Literatura escrita por LiKaHua


Capítulo 10
Capítulo 10 - Verdade


Notas iniciais do capítulo

Finalmente, depois de dois milênios, eu consegui terminar essa história. Não foi como eu gostaria que fosse, mas foi como deveria ser. Só um conto pequenino...



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/511269/chapter/10

Eu não conseguia acreditar que Rafael havia ido embora. Era demais para mim. Imaginava o conflito que ele estaria passando, e por mais que não fosse justo com a esposa dele eu tinha de admitir que o beijo que trocamos me deixara completamente submissa ao desejo que ardia em meu peito. Mas havia também o Daniel… Ele me inquietava, era direto e ou eu estava maluca ou ele estava mesmo flertando comigo. Eu vinha dormindo mal desde então, não sabia o que fazer nem como me sentir. Eu queria poder faltar na faculdade, mas minha mãe só me deixava faltar se eu estivesse doente “ponto cama” ou acontecesse algo muito grave, então lá estava eu no ponto de ônibus completamente trancada dentro de mim mesma ao ponto de não ver o mundo acontecendo à minha volta.

O prédio da faculdade parecia estranho, como se tivesse se alargado e abrigasse um grande vazio. Ele não estaria ali, talvez nunca mais. Caminhei pelo corredor deserto, pudera, era cedo demais como sempre, e cheguei à minha sala. O mesmo ritual de sempre: colocar os cadernos sobre a banca, tirar o livro da bolsa, sentar-me após ligar os ventiladores e ler. Mas naquele dia em especial parecia diferente, eu não veria Rafael na aula de Latim, eu não o olharia com sua camisa preta que realçava os braços fortes, os olhos profundos que pareciam ler muito mais do que a superfície do seu rosto, os cabelos curtos e que lhe caíam tão bem. Como é possível você sentir falta de uma pessoa a esse ponto? Eu queria poder falar com ele mais uma vez, dizer como eu me sentia e só então eu me perguntei: como eu me sentia?Eu não sabia, o que eu sabia era que independente do que eu quisesse ou sentisse,Rafael não podia ser meu. Não era certo. Suspirei e tentei voltar a me concentrar na leitura:

“Por que todo mundo achava que eu precisava de um novo namorado? Eu não queria um namorado. Não queria mais nem ouvir falar em namorados pelo restante da vida. A única serventia que um namorado tinha era partir coração.”[1]

Uma das coisas que eu mais gosto na literatura é a forma como ela consegue dizer as verdades nas quais acreditamos sem ao menos nos conhecer.

Desisti do livro, não conseguia me concentrar por mais que tentasse. A ausência de Rafael era quase palpável de tão densa. Por mais longe que eu estivesse da sala dos professores eu podia sentir que ele não estava lá, que não chegaria, aquilo fazia o meu peito apertar e o nó na minha garganta chegar a sufocar. A vontade de chorar cresceu ao ponto de a sala vazia e enorme parecer cheia e asfixiante. Saí apressada para um dos bancos do lado de fora da sala, quando, dez minutos depois, Daniel apareceu:

– Boa noite. – Sorriu.

– Boa noite. – Falei, casualmente, sem olhá-lo.

– Parece que não é tão boa assim… – Sentou ao meu lado. – Quer conversar?

Eu não queria. E afinal, como contaria para ele sobre Rafael? Como se diz a alguém “Meu professor de Inglês me beijou e acho que estou interessada nele, mas, ops, ele é casado!” não há um modo certo de dizer uma coisa errada. Engoli as lágrimas, mas era cada vez mais difícil. Eu queria chorar, eu queria colocar pra fora aquilo que me magoava, mas eu não podia.

– Você não entenderia. – Falei por fim.

– Por que não tenta? – Perguntou. – Temos um tempo até as pessoas começarem a chegar.

– Eu tenho certeza que você não entenderia. – Falei, enfatizando a palavra. – Sabe o que é gostar de uma pessoa que não pode ser sua?

– A literatura chama isso de amor platônico. – Brincou. – E sim, eu sei.

– Sabe? – Eu o olhei, curiosa.

– Sim, eu sei. Estou a fim de uma garota que, até agora, não me deu a mínima bola.

– Ela sabe que você gosta dela?

– Provavelmente. Não tenho certeza.

– Ai vai uma dica feminina: As garotas nunca sabem que vocês estão a fim delas até que vocês digam.

– Ah, então eu devo dizer a ela como me sinto?

– Sim, antes que outra pessoa faça isso. – Aconselhei.

– Então tá. Laura, eu estou a fim de você.

Congelei. Por um momento eu não soube o que estava sentindo, só sabia que o meu coração ainda batia porque eu o estava ouvindo tão alto que me perguntei por um segundo, em um lampejo de consciência, se Daniel também ouvia. Eu não conseguia sentir o sangue correndo em minhas veias ou mesmo o movimento respiratório involuntário dos meus pulmões, o mundo à minha volta pareceu paralisar e escurecer aos poucos. Tive uma vaga sensação da mão macia e quente de Daniel segurando a minha e das suas palavras ecoando longe nas paredes da minha mente:

– Eu sei que isso pode parecer meio louco, mas já faz algum tempo que eu quero muito te conhecer melhor, toda vez que a gente se esbarra pela faculdade, mais gosto de você. Não precisa me responder nada agora…

Eu tentei formular uma resposta. Juro que tentei. Mas as coisas estavam acontecendo rápido demais, primeiro meu professor me beijava e desaparecia no mapa, agora um garoto igualmente lindo fala isso pra mim do nada. Não há como esboçar qualquer reação diante disso. As pessoas começaram a aparecer, caminhavam de um lado para outro e olhavam para nós com curiosidade ou mesmo malícia como é comum no mundo de hoje. Daniel beijou minha mão e caminhou para sala, me deixando ali com meu mundo entre o abismo da devastação e a chance de salvação. Imóvel, confusa e querendo apenas um escape para todo aquele emaranhado de dúvidas e dores.

Escrever. Era disso que eu precisava. Corri para a sala e imergi dentro de mim.

Emma olhou para Gabriel sem entender o que o amigo queria dizer com aquela pergunta, mesmo assim contou a ele detalhadamente tudo de que se lembrava, desde o momento que foi abordada pelos homens até o instante em que Leandro a salvara.

– Então, você não lembra de ter visto o rosto dele. – Gabriel perguntou.

– Não exatamente, lembro do cheiro do perfume, lembro do toque dos braços, mas perdi a consciência muito rápido, foram mais barulhos que qualquer outra coisa. – Explicou. – O que está havendo?

– Emma, por que acha que ele te salvou? – Gabriel disparou a pergunta diretamente.

– Ora, Gabriel, eu acordei na casa dele. Quem mais poderia ter sido?

– Você está apaixonada por ele?

– Não. – Era uma meia verdade.

– Emma, não mente pra mim, por favor. – A voz do amigo era triste.

– Você vai me dizer o que está havendo? Estou ficando entre o confusa e o chateada.

Gabriel abaixou a cabeça, por dentro ele travava uma luta interna entre o medo e o desejo que ela soubesse a verdade. Um suspiro escapou de seus lábios enquanto ele reunia a coragem que precisava para revelar a Emma o que realmente aconteceu:

– Fui eu quem te salvou aquela noite, Emma. Não foi o Leandro. – Gabriel permaneceu com a cabeça abaixada, incapaz de fitar Emma.

– O quê? – A garota fitou o melhor amigo, sem reação. Tentava entender o que estava acontecendo, ordenar os pensamentos, procurar a verdade na sua mente.

– Quando você saiu da festa da Karen eu fui atrás de você algum tempo depois. A Karen havia me dito que você tinha saído sozinha e já estava muito tarde, fiquei chateado por você não ter me procurado para ir com você…

– Você estava com a Luisa… Eu achei que… – Interrompeu-se.

– O quê? Achou que eu estivesse ficando com ela? – Ele ergueu o olhar para Emma.

– Continue. – Emma mudou de assunto. Não sabia que a ideia de Gabriel namorar lhe incomodava, até aquele momento.

– Fiquei preocupado com você e saí à sua procura, você ia meio longe, mas consegui te alcançar a tempo, quando cheguei ao beco um dos caras estava em cima de você. Emma, você não tem noção da fúria que eu senti… Até hoje eu me pergunto como fiz aquilo. Quando eu vi você machucada perdi a cabeça, me senti impotente e inútil, segurei você nos meus braços e liguei para Leandro, ele é médico e achei que ele cuidaria bem de você até que se recuperasse. Pedi que ele não lhe dissesse nada. Fiz uma ligação anônima para polícia e os caras foram presos.

Emma não conseguia dizer nada. Lembrava-se nitidamente dos braços que lhe ergueram do chão úmido e frio, da sensação de calor e carinho que percorreu todo o seu ser, do cheiro suave e amadeirado daquele perfume, do peito másculo que acolheu seu rosto ferido. Todo o tempo ela achara que aquelas sensações vinham de Leandro e agora descobrira que eram de Gabriel, seu melhor amigo.

– Como? – Foi o que ela conseguiu emitir.

– Eu sei que isso tudo é muito louco, mas…

Eu ficara tão focada no meu “trabalho” que nem ao menos percebi que a aula já havia há muito começado. Sob o cabelo, meus fones de ouvido no volume máximo me impediram de ouvir, inclusive, o possível ‘boa noite’ de Ariana, que agora se concentrava na explicação do novo professor de latim. Eu dei um leve sorriso para ela e tirei um dos fones, o homem tentava tornar mais fácil a explicação da quarta declinação, sem sucesso. Pelo que eu podia ver no rosto dos outros alunos quanto mais ele falava, menos compreendido se fazia, senti falta de Rafael nesse instante, provavelmente àquela altura, já estaríamos traduzindo Ovídio sem nenhum problema. Certo, isso é um exagero. Acenei para Ariana e passei um pequeno pedaço de papel:

Vou até a biblioteca. Te vejo na saída.

Ela acenou positivamente. Discretamente eu peguei minhas coisas e saí, quando virei o corredor esbarrei em Daniel e deixei cair o caderno com a história, abaixamos ao mesmo tempo para pegar, em silêncio. Ele me devolveu o caderno devidamente fechado e sorriu aproximando-se mais:

– É um dos momentos favoritos do meu dia. Se eu não esbarrar em você fico com a sensação que me faltou algo.

– Sinto muito. – Desculpei-me.

– Ah, não se desculpe. Eu que devo me desculpar. – Disse ele, com a voz tensa.

– Pelo que? – Perguntei, confusa.

– Por isso.

Puxando-me de uma vez pelo braço ele pressionou os lábios contra os meus, mas havia carinho no gesto, não a mecânica impaciente e ardorosa de Rafael. Beijar Daniel foi a confirmação que eu precisava de que meu coração não estava mais dividido, ele poderia muito bem ocupar um único lugar no abraço certo.

… Emma, não sei como você nunca notou que eu sentia por você algo mais, não quero estragar a nossa amizade, o que pode ser algo inevitável, e se eu não te contei nada disso foi por medo do que você ia pensar.

– Bom, então seu medo não tinha muito fundamento, eu não tenho ideia do que pensar agora, Gabriel.

– Vou entender se você não quiser mais falar comigo.

– Por ter salvo a minha vida? Ou por ter me deixado acreditar que um estranho casado havia feito isso?

– Por me apaixonar por você.

– Difícil ser por isso… Eu te conheço a vida inteira. Você é tão cego quanto eu.

Quando Gabriel olhou nos olhos de Emma pôde ver que o tempo todo nenhum dos seus temores fizera o menor sentido. Ambos se levantaram e se abraçaram por um longo tempo, Emma acariciou o rosto daquele que ela tinha como a pessoa um na sua vida e lentamente Gabriel se abaixou para beijá-la, a inegável verdade que se amaram todo o tempo, a inegável verdade que se pertenciam.

Acho que daqui você pode imaginar o que aconteceu. Ou não. Batizei o meu livro de Literatura, pois a minha história, por mais que não tenha acontecido exatamente como nos livros que eu vinha lendo, tinha certa participação deles. E acho que, como Rafael disse uma vez, isso é literatura: a expressão de uma época, de um sentimento que, até então, você tinha como anônimo, é o conjunto de reflexões, pensamentos, aprendizados e vivências de alguém que, por meio das palavras, romanceia, de forma a levar para outras pessoas o fruto de suas experiências de uma maneira mais lúdica e amena. Quando nos é ensinado na faculdade que as palavras tem poder, podemos atestar que é uma incontestável verdade, através dela podemos criar e destruir, podemos amar e odiar, pelas palavras nós voamos o mundo e podemos até encontrar a nós mesmos.

Rafael e eu nos vimos mais uma vez. Apenas uma. Ele estava lecionando em outra universidade fora da cidade, graças ao que aconteceu conosco seu casamento se fortaleceu. Senti falta das aulas na faculdade, mas fiquei feliz por permanecermos amigos, ele foi um dos melhores professores que já passou pela minha vida. Daniel e eu continuamos juntos, ligados por sentimentos, poemas, livros e músicas. Tudo isso a que eu chamo de literatura, é a essência da vida, imperfeita e magnífica em sua essência, em sua totalidade e mesmo em seus fracassos.

E COMEÇA TUDO DE NOVO…

EM UMA NOVA HISTÓRIA.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Obrigada por terem lido :)