Designium escrita por Caio Historinha


Capítulo 12
Lionel III


Notas iniciais do capítulo

Capítulo escrito por Caio Tavares



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Chovia. Os pingos caíam violentamente sobre sua capa de chuva, retumbando altos como passos de elefante. As lentes grossas de seus óculos já estavam encharcadas, mas ele ainda conseguia ver bem, e era isso que importava. A trinta centímetros de seu rosto estava a janela, e além dela, a família. Era noite cerrada, a maioria dos postes na rua estavam pifados e os raios faziam praticamente toda a luz do mundo. Ele era negro, usava capa preta e botas pretas. Ninguém o veria, mas ele podia vê-los muito bem.

A luz fraca de uma lâmpada incandescente iluminava a sala. O chão e as paredes eram de madeira, e uma escada no canto esquerdo dava acesso a um segundo andar. Um menino de dois anos estava sentado no chão, brincando desastradamente com um carrinho de plástico. Tinha pele marrom-escura e uma camada de cachos crespos sobre a cabeça, e vestia um pequeno macacão azul-bebê. Sua mãe estava logo acima, sentada no sofá da sala. Suas feições eram belas, com lábios carnudos, olhos marcantes e nariz médio. Após um dia de trabalho cansativo, ainda vestia o avental branco de garçonete e usava uma bandana florida na cabeça – costume que trouxera da Jamaica e não tinha a intenção de abandonar. Era só um pouco mais escura que o filho, mas a semelhança entre os dois era inegável.

O menino soltou o carrinho e não conseguiu encontrá-lo novamente. A mãe ajudou, pondo o brinquedo nas mãos dele. Estranho, ela deve ter pensado. O bebê não enxergava nada bem. Ele se divertia derrubando o carro na noite de tempestade, até que o irmão chegou. Deveria ter quatro ou cinco anos, e era uma versão maior do caçula. Como todo irmão mais velho, tinha a intenção de implicar com o menor. Chutou o carrinho para longe e gargalhou, enquanto o bebê chorava olhando para a mãe.

Lionel sorriu. Estava triste, mas era bom ver aquilo. Um homem branco e robusto desceu as escadas, vestindo um moletom cinza e fazendo careta pelo som do choro. Tinha cabelos cinzentos e um farto bigode da mesma cor, que o faziam parecer mais velho que os seus quarenta e cinco anos. A mãe lhe contou o que ocorrera, e então ele saiu da sala, puxando o filho mais velho pela orelha esquerda. Este era o pai. Embora não se parecesse em nada com as duas crianças, ambas tinham seu sangue e amor.

Mas o bebê não parara de chorar, afinal não conseguia encontrar seu carrinho. A mãe o pegou e entregou ao filho, dando-lhe um beijo na cabeça para acalmá-lo. O silêncio veio naquele rosto úmido de lágrimas, e em alguns segundos ele estava brincando novamente, completamente feliz e despreocupado. A vida era boa.

A visão de Lionel estava embaçada, mas ele não sabia ao certo se eram lágrimas suas ou as gotas de chuva. Não importava. Depois de pouco tempo o bebê adormeceu e a mãe subiu com ele nos braços, apagando a luz da sala e deixando apenas a escuridão para trás. Esta é a realidade, ele pensou. Minha vida é esta escuridão.

Virou-se na direção da rua e prosseguiu andando sem rumo. A cidade não era muito diferente neste tempo, exceto talvez pelos modelos de carro e o número de anúncios luminosos. Retirou os óculos e esfregou os olhos, tentando inutilmente enxugar as lágrimas. Visitar os fantasmas do passado era algo doentio, ele sabia, mas não conseguia suportar a saudade. Ao menos tinha o cuidado de não interferir na história, e sim apenas observá-la. Seu cérebro deu a ordem, e o tempo parou. As gotas de chuva se tornaram pequenas esferas suspensas no ar, e até mesmo a luz que saía dos faróis dos carros interrompeu sua propagação. Ele ergueu um dedo e desenhou um grande X no ar, que começou a girar como os ponteiros de um relógio e formou um portal.

Trinta anos se passaram em um segundo, e então não estava mais chovendo. A casa onde crescera havia se tornado uma loja de compra e venda de roupas usadas, mas o bairro em geral continuava idêntico. Caminhou pelo mundo estático até encontrar sua residência de senador, onde tomou um banho quente e dormiu. Havia um dia longo esperando por ele.

De manhã cedo, foi quebrar o jejum em seu restaurante. Estava se sentindo estranho desde que Robert Belford jantara lá, acompanhado do filho retardado. Muito contragosto, o servira bem. Aquele era seu ganha-pão, e não podia negar um cliente, mesmo que fosse a pessoa mais desprezível da Terra. A porta de vidro se abriu a alguns metros dali, e logo um garçom guiava o velho corcunda até sua mesa.

– Presidente Herrmann! – Lionel se levantou para cumprimentá-lo. – Sente-se comigo, por favor. A que devo a honra¿

– É bom vê-lo, Vegger. – ele respondeu, enquanto tomava assento em frente a Lionel. – Creio que tenhamos assuntos importantes a tratar. – Olhou para o garçom e disse – Um sanduíche de presunto e café fraco, por favor.

– O que houve, Angus¿

– Bem... – olhou para os lados – Não sei se é uma boa ideia dizer isso aqui. Pode no meu carro para o Parlamento¿

– Sim, posso ir. – Deu um telefonema e dispensou seu motorista por hoje.

Herrmann apertou um botão e subiu os vidros da limusine. Eram escuros por dentro, e certamente opacos por fora. O presidente do Partido se recostou no banco de couro e olhou para Lionel.

– Pois bem, não gosto de drama, então vou logo lhe dizer o que há. A rainha está morrendo.

– Algo realmente triste, mas... Por que manter segredo de algo assim¿

– Essa não é a questão, Vegger. Em dois meses haverá novas eleições para Primeiro-Ministro, e Francis Hofstadein já deixou claro que não pretende se recandidatar. É compreensível, ele está velho e cansado, e provavelmente não ganharia mais uma vez. E agora a esperança do Partido Conservador se volta para um dos senadores mais populares da atualidade.

– Robert Belford. – Lionel compreendeu, um tanto apreensivo.

– Exato. – Herrmann continuou – Como você bem sabe, a maioria do Parlamento costuma votar de acordo com a vontade daquele gordo. Os Conservadores por obrigação, os Lordes por afinidade, e boa parte dos Democratas pela estratégia de rebanho. Quem nos resta são os Progressistas e nós, do Trabalhista.

– E o senhor vai concorrer contra o Belford¿

– Eu¿ - soltou um riso fraco – Não, meu caro, eu não sirvo para isso. Quero dizer, para governar sim, mas não tenho a confiança dos parlamentares para ser eleito. Precisamos de um novo presidente para o Partido, alguém de discurso forte e destaque na Mídia.

– Bom, temos Fredward Rowley, Samantha Lancashire, Edwin Woltzen...

– Lionel. – Angus lhe dirigiu um olhar duro - Não se faça de estúpido, por favor.

– Está bem. – Lionel bufou – Eu entendi. Mas o senhor não pode estar falando sério, presidente. Eu sou jovem demais, inexperiente demais e ainda estou no meu primeiro mandato!

– E já alcançou maior repercussão que metade dos parlamentares velhos. Você tem potencial, caro Vegger, eu não teria investido tanto em sua campanha se não acreditasse nisso. Claro que é um risco grande, é bem possível que perca essas eleições, mas é minha melhor opção.

Lionel refletiu por um momento, em silêncio. Ainda estava absorto com a ideia proposta pelo presidente do seu partido. É claro que ele almejava ser Primeiro-Ministro, mas isso demandaria uns trinta ou quarenta anos de carreira. Em um cargo tão alto, ele certamente faria a diferença.

– Preciso pensar, Herrmann. É informação demais para só uma manhã.

– Pois bem. Pense, mas não demais. Aquele discurso que você fez na televisão ontem, falando sobre o genocídio no Brasil, teve uma repercussão gigantesca, tanto no meio político quanto na Internet. As pessoas estão falando de você, Lionel. Bem ou mal, falam de você. Agarre esta oportunidade antes que mudem de assunto.

A limusine parou ao pé das escadas do Parlamento, e Angus se preparou para descer.

– Presidente, só mais uma coisa. – Lionel chamou antes que saíssem. – Que relação tem a morte da rainha com as eleições¿

– Ah, sim, eu já ia me esquecendo. – bateu no vidro que separa o motorista do passageiro – James, dê mais uma volta no quarteirão, por favor. – O carro arrancou e o velho se virou novamente para o homem negro. – Escute com atenção. Isso que vou lhe dizer fica apenas entre nós, e nem mesmo nossos amigos do Partido poderão saber.

– Certo. – Ele balançou a cabeça.

– Eu soube de uma fonte segura que Belford e sua corja de conservadores estão tramando com o futuro rei. Há pelo menos duzentos anos que, oficialmente, o monarca não tem influência sobre o governo, mas qualquer um que tenha dinheiro tem poder, não é mesmo¿ - Esboçou um sorriso astuto – A informação é de que Willian odeia os mutantes tanto quanto Belford, e pretende abrir mão de boa parte do seu tesouro para investir na causa do Extermínio. Ao mesmo tempo, os partidários do balofo pretendem legalizar e estatizar o serviço, tornando essa causa nojenta algo oficial. E também aprovarão o projeto de lei que anula a hereditariedade do Príncipe Charles, para que Willian seja rei assim que a avó morrer.

– Que filhos da puta! – Lionel se exaltou. – A ideia da estatização foi minha, e era para PROTEGER os super-dotados, não fazer um banho de sangue!

– Eu sei muito bem, e concordo plenamente. – Angus tocou o ombro dele. O carro diminuiu a velocidade e parou. Haviam chegado novamente à entrada. – E é por isso que eu preciso de você lá em cima, Lionel. Você, e mais ninguém.

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O Capitão caminhava posudo diante deles, com o peito estufado e as mãos para trás. Era branco com o rosto bem barbeado, de estatura mediana e um pouco forte. Seus olhos eram castanho-escuros, da mesma cor do cabelo, que estava aparado rente como de um recruta do Exército. Usava uma boina preta sobre a cabeça, pendendo para o lado do broche com logotipo da EEM. Calça, camisa, coturnos e gandola também eram pretos, formando um conjunto realmente intimidador. Darlla achou graça ao imaginar-se vestida assim. Logo ela, que passara os últimos quinze anos de sua vida vestindo o branco-pérola da Escola de Strauss. Bom, ao menos poderia usar armas agora. O Capitão carregava duas pistolas, uma de cada lado do quadril. Havia duas facas embainhadas em cada coturno, elem de uma 12mm pendurada nas costas.

Os novatos, recém-comprados pelo Belford, estavam em formação lado a lado, enquanto o Capitão passava e ouvia as apresentações. Era um militarismo para o qual ela sempre estivera preparada, mas mesmo assim achava um tanto desnecessário.

– E você, loirinha, quem é¿ - o oficial perguntou. Ela percebeu que era um bom palmo mais alta que ele.

– SD Darlla apresentando-se. – ela disse, erguendo o braço em continência e então abaixando-o.

– Qual seria o seu poder, Darlla¿

– Supervelocidade, senhor.

– Ah, sim. Eu ouvi falar de você. Vai precisar de coturnos especiais, eu imagino. E também de uma farda especial. Bem, eu vou encaminhar o pedido para cima. Espero que seja útil, menina rápida.

– Serei, senhor.

– Certo. Descansar.

Após meia hora de apresentações, o Capitão se afastou um pouco e começou a falar.

– Caros SDs e soldados novos, sejam bem vindos ao Exército de Extermínio de Mutantes. Antes de tudo, é importante entender quem e o quê somos. Servimos para matar aberrações, isso é simples. A grande questão é: por que o fazer¿ Por que matar alguém de minha própria espécie¿ A resposta é: não os matamos por que são mutantes, e sim porque são um problema. Hitler não matou judeus por causa de sua raça ou língua, mas sim porque eram um problema para a economia da Alemanha!

“Vocês aqui, alguns voluntários e outros de Escolas especiais, assumiram o compromisso de servir a Humanidade com seus dons, e fazer o melhor pela manutenção da paz. Eles, no entanto, se escondem nos esgotos de nossa cidade, espalham o terror e se recusam a fazer experimentos genéticos. Pois bem, que fujam. Nós os acharemos e destruiremos, com sempre acontece. Hoje recebemos cento e três novatos, sendo trinta das Escolas. Vocês estão liberados por hora, até que recebam uma missão. Aos voluntários, sigam-me por aqui, que eu os dividirei nas turmas de treinamento.”

A turma foi dividida, enquanto a elite ficava no grande galpão da EEM e a escória seguia para o seu treinamento básico. Os voluntários eram sempre os piores combatentes, os piores manipuladores de armas e os primeiros a morrer. Darlla sentia-se com sorte por ter sido encontrada por Phillip Strauss quando ainda era criança.

Havia um milhar de aparelhos de ginástica no galpão, mas ela não queria fazer nada. Sentou-se em um banco e passou a fitar as mangas de seu moletom branco da Escola.

– Vai sentir saudades de usar essa cor, Lebre¿ - Ela reconheceu o sotaque alemão antes de ver o homem. Johannes vinha caminhando na direção dela, alto, louro e deliciosamente forte. Seus olhos eram azuis, como ditava o ideal de beleza alemão, e seus cabelos longos haviam sido cortados até ficar parecendo um soldado.

– Ainda não sei, Morte. Com certeza vai ser estranho usar essa coisa preta da EEM, mas eu devo me acostumar rápido.

– Não faz tanta diferença para mim. – ele se sentou ao lado dela – Só estive na Escola por quatro anos, até sair ontem. Por falar nisso, onde esteve noite passada¿ Te procurei loucamente para exibir meu novo corte de cabelo. – sorriu.

– Seu cabelo está lindo, Morte. – ela devolveu o sorriso – O esquisitão do Belford me levou para jantar com ele e o pai ontem. Está me pagando mil libras por hora para dizer por aí que somos namorados.

– Você e Jeff Belford¿ - Johannes gargalhou – Que coisa ridícula, por Deus. E você o beijou¿

– Está bem interessado em saber quem eu beijo, Morte. – dirigiu a ele um olhar malicioso – Será que estou sentindo cheiro de ciúmes¿ - Ambos gargalharam. – Mas não, não o beijei. Aquele troncudo tem cara de sapo, e eu nunca acreditei nessa história de que viram príncipes. – gargalharam mais uma vez.

Um momento de silencio pairou entre eles. Aqui e ali SDs exibiam suas habilidades, e Darlla pensou em como seria interessante se Johannes resolvesse exibir a sua.

– Isso é muito estranho. – ele disse, olhando para lugar nenhum.

– O quê¿

– Isso de estarmos no EMM. Durante anos fomos preparados só para isso, mas... Bom, eu não quero te ver morrer em combate. Também não quero morrer.

– Não tenha medo, amigo. Não vamos morrer, vamos dominar o mundo. – ela sorriu carinhosamente e lhe deu um beijo no rosto.

Darlla não compartilhava das inseguranças da maioria dos seus colegas, muito provavelmente porque nunca tivera a chance de ser insegura. Fora encontrada por Strauss aos três anos, pouco depois de atemorizar a população de Reikjavýck com suas corridas que derrubavam paredes. Aprendera as letras, as línguas, as ciências e o combate corporal com os instrutores da Escola, e a canalizar o melhor do seu poder com o próprio Phillip. Johannes, no entanto, já tinha dezoito anos quando chegou, e para ele tudo era muito mais difícil. Ele ainda tinha medo de morrer.

Pela ação de algum telepata – Darlla soube disso porque Johannes foi o único não atingido – Todos foram forçados a olhar para o centro do galpão. Conforme a ordem, aproximaram-se de quem os chamava.

– Bom dia a todos! – Bradou um oficial baixo e forte, com a pele acobreada e um bigode espesso no rosto. – Sou o Coronel Sdhamma-Ali, comandante dos SDs desta unidade. Como alguns aqui já perceberam, sou um telepata, e tenho uma missão para vocês.

“Recentemente, um destacamento foi enviado ao Brasil à procura de um buraco de rato. – era como chamavam os esconderijos da Resistência – Perseguimos as aberrações pela cidade de São Paulo até seu aeroporto, por onde eles pretendiam fugir para qualquer lugar. Tínhamos um exército de dois mil soldados, e mais cinquenta SDs. Mesmo assim, todos foram mortos pela ação de um único mutante.”

“Ainda não conhecemos sua identidade, mas sabemos que possui o poder de manipular gelo em escala nunca antes vista. Logicamente, isso não pode ficar assim. Enviarei um grupo seleto de SDs para encontrar o esconderijo da Resistência e cometer algumas execuções, como um bom preço a pagar pelos nossos homens. Logicamente, os outros tentarão matá-los, então é bom ser rápido em fugir. Quando retornarem, quero que tragam esse mutante do gelo. Tragam-no vivo, não se esqueçam disso. Seria interessante ter alguém tão poderoso do nosso lado.”

– Mas se esse mutante é tão poderoso, como poderemos trazê-lo sem ser mortos¿ - Alguém perguntou em qualquer lugar. – E como poderemos passar pelas defesas da Resistência¿ Eles devem ser poderosos.

– Se está dizendo isso, meu jovem, é porque você certamente não é capaz. – O coronel respondeu – Realmente não precisamos de trinta SDs para este trabalho. Não vou dar um número exato, mas poucos bastariam. Preciso de voluntários. Quem se considera capaz¿

– Eu vou, senhor! – Uma indiana magricela se apresentou. Darlla não conseguia se lembrar do seu nome, mas sabia que era da Escola.

– Eu também vou! – Deste ela se lembrava. Era Grupius, o negro francês capaz de manipular a Matéria.

– Nós vamos! – Dois garotos ruivos, certamente irmãos gêmeos, apresentaram-se. A princípio, não aparentavam ter nada de especial, mas ela notou que ambos tinham olhos estreitos como os de um gato.

– Ora, então temos cinco. – o coronel tornou a falar, com um sorriso no rosto. – Muito bem, senhores, preciso de mais um. Apenas um. Eu soube de um rapaz telepático... Capaz de induzir suicídios. Será que ele não é voluntário¿

– Eu vou. – Johannes se respondeu de trás da multidão. – Mas só se a Lebre também vier.

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A ocasião era tão rara quanto propícia. Já havia quinze meses desde que o Alto Escalão estivera completo pela última vez, mas agora, finalmente os cinco estavam lá. Uma mesa de ferro velha e enferrujada estava no centro da tenda, e em volta dela os generais da Resistência sentavam-se em bancos e cadeiras de ferro ou plástico. Aquilo era o oposto de sofisticação, Lionel pensou. Mas para quem vivia nos esgotos, certamente era alguma coisa.

Havia um acordo silencioso em que todos aceitavam uma estratificação interna no Alto Escalão: Salize era o líder, logicamente, e abaixo dele estavam Alys e Boobba, e só então Tyra e Aedan. Todos eram comandantes, e tinham seus direitos e deveres a mais em relação ao bando de mutantes. Salize estava falando.

– Precisei mexer na mente desta menina nova.

– Amanda. – Aedan disse. Ainda estava cabisbaixo e melancólico desde que perdera sua noiva, e agora só vivia em função da novata de gelo.

– Sim. Amanda. – O líder prosseguiu. – Ela tem um dom incrível, mas é apenas uma criança assustada. Como vocês viram, ela congelou toda a água desses esgotos ao primeiro toque, e isso não foi nem de perto uma demonstração de todas as suas forças. Não vamos nos esquecer dos dois mil homens que ela matou no Brasil, inclusive alguns nossos.

– Ela não fez por mal, Salize. – O farejador interveio.

– Não importa se foi por bem ou por mal, mas sim que ela é uma ameaça à vida onde estiver. Pois bem, depois de seis dias procurando, consegui encontrar a fonte psíquica do seu poder. Cuidadosamente ergui uma fortaleza lá dentro, onde aprisionei noventa por cento de sua capacidade.

– Noventa por cento¿ Mas de que serve um poder que não se pode usar¿ - Aedan insistiu.

– Isso não é problema, Aedan. – Tyra falou. – Quando cheguei aqui, Salize me fez a mesma coisa, e eu nem era tão poderosa assim.

– Exato. – O líder continuou. – Os poderes não ficam aprisionados para sempre, mas são uma barreira segura neste momento inicial. Não sei por quanto tempo ela vai precisar ser treinada, mas terá que aprender a controlar essa habilidade. As muralhas cairão naturalmente ao longo dos anos, conforme ela amadureça como SD.

– Bom, se é assim, eu aceito. – Aedan disse por fim.

– É claro que aceita. – Salize sussurrou. – E você, Boobba, sei que tem algo a nos dizer.

– Aliás, foi um belo discurso o do senador Vegger. – Alys comentou.

– Obrigado, Alys, e é justamente sobre este senador que pretendo falar. Estive em uma reunião do Parlamento hoje, e o objeto de discussão foi uma lei um tanto perturbadora. Eu já dera essa ideia há meses, mas fui vencido em todas as eleições. Pois bem, agora o Partido Conservador veio com a ideia de estatizar o EEM, mas ao contrário do que eu queria, é para investir mais e matar mais de nós.

– Um absurdo. – Salize disse com a voz melancólica.

– Conservadores filhos de uma puta! – Tyra silvou. – Boobba, por favor, deixe-me ir até esse Parlamento e torrar a bunda daquele porco do Belford.

– Não sabe o quanto eu gostaria que isso acontecesse, querida, mas não é assim que se resolve as coisas lá em cima. Infelizmente, as notícias não param por aí. A próxima lei a ser aprovada garante a sucessão de Willian ao trono imediatamente, pulando a hereditariedade de Charles. Este é moderado como a mãe foi, certamente não contribuiria para o massacre; mas Willian é jovem, cheio de energia e nos odeia simplesmente por existirmos. Então me candidatei a Primeiro-Ministro. Quem sabe, se eu for eleito, nossa situação possa melhorar.

– Um rei rico aliado a um Parlamento poderoso é tudo de que nós não precisamos. – Salize refletiu. – Eu conheci Charles na juventude, é um bom homem. Willian também é, mas sua mente já foi corrompida pela opinião da Mídia. Espero que vença, Boobba.

Os outros menearam a cabeça com um ar vago de esperança, mas não pareciam estar muito confiantes. Lionel não podia culpá-los por isso. Aparentemente, lutar contra senadores era mil vezes mais difícil que matar milhares de soldados inimig0s. Alguns assuntos de menor importância foram levantados e rapidamente resolvidos pela mente brilhante do líder. Por fim, este disse:

– Já está tarde, e todos estamos cansados. Podem ir cuidar das suas vidas. Menos você, Aedan. Sei que tem algo a conversar comigo em particular.

O farejador anuiu com a cabeça, fazendo um olhar surpreso, mas nem tanto. Era óbvio que Salize sabia de todas as intenções dos seus comandados.

– Eu devo me despedir de vocês. – Lionel disse. – Vou passar a noite lá em cima.

– Seu namorado vai ter que esperar dessa vez, Boobba. – Aedan chamou. – Amanda quer falar com você.

– Comigo¿ - ele franziu a sobrancelha. - O que ela quer¿

– Não sei, não me disse. Mas está te esperando na Ala dos Novatos.

Lionel saiu da tenda do Alto Escalão e cumprimentou os gêmeos Tannen, seguindo pelos corredores malcheirosos daquele esconderijo. Os novatos dormiam em uma enorme tenda comum, com camas enfileiradas. Hoje quem estava de guarda era o Elétron.

– Boa noite, Senhor Boobba. – Ele cumprimentou. – Como tem passado¿

– Tenho ido. – Respondeu com um sorriso murcho. – Eu soube que Amanda me chamou. Onde a encontro¿

O mestre da eletricidade o guiou até uma série de beliches de madeira velha fixados na parede. Tudo ali fedia mais que o normal, mas ninguém reclamava. Lionel sentiu-se mal por viver com tanto luxo em seu apartamento, enquanto esses coitados só comiam o pão que o diabo amassou.

– Amanda¿ - O temporizador chamou, depois que o Elétron se fora.

– Aqui, senhor. – Uma voz aguda e tímida sussurrou. Tinha o sotaque forte dos latino-americanos, mas ele conseguiria entender, afinal sua própria mãe era da Jamaica. Amanda estava sentada em um colchão de espuma sujo perto da parede.

– Olá, menina. Eu soube que você queria falar comigo. – Sentou-se ao lado dela.

– Sim. O senhor... O senhor pode viajar no tempo, não é verdade¿ Elétron me disse isso.

– É verdade sim. Fale um pouco mais alto, por favor.

– Então...- ela limpou a garganta. – Pode alterar fatos do passado, como nos filmes¿ Tem poder para isso¿

Lionel concordou com a cabeça, temendo a proposta que poderia vir.

– Senhor, aconteceu algo terrível há alguns meses. Eu estava em casa, em São Paulo, mas começou uma troca de tiros nas redondezas. Estava assustada e com muito medo, então... Então...

– Matou seiscentas pessoas congeladas. – ele concluiu. – E agora quer que eu volte no tempo e a impeça de fazê-lo.

– Sim. – voltou a sussurrar. – Meus pais estavam lá, senhor. Foi terrível. – e começou a chorar.

– Eu sinto muito, pequena. – Lionel chegou mais perto e abraçou a menina com cuidado. – Eu realmente sinto, mas não posso te ajudar.

– Por que não¿ - seus olhos lacrimejantes se encontraram com os dele.

– Sinceramente, eu não sei. Mas sou incapaz de evitar mortes. Entenda, posso evitar que alguém quase morra, como quando Tyra foi trespassada por uma lança e eu intervi; mas depois que o universo decide que uma vida chegou ao fim, não posso fazer mais nada.

“Eu tentei, pode acreditar. Foi a primeira coisa que eu tentei. Quando eu tinha doze anos, meu pai partiu deste mundo. Não era muito velho, mas sempre tivera o coração fraco e trabalhava demais. Enquanto eu chorava em seu velório, senti o tempo parar à minha volta, e então vi um portal se formar à minha frente. Passei por ele, e do outro lado meu pai estava vivo e bem, assobiando tranquilamente uma música dos Beatles. Eu... eu tentei intervir, tentei mudar o rumo dos fatos, mas isso só fez com que morresse de uma maneira diferente.”

Decidiu poupá-la dos detalhes mais macabros daquele dia. O velho Vegger havia caído da escada e quebrado a cabeça, mas Lionel o impediu de subir. Pouco depois, um acidente com um conjunto novo de facas o fez perder a vida. Ele tentou mais vezes, isolando o pai de qualquer fatalidade, mas não conseguiu. Uma explosão do botijão de gás, a queda de uma viga do teto, uma queimadura gravíssima com água fervente. Na sexta vez ele morreu de infarto, então Lionel desistiu.

– Tentei mais vezes depois disso. – Continuou, reparando que a menina parara de chorar. – Uma avó, um tio e até mesmo algumas celebridades. Fracassei em todas as vezes. Por fim. Minha mãe e meu irmão mais velho. Não dá. Não pode ser feito. Eu sinto muito, Amanda.

– Entendo, senhor. Sinto muito pela perda da sua família.

– Ah, sim. Obrigado. – Ele se levantou. – Se me permite uma dica, filha, o ideal para superar uma perda tremenda é arranjar algo a que se dedicar totalmente. Entregue-se de corpo e alma a este treinamento, torne-se a melhor e mais habilidosa SD. Tudo o que fizer, faça como se fosse uma homenagem aos seus pais.

– Farei, senhor. Obrigado.

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O som das hélices de um helicóptero o levantou do sono. Um rapaz negro de quinze anos se pôs os óculos no rosto e saiu andando pela casa. O quarto de Sidney ficava ao lado do seu, mas ele nunca entrava lá. O irmão mais velho não gostava de ser incomodado, então o rapaz preferiu bater na porta.

– O que há, Boobba¿ - Sidney perguntou, mas então já sabia. O olhar no seu rosto mostrou que identificara o barulho. Estava de pijamas e com o rosto amassado de sono, como o irmão, mas isso não importava agora. – Já chamou a mãe¿ - o mais novo negou com a cabeça. – Então chame. Rápido, vou buscar a chave do carro.

Ele bateu vinte vezes na porta antes que a senhora Parlea Vegger abrisse, mas a senhora negra que gostava de bandanas floridas logo entendeu o que se passava.

– Venha logo, mãe. Sidney já foi buscar o carro, precisamos partir.

– Mas agora¿ Espere, preciso pegar algumas mudas de roupa para vocês.

– Não há tempo, mãe! – ele a agarrou pelo braço. Venha, vamos descer. A qualquer hora eles estarão na porta.

Saíram tão apressados que a barra da camisola da mãe ficou presa na porta do carro. Ela abriu, puxou-a e fechou novamente. Sidney dirigia nervosamente, olhando para todos os lados em busca de qualquer sinal deles. Já era a terceira vez que vinham pegá-los, mas até então fugir de carro fora suficiente. Os farejadores eram bons com o nariz, mas não muito inteligentes. Assim que chegassem e vissem casa vazia, partiriam de vez. Os Vegger, no entanto, precisariam passar algumas semanas em outra cidade, e então comprar uma casa nova em Londres.

Os faróis do helicóptero incidiram por trás do carro, iluminando com uma luz quase cegante. Um megafone chiou e a voz começou a berrar.

– MUTANTE, PARE O CARRO IMEDIATAMENTE! VOCÊ ACABA DE SER CAPTURADO. NÃO HÁ CHANCE!

Sidney pisou fundo, fazendo os pneus chiarem contra o asfalto. Estavam todos desesperados. Era a primeira vez que o helicóptero os seguia.

– MUTANTE, PARE O CARRO E APRESENTE-SE! O EXÉRCITO TEM ORDENS DE LEVÁ-LO PRISIONEIRO POR VIOLAR A LEI DE SEGURANÇA PÚBLICA!

Malditos mentirosos, o mutante pensou. Ele não havia violado lei alguma, e aquilo nem de longe era o Exército. Tudo o que ele queria era parar o tempo e escapar daquilo, mas seus poderes tinham vontade própria, e não costumavam aparecer em momentos úteis. Estava sentado no banco de trás com a mãe, agarrando com força suas mãos trêmulas de medo.

Um som oco passou por cima do carro, rápido como um tiro, e então havia um homem alado de pé à frente deles. Sidney freou bruscamente o carro, que deslizou de lado até parar. Aquilo que parecia ser um anjo vestia preto da cabeça aos pés, mas suas asas eram imensas e brancas como pérolas. Estava escuro demais para ver seu rosto, mas uma clava cintilante era empunhada em sua mão direita. Ele saltou em vôo na direção do carro, com a arma em riste, e antes que Sidney pudesse retomar o controle, quebrou o pára-brisas como se fosse uma casca de ovo.

Parlea Vegger gritou em desespero ao ver seu filho mais velho inconsciente – talvez morto – estatelado no banco da frente, com cacos de vidro penetrando sua pele e milhares de cortes jorrando sangue.

– EU AVISEI, MUTANTE. DEVERIA TER PARADO O CARRO ANTES. AGORA SAIA, OU MATAREMOS SUA MÃE TAMBÉM.

Sem enxergar uma saída, ele abriu a porta do carro. Sua mãe o puxou pelo braço, soluçando violentamente.

– Não saia, Boobba. Eles vão te levar e fazer experimentos até sua morte.

– Preciso arriscar, mãe. É isso ou matarão você. – Seus olhos se encheram de lágrimas. Ele beijou a mão da senhora Vegger e a soltou. – Vou sair. Desculpe por isso, eu não queria fazer mal a ninguém.

A luz veio diretamente sobre seus olhos quando ele saiu. Uma dúzia de soldados surgiu de todos os lados, mas nenhum deles tinha asas.

– MUITO BEM, MUTANTE. AGORA SE ENTREGUE CALMAMENTE AOS MEUS HOMENS. ELES O LEVARÃO A UM LUGAR SEGURO.

Ele levantou os braços em sinal de rendição. Talvez não houvesse uma escapatória. Uma miscelânea de sons ecoava em sua mente: o rugir das asas do helicóptero, o som metálico das algemas que os soldados tiravam dos bolsos e o choro histérico de sua mãe. E um tiro. Ele se virou, mais rápido do que poderia esperar, e então viu tudo. Sua mãe estava morta, e ao lado dela um soldado ria e encaixava sua pistola de volta no coldre.

Neste momento, nada mais importava. Sua família estava morta, e tudo por sua causa. Sempre que usava os poderes perto de alguém, os farejadores detectavam sua presença e o caçavam; e agora esta caçada estava terminada. Sua mãe, a pessoa que ele mais amava no mundo, estava morta por sua culpa. O mundo parou de girar e ele gritou.


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