seguiu pelos caminhos pouco iluminados até a tenda do Alto Escalão. Os Tannen econtravam-se novamente em seus postos, fortes e imponentes como sempre. Quando afastou a cortina, sorriu ao ver que Alys estava lá, sentada em um dos bancos. Era terrivelmente linda, e talvez só viesse a surgir alguém como ela dali a mil anos. Seus cabelos negros e levemente ondulados recaíam graciosamente sobre os ombros delicados e seios marcantes. O rosto era algo à parte: uma verdadeira obra de arte de alguma divindade talentosa, com olhos azuis brilhantes, nariz fino e lábios carnudos. Seu corpo era sensual e bem torneado, perfeito para posar nua e também para batalhar por horas. Vestia roupas justas de couro e botas de cano alto belíssimas. A maioria dos homens tinha Alys como uma fantasia sexual. Lionel a tinha como uma diva.

– Boobba. – ela disse. – Salize disse que pretendia treinar comigo hoje.

– É verdade. – ele respondeu, embora não tivesse dado essa informação ao líder. Mas claro, ele era um telepata. – Gostaria bater os cajados com você, o que acha¿

– Não creio! – ela se levantou sorrindo – Seria isso um desafio, temporizador¿

– Ah, não, longe de mim, telecinética. – ele respondeu, enquanto seguiam juntos para o arsenal. – Dessa vez quero algo diferente. O que acha de usarmos os poderes¿

– Cajados e poderes... interessante ideia. Mas prepare-se, eu não tenho piedade.

– Eu não pedi para ter. – e mordeu o lábio.

O cajado de batalha era uma haste de madeira de dois metros de comprimento, com um facão afiado atado a cada extremidade. Alys abriu as portas do arsenal e pegou três peças com sua telecinese. Lionel pegou apenas uma. Ela o guiou pela penumbra até a área dos encanamentos que ficava abaixo do escoadouro de chuva. Melhor, ele pensou. Ao menos aqui não tem cheiro de merda, apesar da água no chão. Não havia lâmpadas, mas a luz do sol penetrava pelas frestas que vinham da rua.

– Podemos começar¿ - Alys perguntou, impaciente.

– Não acho justo. Você tem três cajados flutuantes.

– E você pode parar o tempo.

– Juro que não vou pará-lo.

– Então eu dispenso um dos cajados. – e assim o fez.

Ela atacou com os dois de uma vez, ambos em posição de lança. Lionel desviou o ataque girando o seu cajado e passando de uma mão para a outra. Ela afastou as peças e as fez voltar a atacar, desta vez com uma girando e outra ziguezagueando. Ele quase sentiu o toque da lâmina no ombro direito, mas por sorte conseguiu derrubar os bastões a tempo. Mas não era suficiente ser bom em afastar os ataques, afinal aquela era Alys. Toda a sua habilidade unida a um poder formidável de telecinese. Cada vez que Lionel empurrava um cajado voador, o outro avançava na sua direção de uma forma diferente e praticamente impossível de afastar.

Vindo de trás de si, a lâmina rasgou sua calça de couro e depois arranhou a pele, arrancando uma gota de sangue. Filha da puta, ele pensou. Então está bem. Deu um salto de meio metro para desviar de um ataque entre as pernas, e então fez o movimento o mais rápido que pôde. A lâmina de seu cajado cortou o ar, e, segundo seu cérebro comandara, cortou o tecido temporal. Agora havia uma janela aberta para o futuro - apenas dois segundos, é verdade, mas um futuro muito útil. Agora barrava os ataques antes que começassem, e finalmente conseguiu alguma vantagem. Mas ainda posso conseguir mais, pensou. Se tocasse na janela temporal, ela se transformaria em um portal, e então ele poderia enviar golpes para o futuro. Seria engraçado ver sua amiga tentando desviar de dois cajados ao mesmo tempo.

Desviou rapidamente para a direita, e aproveitou o impulso para tocar a janela, que estava à esquerda da luta. Dois segundos depois, o segundo portal surgiu, à sua direita. Agora ele poderia enviar uma estocada para o futuro e atrapalhar os golpes, ao mesmo tempo em que desviava do que estava por vir. A dança começou a ficar divertida quando ela começou a falhar em barrar seus golpes com telecinese. Duas vezes a lâmina do passado a encostara na coxa e no ombro direito, e então Lionel decidiu abrir mais um portal, desta vez para cinco segundos. Ergueu o bastão em uma mão só, e com a mão livre desenhou no ar.

Agora a atacava de três maneiras diferentes. Estava em vantagem numérica, e talvez isso não fosse justo, mas ela ainda mantinha a luta equilibrada. Abriu mais um portal, e então mais um e outro. Por mais que dançasse por entre essas janelas cósmicas, não conseguia vencê-la de outro momento do tempo, então decidiu abrir portas para o presente. Estava multiplicado, sete versões dele lutando contra uma dela, mas mesmo assim para cada golpe que ele acertava, Alys desviava vinte e acertava três nele. Pensou que seria bom se as versões de si lutassem de formas diferentes, mas eram todos cópias simultâneas do presente. Lionel já estava cansado de sustentar tantos portais, então resolveu fechá-los aos poucos. Primeiro os do presente, e então os mais distantes do futuro. Agora eram quatro dele contra ela.

Metal se chocava contra metal e madeira, e os cajados giravam como hélices no ar. Por um enésimo de segundo, tudo parou. Os dois cajados voltaram para as mãos dela tão rápidos quanto flechas, e ele viu sua chance de avançar. Mas não pôde, porque havia oito lâminas tocando seu pescoço, todas vindas de Alys em quatro momentos diferentes no tempo.

– Você é muita esperta. – admitiu. – Está bem, eu me rendo.

– É claro que se rende. – Ela puxou os cajados de volta, e ele fechou as janelas do tempo.

Lionel sentiu uma mão pesada sobre seu peito e tombou no chão coberto de água fria.

– O que foi, porra¿

– Isso foi pela brincadeira dos portais, senhor do tempo. – ela deu um sorriso sarcástico.

– Vá tomar no seu cu, Alys. – ele respondeu rindo – Agora me ajude a levantar daqui, que a água está muito fria.

Ela o levantou com telecinese, fazendo uma expressão estranha no rosto. De repente, amos começaram a levitar.

– O que foi¿ - Lionel perguntou.

– Olha pro chão, Boobba.

Ele olhou, e a toda água estava congelada.


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