Ignored escrita por The Corsarian


Capítulo 1
A Colheita




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Acordei.Lentamente abri os olhos, dando de cara com o teto branco.Mais um dia.Olhei para o relógio na cabeceira.Coisa que nos dávamos o luxo de possuir, já que éramos tão ricos que tínhamos que comprar coisas imprestáveis para conseguir acabar com as sobras no final do mês.Eram dez da manhã, em um dia que podíamos nos permitir ficar na cama até mais tarde.

O dia da Colheita.

Bocejei e coloquei meus pés para fora do colchão macio, deslizando-os para dentro de minha pantufa macia.Mais uma coisa da qual não precisávamos.Andei até o banheiro, escovando os dentes e os cabelos, para logo após retirar meu fino pijama de seda e me enfiar debaixo do jato quente de água do chuveiro.

Tomei um curto banho, e logo me troquei, colocando um vestido verde, feito sob medida para mim, para usá-lo especialmente no dia da Colheita.O que era uma idiotice completa, porque eu o usava somente por algumas horas, e depois o jogava fora, para fazer mais um vestido sob medida para o próximo ano.Para a próxima Colheita.

Outra coisa que podíamos ter.

Coloquei uma sapatilha de veludo negro, e prendi meus longos cabelos castanhos num rabo de cavalo alto, como eu sempre fazia.Andei para fora de meu quarto e desci as escadas, já escutando o costumeiro burburinho de pessoas falando na sala de estar, inclusive a voz feminina com o sotaque afetado da Capital.Affinie Blink, a mulher negra de cabelos absurdamente coloridos que fazia a Colheita no Distrito 4 todos os anos.

Cheguei a sala de estar, e foi como sempre havia sido.Fui completamente ignorada.Suspirei e andei até a cozinha, onde fiz meu próprio prato e me dirigi a porta dos fundos.Fui completamente ignorada em todo o percurso, até mesmo pelos empregados da casa.

Abri a grande porta de carvalho que dava para os jardins do fundo, e me sentei no degrau que ficava de encontro a porta.Olhei para os pãezinhos e as frutas cuidadosamente cortadas em cubinhos, para o potinho repleto de chocolate, para os cubos de queijo, presunto e carne seca.Senti nojo de mim mesma, por estar comendo aquilo, enquanto tinha gente se forçando a comer lixo para sobreviver.Gente que usava roupas rasgadas para a Colheita, enquanto eu usava um vestido feito sob medida para mim, que veio direto da Capital.Gente que gerenciava o dinheiro com extremo cuidado e cautela, para poder durar mais um dia, enquanto eu tinha tanto dinheiro, que precisava gastar a toa para não sobrar nada.

Sacudi a cabeça e enfiei um pedacinho de maçã no chocolate, colocando-o na boca em seguida.

Em minutos eu havia limpado o prato.Me levantei do degrau, passei pela porta aberta, fui até a cozinha e lavei a louça que eu havia sujado, não deixando pistas de que algum dia eu havia comido.

Voltei a sala de estar, pegando minha bolsa e enfiando algumas frutas e alguns pães dentro dela.Novamente fui ignorada completamente.

Saí de casa e andei sobre meus próprios pés até o centro da cidade.

O centro da cidade, normalmente cheio, estava completamente vazio, com algumas poucas pessoas que se aventuravam para fora da segurança de suas casas.Suspirei e andei por uma ruela estreita, que levava a parte mais pobre da cidade.Nem mesmo lá havia um sopro de agitação.Todas as casas tinham suas portas fechadas, e algumas crianças brincavam no lago, nadando, batendo os bracinhos finos demais contra a água.Suspirei e andei até o lago.

Algumas crianças me olharam, provavelmente pensando no que eu estaria fazendo numa parte tão feia da cidade como esta.Porque alguém tão rica estaria aqui?Até mesmo as crianças sabiam que havia uma grande diferença entre nós.Enquanto algumas daquelas crianças não alcançariam nem vinte quilos em uma balança, eu provavelmente atingiria sessenta.Enquanto algumas delas provavelmente não jantaram na noite anterior, eu comi até não poder mais.

Mais uma vez odiei a injustiça do mundo.Mais uma vez me irritei com tudo e com todos.

-Vejo que a patricinha veio.-Ouvi a voz alta, clara e rouca atrás de mim.Sorri.

-Você tem bons olhos.-Respondi, enquanto Dicent Morff andava até ficar parado em frente de mim.

-É claro que tenho.-Ele respondeu com um estampado no rosto.Sorri de volta e enfiei a mão na bolsa que trazia comigo, tirando dali uma maçã.

-Espero que também tenha um bom paladar, para poder apreciar o sabor dessa iguaria.-Eu disse jogando a maçã para Dicent, que habilmente agarrou-a no ar.

-Posso não ter o paladar.-Ele falou dando uma generosa mordida na maçã.-Mas a fome compensa.

Rimos.Não que fosse realmente engraçado, mas sempre achamos que seria melhor rirmos desse tipo de coisa, para não ficarmos bravos ou tristes.

Dicent passou o braço forte por meus ombros.

-Vamos dar uma volta por aí, patricinha.-Ele disse.Assenti e andamos por um curto período de tempo, até chegarmos a praia, com sua areia branca e a imensidão do mar.Inspirei o cheiro da brisa.Dicent ao meu lado fez o mesmo.

Fitei-o por um tempo.Dicent era membro da classe mais pobre da cidade, era filho único e lutava para alimentar seus pais e a si mesmo, quebrando todas as regras possíveis trabalhando antes dos dezoito, pegando tésseras todos os anos para toda a sua família.Ele era um garoto de dezessete anos, alto, forte, de cabelos cor de mel e olhos verdes, como todos da Aldeia, o nome dado àquela parte pobre da cidade.Dicent era um cara legal, simpático e bonito, mas tinha uma dificuldade em fazer amizades, por isso eu era sua única amiga.

E era praticamente isso que o mantinha vivo.Se não fosse os suprimentos diários de frutas e pães que eu lhe dava, eu não saberia onde Dicent estaria agora.Talvez morto.

Olhei para seu rosto.

-Affinie está lá em casa.-Murmurei.Ele me olhou.-Ela está com cabelos verdes esse ano.

-Não sei como consegue suportar aquela mulher.-Suspirou Dicent.Dei de ombros.

-Não sei como consigo suportar aquela família.-Retruquei.Ele me fitou por mais um longo tmepo, sem responder, e então voltou a olhar o horizonte.

-Talvez seja a comida.-Dicent sugeriu.

-Talvez seja.

Ficamos em silêncio, olhando a linha transparente que separava o céu do mar.Somente aquele aroma, o som das ondas batendo na areia, a areia em meus pés, somente aquilo conseguia me acalmar, me colocar em um estado de torpor no qual eu ficava desconectada do mundo, da minha vida.Somente aquilo me tranquilizava.

-Esse é meu último ano.-Falou Dicent, de repente.Eu sabia do que ele estava falando.Eu e Dicent tínhamos a mesma idade no momento, dezessete anos, mas a única diferença era que ele faria dezoito no próximo mês, e eu faria dezoito apenas no próximo ano.

Isso significava que esse seria o último ano de Dicent na Colheita, o último ano em que ele poderia pegar tésseras, o último ano em que ele trabalharia ilegalmente.Suspirei.

-Eu ainda terei que aguentar mais um ano.-Eu disse, quase com tédio.Afinal as chances de eu ser sorteada eram quase nulas.Eu não tinha com o que me preocupar.

Dicent soltou uma risada sem humor.Aquela risada que dávamos quando tudo ficava desconfortável.Fitei-o novamente, e percebi que ele já me olhava.

-Temos que voltar.-Rompi o silêncio constrangedor que se seguiu.Entreguei minha mochila repleta de suprimentos para ele.

Dicent estava pronto para ir embora, mas agarrei seu pulso, e enfiei a mão na parte de fora da mochila, tirando dali um chocolate.Parti-o ao meio, e entreguei uma parte a ele.

-Que sorte esteja sempre ao seu favor.-Falei dando uma dentada no chocolate.Dicent sorriu, deu uma dentada no dele e se inclinou, beijando de leve minha bochecha.

-Até mais, patricinha.-E então ele saiu dali, andando calmamente em direção a Aldeia.

Fiquei mais um tempo fitando o mar, mas logo andei até em casa, fazendo todo o percurso de trinta minutos até o centro a pé, mais os vinte minutos do centro da cidade até a Aldeia dos Vitoriosos sobre meus pés também.

Cheguei a Aldeia dos Vitoriosos e olhei para as casas lindamente construídas.Doze delas estavam ocupadas, duas delas,ocupadas uma por meu pai, minha mãe, minha irmã e eu, e a outra por meu irmão, e minha cunhada.Ponderei a hipótese de ir até a casa de meu irmão, mas logo vi que meu pai, minha mãe e minha irmã saiam de casa, caminhando até o carro.Minha mãe me avistou e então me chamou:

-Annelise, venha para o carro imediatamente!Temos que ir para a praça, já estamos atrasados.

Suspirei e andei até o carro.Enquanto o resto de minha família mantinham uma conversa animada, eu era completamente ignorada.Saímos do carro, e logo uma equipe de filmagem nos encontrou.Ou melhor, encontrou meu pai.Entrevistaram-no como sempre faziam, e então perguntaram:

-E quem são estes com você?

Meu pai de prontidão respondeu:

-Ora, esta aqui é minha esposa, uma médica muito talentosa, essa mulher;essa outra mais aqui-Dizia ele apontando para minha irmã.- essa é minha filha, as pinturas dela são as melhores de toda Panem!

E então a equipe pareceu me notar.

-E essa outra aqui, a baixinha, quem é?

Meu pai me olhou.E em seus olhos pude ver sua decepção.O fato de eu não ser especial como toda a família me tornava invisível.E para me lembrar disso, meu pai responde rudemente a equipe:

-Ninguém importante.

Então ele me empurrou para a fila onde eu me inscreveria mais uma vez para os Jogos Vorazes.Por alguma razão, o ódio tomou conta de mim.Como ele conseguia ignorar a própria filha?

Apenas suspirei mais uma vez, e andei até o meu lugar na fila, engolindo tudo, como sempre.

Aceitando mais uma vez a realidade: Eu era inútil.


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Notas finais do capítulo

Espero que gostem ;)



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