Rede de Mentiras escrita por Gaby Molina


Capítulo 2
Capítulo 2 - Colegas de Quarto




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If I should die tonight

May I first just say I’m sorry

For I, never felt like anybody

I am a man of many hats although I

Never mastered anything.

— C'mon, Panic! At The Disco feat. Fun


PRESENTE
Clarissa

Meus pais se mantiveram quietos durante todo o trajeto. Minha irmã de quatorze anos cantava Spice Girls no banco de trás. Suspirei e fiquei observando a paisagem, fingindo que conseguiria decorar o caminho de volta e fugir de Carmen Hallow. Era um plano de duas etapas, é claro. Primeiro: ninguém fugia de Carmen Hallow (e não era por falta de tentativas). Segundo: mesmo que eu conseguisse fugir, não tinha para onde ir.

"O que é Carmen Hallow?", você deve estar se perguntando, e digo isso porque eu também estava me perguntando a mesma coisa. Não acho que alguém soubesse ao certo a resposta, nem mesmo meus pais. Era o tipo de lenda mágica que ouvíamos no noticiário quando um adolescente entrava com uma arma na escola e atirava em todo mundo ou sei lá. O cara era sempre mandado para Carmen Hallow.

Então era... Sei lá. Um lugar para psicopatas que atiravam em crianças. Apesar de eu não ser uma psicopata que atirava em crianças, o que provavelmente sugeriria que havia algo errado com a minha hipótese. Não que eu gostasse de crianças. Não gostava delas nem mesmo quando era uma criança. Sempre achei que elas eram meio retardadas. Mas isso não quer dizer que eu queria atirar nelas.

Bem, pelo menos não na maior parte do tempo. E, no tempo que sobrava, eu não tinha uma arma.

De qualquer forma, achei melhor não comentar sobre isso com a mulher que nos atendeu, que se apresentou como Teresa Lover, o que me parecia nome de stripper, mas não comentei. Era uma mulher robusta, com um olhar severo e a testa franzida sempre. O cabelo escuro estava preso em um rabo de cavalo baixo, e ela usava um vestido preto estranho.

— Que bom que já está vestida de acordo com o código — ela aprovou minhas roupas pretas. — Se você se comportar, poderá continuar recebendo alguns privilégios, como...

— Roupa colorida? Sobremesa? — murmurei. — Mas só se eu prometer de dedinho que não vou fugir?

Ela me ignorou e continuou discursando:

— Preciso preencher algumas fichas, e gostaria que seus pais estivessem junto para confirmar informação.

Claro. Porque eu não era confiável.

— Nome? — ela me encarou, apertando a caneta.

— Clarissa Dawn York.

— Idade?

— Dezessete.

Meus pais concordavam com a cabeça depois de cada resposta.

— Tipo sanguíneo?

— A+ — respondi. A sra. Lover fitou meus pais, o que me irritou. — Meu Deus, por que eu mentiria sobre o meu tipo sanguíneo?!

Ela não respondeu, apenas continuou fazendo perguntas. Por fim eu assinei a ficha, meus pais assinaram a ficha, eles me abraçaram e eu os observei entrar no carro.

A sra. Lover me encarou novamente.

— Vamos? Vou encaminhá-la ao seu quarto.

Ela me prometeu que havia um critério na divisão de quartos, mas eu não sabia qual. O lugar era como uma casa enorme com um jardim, que provavelmente era um dos privilégios que poderiam ser tirados de mim. Subimos até o segundo andar em uma escada que rangia muito. A sra. Lover bateu na porta do quarto 23.

— Fletcher?

Sem resposta, então ela apenas entrou. O quarto era uma bagunça, e havia um ser jogado numa das camas. A sra. Lover o balançou, gritando seu nome a fim de fazê-lo levantar. Ele soltou um palavrão e se soltou do próprio cobertor, revelando seu peitoral nu, o que teria chamado minha atenção em circunstâncias normais, mas então eu reconheci seu rosto, escondido atrás de uma parte do cabelo que caía sobre ele.

— VOCÊ ROUBOU MINHA PULSEIRA DA SORTE, SEU CRETINO!

Fletcher

Dizer que eu não estava esperando por aquilo seria um grande eufemismo. A sra. Lover nos avisara que teríamos uma nova colega de quarto, mas eu pretendia ignorar tal fato e dormir a tarde inteira.

Claramente, esse plano foi irremediavelmente frustrado quando ela gritou e pulou em mim, tentando me enforcar ou sei lá.

Demorei para reconhecê-la, ela tinha mudado bastante em dois anos, mas eu não esquecia tão facilmente da razão de eu estar em Carmen Hallow.

Se alguém me dissesse que eu estava seminu e uma garota estava em cima de mim, não seria aquela cena que eu teria imaginado.

— TIREM ESSA LOUCA DE CIMA DE MIM! — gritei, segurando-a. Era um pouco mais de dez centímetros mais alto que ela agora. Segurei seus pulsos com uma mão só e soltei um suspiro. — Oi. Acho que não fomos apresentados.

Ela me deu uma cotovelada.

— Faz ideia do quanto aquela pulseira era importante para mim, seu merda?!

— Na verdade, não. Vou te soltar lentamente e você vai parar de tentar me matar. Combinado?

Tomei o grunhido dela como um sim e a soltei. Ela se levantou e continuou parada, me encarando. Possuía cabelos castanho-médios um pouco volumosos, olhos da mesma cor e estava toda vestida de preto, de acordo com o código, o que a deixava mais assustadora... Exceto pelo fato de ela ter 1,63m de altura.

Clarissa

— O que acabou de acontecer aqui?! — a sra. Lover cerrou os dentes.

Acho que eu acabei de perder o privilégio da sobremesa, ponderei, vendo o olhar furioso em seu rosto. Voltei-me para Fletcher.

— Onde está? Você não perdeu, não é?

Antes que ele pudesse responder, a mulher interrompeu:

— Eu ia apresentar você dois, mas parece que já se conhecem.

— Como eu disse, não fomos apresentados — Fletcher replicou.

— Façam isso sozinhos — a sra. Lover se aproximou da porta. — E, srta. York, está sem sobremesa.

Tão previsível. Ela bateu a porta e senti o olhar analisador de Fletcher em mim.

— Fletcher Kingston — apresentou-se ele, vestindo uma camiseta. Então sorriu e provocou: — Não precisa parecer tão decepcionada.

— Cale a boca. Clarissa York. Cadê minha pulseira?!

Ele suspirou e se levantou, afastando a cama da parede. Havia uma montanha de coisas ali, e fiquei imaginando se ele roubara todas elas. Ele mergulhou na bagunça e por fim tirou minha pulseira de prata dali.

— Aqui está. Se quer se sentir vingada, saiba que fui parar aqui por causa dela.

— Como assim?

— Esqueci de tirá-la da calça antes de jogar no cesto de roupa, e meus pais acharam. Uma coisa levou à outra e eles acharam... Hmmm... O resto das coisas.

— Sinto muito — ironizei. — Merda, estou presa no dormitório dos lunáticos, não estou?

— Lunáticos? — ele repetiu, rindo. — Clarissa, eu sou o mais normal daqui.

— Você o quê?! Afinal, você é cleptomaníaco ou algo do gênero?

Fletcher franziu o cenho e ficou em silêncio por um momento. Percebi que a palavra que eu usara o ofendera um pouco. Por fim ele suspirou e disse em voz baixa, perdendo todo o humor de um minuto atrás:

— Estou tentando resolver isso. Não conte a ninguém, tá?

Assenti.

— Todos temos nossos problemas.

Fletcher sorriu, e foi como se aquele momento sério nunca tivesse existido.

— É mesmo! O que a srta. Ataco-garotos-seminus-na-cama-deles fez para acabar aqui?

Ergui uma sobrancelha.

— Não. Nem pensar.

— Qual é! Eu te contei a minha história.

— Você não contou merda nenhuma, eu descobri.

— Justo. Mas...

Nisso uma garota alta e loura enrolada numa toalha entrou no quarto. Os olhos azuis dela se estreitaram.

— Hmmm... Oi.

— Oi — acenei levemente, constrangida.

Ela balançou a cabeça e abriu o próprio armário, tirando uma blusa bonita e uma saia de renda. Por fim jogou a toalha na cama, ficando apenas de calcinha e sutiã, e começou a se vestir. Fletcher continuou olhando para mim, como se aquilo acontecesse o tempo todo, e disse:

— Clarissa, essa é a Elena, minha colega de quarto. — ele franziu o cenho. — Bem, pelo menos eu espero que sim.

— Espera que ela seja sua colega de quarto? — repeti.

— Não. Espero que ela seja a Elena. Às vezes ela... — a voz dele falhou. — Deixa para lá. Elena, diga oi à nossa nova colega de quarto.

Elena terminou de vestir a blusa e me fitou.

— Oi. Elena Donovan. Encantada em conhecê-la. Fletcher, seu mongol, onde você enfiou minha escova?! Porque, sabe, Clarissa, as coisas nesse quarto têm um péssimo hábito de desaparecer.

— Então... Vocês dois são colegas de quarto? — perguntei, cautelosa, tentando escapar de um ménage no hospício.

— É — Fletcher respondeu, brincando com uma bolinha de gude.

Quero dizer, era óbvio que eles transavam, porque Elena era o tipo de garota que faria os olhos de um cara se focarem completamente nela se resolvesse tirar a roupa. Bem... A não ser que Fletcher fosse gay.

— Vem, novata — Elena sorriu. — Vou mostrá-la nosso adorável manicômio.

— Ellie, tem certeza de que é uma boa ideia? — perguntou Fletcher em voz baixa.

— Por que não seria?

Ele suspirou, me fitando.

— Boa sorte.

Apontei para a minha pulseira.

— Espero que sim.

Elena me arrastou para fora do quarto, correndo rápido com suas sandálias de salto e puxando as meias compridas para cima com uma das mãos. Descemos as escadas.

— Bom, ali atrás é a cozinha. Temos três refeições diárias, mas você pode conseguir permissão para cozinhar se não for piromaníaca ou algo do tipo. Ah, sim. Primeira regra — ela estreitou os olhos. — Jamais pergunte a alguém como essa pessoa acabou aqui.

— Fletcher me perguntou isso.

— Fletcher gosta de pensar que não tem um problema, e as outras pessoas acreditam nele. Se também vai ser colega de quarto dele, logo vai perceber que não é verdade. Ninguém acaba em Carmen Hallow por engano. Essa é a regra número dois.

Elena me arrastou até o jardim.

— Você pode ficar aqui no tempo livre, mas só se não quebrar nenhuma regra. Não sei direito quais são as regras, mas tem várias. Temos terapia em grupo uma vez por dia, e consultas com psiquiatras dependendo da necessidade.

— Tem biblioteca aqui? — perguntei, esperançosa. — Meus pais não me deixaram trazer meus livros.

Elena torceu o nariz.

— Não exatamente, mas... Bem, venha.

Corremos de volta para a casa. Ela me mostrou uma espécie de sala de estar, onde havia algumas prateleiras com clássicos.

— Pode pegar o que quiser. Tenho uma consulta agora. De qualquer forma, foi um prazer conhecê-la — ela acenou e se afastou.

As prateleiras eram altas, então fiquei na ponta dos pés para tentar ler os títulos.

Precisa de ajuda aí? — disse uma voz tenor atrás de mim.

Derrubei um livro com o susto, e mais dois quando vi a pessoa atrás de mim.

Era um daqueles caras que não existiam fora de Hollywood. Alto, cabelos louro-escuros, em forma, olhos que remetiam duas esmeraldas... Mas ele não parecia se dar conta disso. Havia algo gentil e tímido em seu olhar e sorriso.

— Não, estou bem. Ótima, na verdade.

Ele soltou um riso baixo e se aproximou, me ajudando a recolher os livros.

— Posso pegar para você. Que livro quer?

— Bukowski — falei, pois foi a primeira coisa que me veio à cabeça.

Ele pareceu surpreso.

— Esse aí está na pilha não recomendada a depressivos...

— Não sou depressiva.

— Legal. Geralmente garotas da nossa idade gostam de Nicholas Sparks ou sei lá — disse ele, fitando os títulos. — Quantos anos tem?

— Dezoito — falei, mesmo que só fosse fazer dezoito anos dali a um mês, porque ele parecia ter perto de vinte e um, e eu não queria que ele pensasse que eu era uma pirralha, principalmente depois que disse "nossa idade".

— Já leu Misto-Quente? É o melhor de todos, na minha opinião. Não dá pra gostar de Bukowski e nunca ter lido.

— Já — menti antes que pudesse me segurar.

Ele sorriu.

— Qual sua frase favorita?

Merda.

— Putz... — forcei-me a olhar para a direita, lembrando que mentirosos olham para a esquerda quando mentem. — Tem tantas frases fantásticas. Faz tempo que li, posso acabar confundindo com uma frase de outro livro dele.

Ele me entregou o livro.

— Bem, que bom que não se lembra direito, porque esse é o único de Bukowski que tem aqui. Sou Ethan, falando nisso.

— Clarissa — apresentei-me, silenciosamente me perguntando o que diabos aquele garoto fizera para acabar ali.

Ele acenou, pegou um livro que não identifiquei e se afastou.


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