Rede de Mentiras escrita por Gaby Molina


Capítulo 5
Capítulo 5 - Recaída


Notas iniciais do capítulo

Oooi :33



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You know, you're not foolin' anyone

When you become

Somebody else 'round everyone else

You're watchin' your back like you can't relax

You're tryin' to be cool

You look like a fool to me.

— Complicated, Avril Lavigne

Clarissa

Já se passara uma semana desde que eu chegara a Carmen Hallow. Com isso, fazia exatamente uma semana que eu não dormia direito. Saí das cobertas, frustrada, e vesti uma blusa branca e calça jeans. Vesti uma jaqueta grossa por cima, o lugar costumava ser bem mais frio à noite. Levei meu livro, sem saber direito aonde estava indo.

Desci as escadas e resolvi ir até o jardim. Alguns postes ficavam acesos de madrugada, mas eu não sabia por quê. Continuei andando, até ouvir:

— Clarissa?!

Reconheci a voz, mas não encontrei seu dono quando olhei em volta.

—... Aqui em cima!

Fletcher estava em cima do telhado. Estreitei os olhos.

— Por que diabos...?

— Shhh! — ele colocou um dedo nos lábios. — Não faça barulho, o quarto da sra. Lover é logo ali embaixo.

Ele não me convidara, mas eu me aproximei mesmo assim. Coloquei o pé no apoio da janela mais baixa, e fiz o mesmo até chegar ao telhado.

— Você não dorme? — ergui uma sobrancelha. Tratei de manter meu tom baixo.

Ele fez que não com a cabeça.

— Eu queria. Queria mesmo, acredite em mim. Mas é como se eu tivesse tomado dez xícaras de café. Constantemente. — ao notar meu olhar confuso, ele completou: — Eu tenho TDAH.

— Ah — soltei, sem saber direito o que dizer. Eu sabia o que era TDAH, mas o que deveria falar? "Bem, que merda para você"? — Então você fica aqui?

— É — ele suspirou. — Então eu fico aqui. Assisto ao por-do-sol.

— Sério? Esse é um costume legal.

— É, é uma ótima lembrança de "Olha, o sol se foi. De novo".

E eu continuo aqui, eu sentia que ele queria completar. Bem, aquela era uma visão pessimista do por-do-sol.

Sem saber o que responder, fiquei observando-o por um momento. Ali, na luz fraca, eu o vi melhor do que o vira na última semana. Notei o cabelo sem corte, longo demais para ser considerado normal, porém curto demais para ser considerado longo, os olhos escuros parados em um ponto qualquer contornados por bolsas roxas. A blusa preta larga, a calça jeans rasgada. Os lábios finos comprimidos, quase sem cor, provavelmente por causa do frio.

As outras pessoas o viam como alguém normal, superior mentalmente. Até bem-humorado às vezes. E eu não sabia se era porque eu sabia sobre seu segredo, mas algo nele me incomodava. Uma espécie de escuridão. Não como o jeito resmungão de Clarke, não como qualquer que fosse o problema de Elena. Toda vez que ele sorria ou fazia uma piada parecia uma escapatória do garoto das olheiras e teorias depressivas sobre o sol que se escondia no telhado de madrugada.

—... E você? Gosta de por-do-sóis? — ele fez uma pausa. — Esse é o plural certo? Pores-do-sol. Pores-dos-sóis. Por-dos-sóis.

Esbocei um sorriso. Eu realmente não podia me importar menos com por-do-sóis. Ou o que fosse. Principalmente considerando que eu morava na Inglaterra, eles eram bem ordinários.

— Eles são bem legais — dei de ombros.

— Esse livro — ele apontou para o meu livro de Bukowski. — Já o leu?

— Sim — menti, lembrando que tinha mentido a Ethan.

— O final é bom?

— É razoável — Ele soltou um riso. — O que foi?

— Você é como eu. Acha que as pessoas não vão perceber o quão fodida você é — ele esboçou um sorriso. — Mas quer saber um segredo? Elas sempre percebem, mais cedo ou mais tarde. Ethan pode cair na fachada que você quer que ele acredite, mas eu não.

Fletcher

Clarissa não disse nada por um longo momento. Seu olhar expressava exatamente o que se passava em sua cabeça: ela havia sido pega. Assim, simplesmente, sem aviso prévio. Sua guarda estava alta, mas eu sabia que a havia atingido. Talvez por ter dito que ela era fodida, ou por ter sugerido implicitamente que ela manipulava caras para conseguir a atenção deles, mas eu a havia atingido.

— Fletcher...

— Você descobriu meu segredo. Eu descobri o seu. Francamente, não foi tão difícil. "Eu não entendi o livro"? — agora eu estava na defensiva. — Qual é. Aquela merda era ininteligível e sem enredo e você sabe disso.

Consegui arrancar um riso dela.

— Sério? O livro de dois anos atrás? Aquilo foi feito para pseudohipsters idiotas.

Eu sorri.

— Viu? Essa era uma resposta bem melhor para você me dar, em vez de dar uma de pseudointelectual. Eu poderia até ter gostado de você.

— E daí? Você já tinha roubado minha pulseira.

— É, mas aí eu poderia pelo menos ter me sentido mal por isso.

Ela deu de ombros.

— Tudo bem. Eu não me sinto mal sobre mentir.

— Pare de mentir.

Os olhos dela se estreitaram.

— Como diabos...?

Eu sorri.

— Não vou contar. Descubra sozinha sua própria kriptonita.

— Sociopata.

— Já fui chamado de coisa pior.

— Amante de Madonna.

Franzi o cenho.

— Certo, agora você me ofendeu.

Ela sorriu.

* * *

Eventualmente, Clarissa esfregou as mãos nos braços e disse que tentaria dormir um pouco. Eu assenti e observei-a descer do telhado. Deitei-me ali, mas parecia que alguém colocara prendedores de roupa em minhas pálpebras para mantê-las abertas. Tirei uma bolinha de gude do bolso. Eu nem lembrava onde a tinha arrumado.

Não sei quanto tempo demorou até o sol nascer. Eu normalmente conseguia dormir pelo menos um pouco, mas não naquela noite. Saí dali. Não vi minha cara, fui direto para o café. Pelo menos estava com fome. Elena não parava de me encarar, ela decerto sabia que eu tivera uma noite infernal. Talvez esperasse que eu dissesse alguma coisa. Eu não diria, como sempre.

Geralmente não nos confortávamos nem nada. Ela sabia que eu estava mal e eu sabia que ela estava mal, e esse conhecimento em si nos era reconfortante. Eu não ousaria despejar meus problemas nela, Deus sabe que ela já tinha os dela, e vice-versa.

Seus olhos azuis estavam cravados em mim, e seus dedos longos e finos brincavam com os meus. Éramos uma dupla esquisita, porque ela era como um anjo e eu era sombrio e moribundo. No começo não entendia por que a sra. Lover nos colocara no mesmo quarto. O que na condição dela tinha a ver com a minha?

Mas depois compreendi. Negação. Ambos estávamos em negação, e já fazia um bom tempo.

— Fletch — ela me fitou. Era a única pessoa que me chamava assim. — Sabe que pode voltar a tomar comprimidos.

Fiz que não com a cabeça.

— Eles me fazem sentir como um pedaço de merda em um corpo que nem é meu.

— E como você se sente agora?

— Um pedaço de merda no meu corpo.

Ela esboçou um sorriso.

— Você é idiota, Fletcher Kingston.

— Já fui informado.

Clarissa

Ethan riu.

— Clarke triturou você, é? Ela é uma pessoa... Hmmm... Interessante.

— Esse é um jeito de classificar.

— Ela é mais normal do que você pensa.

— Normal. Todo mundo aqui gosta dessa palavra, é isso? É como a utopia inalcançável?

— "Talvez o abismo nos engula / Talvez cheguemos a Atlântida / Talvez não tenhamos mais a força / de mover montanhas. / Mas somos o que somos." — ele citou, hmmm...

— Byron?

Ele ergueu uma sobrancelha.

— Tennyson, Clarissa.

Esbocei um sorriso.

— Eu sei, só estou tirando uma com a sua cara — menti.

— Amém — ele suspirou, aliviado. — Digo, "Abismo" é decerto o poema mais famoso dele.

— Decerto.

Eu bocejei. Ethan ajeitou-se no sofá e me fitou.

— Já está tarde, né?

— Acho que sim.

— Vem, eu te acompanho até o seu quarto.

— Não, relaxa.

— É no caminho do meu, vou ter que passar por lá de qualquer jeito.

Dei de ombros, cedendo.

— Está bem.

Subimos as longas escadas até o meu dormitório. Ethan abriu um leve sorriso, disse boa noite e se afastou. Abri a porta do quarto, e lá estava Fletcher, jogando uma bola de borracha na parede e pegando de volta repetidamente, deitado em sua cama.

— E aí? Fingiu que é entendedora de que poeta incrivelmente chato hoje?

— E aí? Roubou essa bolinha de quem?

Fletcher parou de jogar a bolinha. Ele se sentou e me encarou por um minuto, surpreso. Mas depois esboçou um sorriso.

— Eu consegui mesmo te irritar.

— Você não me irritou — disse eu, sem saber direito se era verdade ou não. — Você me deixou exausta. Toda vez que eu mentia, eu podia ouvir você rindo no meu subconsciente, podia sentir seus comentários sarcásticos.

— Bem, se quer saber, eu não sei de onde essa bolinha veio.

— Eu não quero saber. Não me ouviu? Estou exausta.

— Você viu Elena por aí?

— Não.

Ele se remexeu na cama, por fim decidindo se levantar e olhar pela janela. Suspirou.

—... O que foi?

— Estou com um pressentimento.

— Por quê?

— Olha, Clarissa, eu desapareço o tempo todo. Mas Elena não. Elena não tem crises de insônia, nem ataques psicóticos, nem depressões.

— Então, qual é o problema?

— Nenhum — disse ele, sem fazer questão de soar convincente.

Sem olhar para mim, colocou uma jaqueta preta e correu para fora do quarto.

Ele voltou vinte minutos depois.

— Olha — ele suspirou. — Não estou te contando porque confio em você ou porque gosto de você. Estou te contando porque preciso de alguém que entenda uma coisa ou duas sobre mentiras.

Levantei-me.

— Está bem.

— Acho que Elena vai tentar fugir.

— Por quê?

— Eu... Eu explico no caminho. Olha, acontece muito raramente, e geralmente eu consigo encontrá-la.

— Então por que precisa de mim? Já que é tão bom em identificar minhas mentiras.

Suas mentiras. Com a Ellie eu sou... Hmmm... Parcial.

— Você está secretamente apaixonado por ela, é isso?

Fletcher bufou, e eu soube que o havia irritado. Pelo olhar focado e consideravelmente frio, não era uma boa hora para irritá-lo.

— Clarissa, você vai me ajudar ou não? — Assenti sem dizer nada. — Ótimo.

Ele saiu andando e eu fui atrás.

— Não deveríamos falar com a sra. Lover? — sugeri.

Eu vou resolver isso. Eu. Se não consegue lidar com isso, volte para a cama.

— Hum, Fletcher, você está me desesperando um pouco.

Ele suspirou.

— Desculpe. Eu só... Droga. Vamos.

Corremos pelo jardim até o portão principal. Era alto demais para alguém conseguir escalar, e com lanças no topo. Fletcher correu para o meio do mato além do jardim, em direção à cerca que limitava o terreno.

— Certo. Teoricamente, ela está em algum lugar no perímetro.

— Dividir e conquistar? — sugeri.

— Pode ser. Se encontrá-la, grite. Eu não ligo se vai acordar a sra. Lover ou Jesus, mas grite.

Corri para a esquerda e Fletcher para a direita. O terreno era maior do que eu imaginara, e o chão terroso e cheio de pedras e gravetos não estava sendo muito gentil com o meu chinelo (não houvera tempo de pôr tênis). Quando eu comecei a achar que estava andando em círculos, notei uma figura alta e loura tentando pular a cerca.

— Elena! — gritei, mas ela não me ouviu. Corri até ela. — Elena! Elena, desça daí. Por favor. Se pudermos conversar por um instante...

Elena finalmente se virou para mim.

— Você de novo? Qual é o seu problema?

Eu não respondi. Em vez disso, gritei:

— FLETCHER! FLETCHER! FLETCHER, ELA... ELA ESTÁ AQUI... PERTO DE... DE... HM, ÁRVORES! E... DA CERCA. E... ÁRVORES.

Eu levava jeito para essa coisa de Exploradora da Natureza, como pode-se perceber. Voltei-me para Elena.

— Por favor. Só espere Fletcher chegar. Se pudermos conversar por um momento...

Ela estava prestes a me ignorar e continuar escalando quando Fletcher chegou. Ele levou um momento para recuperar o fôlego, e então fitou-a.

— Ellie?

Elena desceu da grade.

— Fletcher. Eu... Eu só... — a voz dela falhou. — Fletcher.

E então ela começou a chorar. Eu observei, pasma, enquanto Fletcher a abraçava, tentando acalmá-la, mas sem tirar os olhos de mim. "Posso ir agora?", formei com os lábios. Ele fez que não com a cabeça e murmurou "É agora que vou precisar de você".

— Vamos levá-la de volta, está bem? — Fletcher entrelaçou os dedos da mão direita nos dela. — Vai ficar tudo bem.

Elena assentiu e deixou-se levar até o dormitório. Elena era bem alta, devia ter perto de 1,75m, o que a tornava basicamente da altura de Fletcher. Eu sempre me sentia baixa perto dele, mas ele não era tão alto assim.

— Certo. Sente-se aqui um pouco com Clarissa, está bem? — Fletcher fitou-a. Elena franziu o cenho. — Clarissa? Nossa colega de quarto, Elena?

— Eu sei. Não seja bobo.

— Claro. Eu já volto. É rapidinho.

Lancei um olhar alarmado para Fletcher. Ele deu de ombros e esboçou "Confie em mim". E então bateu a porta atrás de si.

Respirei fundo. Elena me fitou.

— Então... Clarissa. — o nome soou estranho na boca dela, como se nunca o tivesse pronunciado. — Estou com sede. Posso ir buscar uma água?

— Acho que deveríamos esperar até Fletcher voltar.

Ela sorriu.

— Só porque eu tentei fugir? Pois é — ela recostou-se no travesseiro. — Fletcher, huh? Ele é meio bonitinho, você não acha?

— Eu... Hã?

— Fletcher. Por trás de toda essa coisa "Eu vejo gente morta". Meio bonitinho.

A voz dela soava diferente. Mais fina. Menos controlada.

— Você está... bem?

— Por que não estaria? Mas ele nunca gostou de mim.

— Ele parece gostar bastante de você.

— Não, não. Ele sempre gostou demais dela. Eu sou só uma inconveniência.

Eu morara com Elena por semanas, e ela jamais compartilhara algo remotamente pessoal comigo.

— Eu... sinto muito?

— Olha, eu realmente preciso daquela água.

— Espere. Fletcher pode...

— Clarissa — ela levantou-se. — Eu disse. Que preciso daquela água.

E então abriu a porta do quarto. Sem saber direito o que eu tinha na cabeça, corri para impedi-la. Murmurei para que não me batesse, porque decerto ela era bem mais forte do que eu, e pulei em suas costas, jogando seu corpo contra a porta para que ela se fechasse.

Fletcher

Ethan franziu o cenho, surpreso, quando me viu.

— Kingston. Por que...? Está tarde. O que eu...?

— Preciso de uma coisa — pedi, hesitando. — Eu não pediria se não fosse realmente importante.

Ethan trocou o peso do corpo de um pé para o outro.

— Sim?

— Seus remédios.

Ele estreitou os olhos.

— Meus...? O quê?

— Os de ansiedade. Preciso deles. Não muitos.

— Como ela está?

— Não sei se estou acompanhando.

— Fletcher. O que houve com Elena?

— Olha, não é nada de mais, eu só preciso de uma ou duas malditas pílulas, e a psiquiatra já fechou o consultório, e eu não sei mais para quem pedir.

— Está bem, vou com você.

— Nem pensar.

Ethan ergueu uma sobrancelha.

— Ou eu vou com você. Ou não tem pílulas.

Respirei fundo e contei até cinco.

— Está bem. Vamos logo.


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