Designium escrita por Caio Historinha


Capítulo 4
Jack Hatcher


Notas iniciais do capítulo

Capítulo escrito por Claudio Nigro



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/524165/chapter/4

Na noite fria e chuvosa Jack Hatcher caminhava apressado. O dia vinha sendo ruim e com os sapatos agora encharcados com certeza não iria melhorar. Dois quarteirões à frente estavam o galpão que havia sido indicado pelo cliente... Estranho que, pensando agora, Jack não se lembrava de nenhuma ligação marcando o encontro - talvez tenha sido um email-embora isso não fizesse nenhum sentido. Ele e as maquinas nunca tiveram uma relação muito amistosa.

Um quarteirão antes entrou num beco. Não tinha porque fazer isso mas achou uma boa idéia checar o fundo do lugar.Também não pareceu ruim evitar ser visto entrando num galpão sinistro num bairro de má reputação.Nas ruas circulava o boato de que a base da resistência ficava em algum lugar por ali. Jack preferia não saber nada sobre mutantes, SDs, ou seja, lá como fossem chamados agora, sua vida já tinha muito mais aventura do que poderia desejar.

Ao alcançar o final do beco teve a impressão de ouvir o som fraco de uma sirene. Não conseguiu ter certeza se o tinha escutado de fato ou se era algo da sua cabeça. Tentou lembrar-se de Susan e seus intermináveis discursos sobre ele ser "perrfectamõnti norrmalê" só que não conseguia juntar duas palavras do que a psicóloga havia dito,tudo que vinha na sua cabeça envolvia o exagerado decote dela e paródias daquele sotaque estúpido.

Chegou nervoso aos fundos de uma grande construção desbotada,as paredes cobertas de cartazes apodrecidos de bandas punk e pichações sobrepostas umas as outras.O fedor ali quase trouxe seu parco jantar de volta e não foi sem prazer que percebeu que a pequena porta dos fundos,rodeada por altas pilhas de lixo,estava bloqueada por tábuas. Seria um horror ter que atravessar aquilo com seus sapatos elegantes.(vale uma nota aqui:Jack,longe de ser vaidoso,orgulhava-se de sua aparência de "homem comum" contudo os anos no seu ramo haviam ensinado que uma boa apresentação continua sendo importante,mesmo em trabalhos que não tem dignidade como pré-requisito).

Contornou o prédio se movendo devagar.No exército tinham lhe dito que andar de uma forma deliberadamente lenta ajudava a aguçar os sentidos,mesmo sem esperar grandes resultados disso Jack vinha fazendo-o desde então.

Não havia muito para ouvir ou ver. A viela,com três metros de largura,seguia entre os fundos de um prédio e as paredes lisas do galpão.Muito a frente era possível perceber uma luz difusa e o som distante do trânsito fraco.O andaime subitamente materializou-se na escuridão e somente graças aos seus passos cuidadosos Jack não mergulhou entre chapas e canos. -Teria sido uma entrada e tanto morrer esmagado sob vários metros de ferro e madeira podre,isso com certeza me tornaria uma lenda no submundo- pensou isso um tanto divertido,o andaime parecia bem mais firme do que esperava e a possibilidade de evitar a porta da frente provavelmente aumentaria a chance de sair vivo daquele lugar e nada importava mais para Jack Hatcher do que Jack Hatcher.

Escalou agilmente evitando as pranchas e apoiando seu peso nas bordas.A disposição das peças de metal variava de uma forma regular fazendo com que fosse mais fácil subir em círculos.Estava um pouco desnorteado quando alcançou as janelas,apenas molduras sem o vidro, e percebeu que uma réstia de luz vinha de uma porta do lado oposto ao que se encontrava.Ajeitou o revolver no bolso interno do sobretudo,tocou o soco inglês (para dar sorte) e pulou...

O primeiro instante trouxe imagens rápidas de um tapete esburacado,mesas empilhadas nos cantos e um cheiro penetrante de mofo então,como que atingido por uma vertigem Jack percebeu que havia se enganado.O tapete sob seus pés estava inteiro,as mesas espalhadas de forma regular a direita e esquerda contavam com cadeiras elegantes e abajures. A lembrança ainda fresca do odor de umidade e velhice (que não existia mais a sua volta) trouxe uma ruga ao seu rosto. Conferiu novamente os bolsos e andou,bem lentamente,em direção ao feixe de luz que brotava da porta encostada.Antes que tivesse tempo de bater ela se abriu para dentro emoldurando uma linda mulher morena com lábios carnudos e um vestido escuro muito justo.

–Entre senhor Hatcher, estávamos o esperando.

Jack tentou responder alguma coisa, mas seu cérebro estava ocupado demais registrando quantos centímetros faltavam para que o vestido alcançasse os joelhos e como aquele decote era ainda mais perturbador do que o da maldita Susan.Resmungou algo,sacudiu a cabeça e avançou para dentro da sala.

Não havia janelas. A porta pela qual entrou parecia ser a única saída.O canto oposto,envolto em sombras,era ocupado por estantes altas repletas de livros,alguns bancos baixos e chiques rodeados de mesinhas e descansos para os pés.No centro uma imensa mesa de bordo,com os pés fixados ao chão,reluzia dourada.Um homem muito alto se ergueu de uma cadeira igualmente grande:

–Senhor Thatcher,é um prazer conhecê-lo.

–Isso é algo que não escuto muito.Jack é suficiente.

Jogou-se na sua cadeira,bem menos impressionante,com um suspiro de alívio. As chances de não ser baleado continuavam aumentando.O empresário provavelmente o contrataria para...-empresário?Da onde teria vindo essa idéia?- Sem tirar os olhos do tapete tentou se lembrar da aparência do homem a sua frente.Branco ou negro?Terno? O cabelo com certeza era castanho...talvez um pouco loiro,uma parte mais escura...Nada.
–Senhor Hatcher,não quero impedi-lo de prosseguir com os seus com certeza numerosos afazeres por isso serei breve.O senhor chegou a mim muito bem recomendado pelos meus associados (máfia,deve ser da máfia) e eu gostaria que cuidasse de dois...

–Quando o senhor diz cuidar.?

–Oh não.Nada tão extremo.Acredito que eles estejam sendo seguidos por um grupo de homens.O senhor deve descobrir o que querem e garantir que tão ilustres cidadãos não sejam perturbados.

A linda morena,depois de parar num canto mais escuro,estava agora ao lado do mafioso.Distraído Jack se pegou pensando se ela comprava roupas na mesma loja que Susan.Talvez as duas até se conhecessem.Mulheres bonitas com certeza formavam uma máfia própria.

–Hmm,certo.Seguir,espionar e relatar.É só isso?Como ficam meus honorários?
–O envelope com minha assistente contém todas as informações que pude reunir sobre o Sr. McFly e o Sr. Selfie assim como um adiantamento. Conforme o valor das informações que o senhor conseguir discutiremos novos pagamentos.Manterei contato.

Jack se levantou e recebeu o envelope das mãos delicadas da "assistente".(-serão de alguma agencia do governo?não,isso não faz sentido).O agente secreto já se ocupava de papeis sobre a vasta mesa portanto não teve escolha além de se deixar conduzir até a porta.

–Boa noite senhor Hatcher.Espero que nos vejamos novamente. O sorriso cristalino e o cumprimento passaram sem resposta além de um resmungo baixo e um menear de cabeça. Por uma fração de segundo,enquanto cruzava a soleira da porta,uma imagem,como a lembrança de um sonho cruzou-lhe a mente:um homem com a face encovadas e olhos iguais a estilhaços de gelo sentando numa poltrona velha em uma sala vazia.A porta se fechou as suas costas e ele logo esqueceu.Olhou em direção a escada que levava para o térreo do galpão e foi em direção a janela.

–Salize?

–Hmm?

–Salize!

Com um suspiro Salize ergueu a cabeça apoiando-a nas mãos, os cotovelos sobre a mesa velha e empoeirada.

–O que foi Alys?

–Você se incomoda em explicar o que foi isso?Sabe quem tem seguido os senadores do Vegger?Eu e o Black! O imenso homem negro num dos cantos confirmou com um aceno.

–Ah minha querida Alys,vou tentar satisfazer sua curiosidade mas precisamos ser rápidos. Ainda tenho uma missão para você está noite.Minha pesquisa sobre o Sr. Hatcher revelou um questionável passado:chantagem,furto,algumas agressões...enfim,o tipo de pessoa que nunca está longe de problemas.Vocês dois deixarão de seguir os senadores o que levará nosso detetive a se concentrar nos farejadores que os rodeiam.Duvido que ele consiga muita coisa...ainda não pelo menos,se nós tivermos sucesso em jogar um contra o outro o Sr. Hatcher pode se revelar uma peça valiosa.
Nesse momento um espasmo sacudiu o corpo de Salize e ele arfou.Alys e Black ficaram imóveis nos seus lugares,a admiração que sentiam por seu líder se transformando em constrangimento por vê-lo tão fragilizado.Passado o pior do acesso uma imagem surgiu na mente de Alys:SIGA JACK. VÁ ORFANATO.

Jack resolveu se afastar do galpão pelo caminho dos fundos seguindo uma rede de vielas estreitas que cortavam uma pequena favela em direção ao rio.Sentia-se incomodado e inquieto,algo estranho havia acontecido mas ele não conseguia determinar o que era.Foi nesse estado de espírito que chegou ao topo de uma escadaria suja e percebeu uma luz a frente.Fogo.Chamas dançavam num prédio alto com uma aparência tão decrépita quanto a de todos ao seu redor.Ouviu um grito abafado e mal teve tempo de se virar antes que a morena de formas exuberantes passasse em disparada.

Chegou sem fôlego a uma pequena praça diretamente sob o prédio.Numerosos caminhos saiam dali em todas as direções, as labaredas dando a tudo uma aparência trágica e irreal.Ela estava ajoelhada na extremidade oposta ao prédio rodeada por algumas...crianças...

Não eram crianças.Conforme se aproximou isso ficou dolorosamente óbvio.O que antes tomara por uma menina sendo consolada agora era um ser com o rosto enrugado de um cachorro e quatro braços, o menino ao lado exibia um longo cabelo branco e um único olho...na testa.Seus pensamentos não funcionavam direito porém tinha certeza se chegasse em casa tudo voltaria ao normal.Bastava perguntar para a assistente do empresário-mafioso-agente-secreto qual daqueles caminhos conduziria ao rio.Tudo ficaria bem.Deu um passo, no segundo algo que até então tinha tomado como uma pilha de trapos começou a se levantar.

No começo pensou em uma cobra,quando uma grande mandíbula sáuria se abriu exibindo dentes triangulares e rugindo ele pensou num lagarto, foi só quando deu com os grandes olhos castanhos que sua cabeça começou a girar.

Deu por si olhando para o fogo.Laranjas,vermelhos e amarelos se fundiam e surgiam de novo.Era algo que conseguia entender e fez com que se sentisse melhor.Do meio das chamas surgiu uma mancha preta que logo se tornou um figurante de um filme B de ficção científica.Usava uma máscara de borracha preta repleta de tubos conectados ao resto do corpo.Não dava para ter muita certeza por que o fogo o envolvia assim como a fumaça. Demorou para Jack entender que seja o que fosse apontava para a praça.

Uma explosão fez com que o prédio inteiro balançasse.Um soldado imenso aterrissou vinte metros a sua frente com estrondo.Alys mandou que os órfãos corressem e se levantou.Fazia algum tempo que vinha acumulando uma série de frustrações e estava feliz de finalmente ter uma forma de colocá-las para fora.
Tijolos,pedras e sacos de lixo flutuaram na sua direção formando uma linha defensiva (-esse é maior!porque ele não se mexe?) e depois se expandido num semicírculo para envolvê-lo.

A "coisa" devia ter uns dois metros e meio e isso nem era o mais surpreendente, pois os ombros tinham a largura da frente de um carro e as pernas formavam-se de metal e pistões!Restos de tecido aderiam as chapas expostas,brilhantes a luz do incêndio,todo o dorso permanecendo coberto por uma jaqueta camuflada.Vários coldres pendiam vazios exceto por um onde uma imensa faca (-espada.aquilo é quase uma espada!) reluzia.Num movimento impressionantemente rápido a faca estava em suas mãos e ele deu um passo a frente.

–Madre di Dios!-exclamou um trêmulo Hatcher ainda apoiado no mesmo lugar onde havia vomitado.

Alys arremessou alguns tijolos ao mesmo tempo em que deixava escapar um riso nervoso -será que o tal de Hatcher é mexicano?Não tem cara- Dois tijolos acertaram em cheio no rosto.A monstruosidade fechou os olhos.Abriu.Passo.Alys não tinha esperado muito disso.Só queria ganhar tempo para os órfãos fugirem e depois escapar também.Sua especialidade sempre fora se mover rápido.Mas...nada?(pensou em fugir agora porém conseguia sentir Liz e Hatcher nas suas costas).Uma mão pousou-lhe no ombro.Para compensar o susto rasgou os sacos de lixo no ar e fez força de todas as direções.Logo o rosto cansado e sábio de Salize estava ao seu lado,Black numa sombra próxima.

–Está tudo bem agora Alys.Já derrubei outros desses experimentos nojentos.- Salize deu um passo a frente e fechou os olhos,esticou as mãos e fez um movimento de puxar e segurar.

–A mente desses seres é muito frágil e...-Parecia ter funcionado.O ser cambaleou e seus olhos também se fecharam.Então reabriram e uma luz vermelha intensa brilhava neles.A boca se arreganhou até todos os dentes estarem expostos numa insinuação maligna.

O som de detonação aconteceu de novo,muito mais alto dessa vez pela proximidade.O chão se abriu e ele voou em direção ao grupo.Black conseguiu alcançar Salize no ultimo instante,Alys gritou e empurrou com toda a sua força mas a faca já se aproximava.Um jato de sangue atingiu seu rosto.Estava gelado.

A lamina estava a centímetros dos olhos de Alys quando Jack a puxou.Sua ponta saía do alto da coluna de Liz.Foi a vez de ela entrar em choque.Só conseguia lembrar da garotinha de voz doce que vivera presa num corpo monstruoso.Demorou para entender quando Black a sacudiu e apontou para o prédio.Ele fez os sinais para dois,eu,embaixo,você,puxar.(olhou uma última vez para Liz com os dentes cerrados no crânio da coisa que tentava se libertar).Black tomou fôlego, agarrou os dois e caiu através do chão.Alys juntou todo o seu poder e atacou os pilares do prédio.

Jack caminhava na rua com o rio e depois o Sol nascente a direita.Seu prédio era uma visão ainda mais encantadora.-quase em casa!Essa noite deve ter sido a mais animada de todas.Não lembro de nada e esse enjôo...flashes de um ciborgue gigante lutando com um T-Rex de olhos tristes o atingiram.Vomitou por muito tempo e depois foi para casa.Não tinha mais tanta certeza de que as coisas voltariam ao normal...


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Designium" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.