Mila escrita por biazacha


Capítulo 1
Capítulo Único


Notas iniciais do capítulo

Essa One foi inicialmente criada para um Concurso de Vilões, mas como infelizmente o site ficou fora do ar eu perdi a inscrição.


Desejo a todos uma boa leitura!



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O fim de tarde é sempre um momento interessante.

Ainda sentimos um pouco do calor reconfortante originado pelo Sol fraco no horizonte, mas ao mesmo tempo os ventos já estão mais insistentes, frios e cortantes. É um bom momento para se estar no aconchego de uma lareira, mas, sem dúvidas uma hora perfeita para sair e olhar o céu.

Naturalmente, escolhi ambos, pois só os fracos de mente se contentam com uma única possibilidade.

O solar de minha família fica na encosta, de frente ao mar – não aquela parte insuportavelmente fétida próxima ao porto, mas afastado o suficiente para que nada além de ricos mercadores e pomposas visitas passem por nossos portões com seus perfumes exóticos e luxuriantes.

Sinceramente não sei e não me interesso em saber o quanto este cômodo custou; para mascarar o fato de simplesmente me detestar, meu pai compra qualquer barbaridade que solicite e faço bom proveito disso.

Uma parede inteira feita de vidro. Quando até mesmo famílias antigas e de renome só têm madeira em suas janelas e amam mais seus espelhos do que seus irmãos, essa é uma extravagância inédita – grosso o suficiente para que não se quebre com qualquer bobagem que o vento traga e límpido ao ponto de não possuir uma única impureza em toda sua extensão, apesar de medir mais de um palmo de espessura. Sem dúvidas a parede perfeita para me proteger do frio e permitir que desfrute do crepúsculo e das estrelas.

O assoalho, bem como todos os móveis, é feito de madeira extraída da árvore de Fran. Só existe um único bosque com este exemplar no mundo e sua madeira escura que nunca perde o perfume intenso de terra molhada e musgo, é algo que a maioria das pessoas nasce, vive e morre sem colocar os olhos. Não seria o meu caso, sem sombra de dúvidas.

O lustre feito com Cristais de Inocência. Em Mari, um país há vários dias de navio, existe uma abundância em minas de diamantes que garante que seu Rei seja um homem rico, a despeito da condição precária do resto de seu povo. Lá se encontra a tradição das tais pedras, criadas num método controverso e polêmico: as crianças mais belas são escolhidas e colocadas para trabalhar com a seguinte condição de que para cada diamante lapidado com perfeição, ganham uma refeição e ao término de cinco anos podem voltar para suas famílias.

Maldades à parte, o fato é de que os pequenos se colocam de corpo e alma na tarefa e acabam por criar as pedras mais belas de todas. O grande mérito são as inacabadas, resultado da morte do jovem artesão ou artesã por inanição – possuem um brilho especial de quem literalmente colocou cada mísera reserva de força ali. Meu lustre é feito exclusivamente deste tipo e resplandece no cômodo.

As tapeçarias feitas com pele de Carpai, uns animaizinhos minúsculos, mas de pelo muito sedoso, macio e de cor de caramelo que ficam lilases depois que o bicho morre. Para criar essas peças com metros de largura e comprimento não faço ideia de quantos foram abatidos, uma vez que são menores que a palma da minha mão – mas sem dúvida se tornaram um conjunto de peças que dá um recado valioso para cada um que visita a propriedade com segundas intenções.

A lareira, feita de mármore branco, possui duas singularidades, a primeira de suas ranhuras douradas contra a rocha branca serem tão sinuosas e orgânicas que pareciam ter sido desenhadas por um pincel extremamente fino e a segunda de ele atingir um delicado tom rosado quando próximo de chamas, o que o faz uma escolha divertida e ideal para uma lareira. O fato de só existir em uma única mina era um detalhe a ser ignorado.

E por último meu maior orgulho, as poltronas com o couro dos búfalos mareneses. Marene é uma ilha que fica basicamente do outro lado do mundo, cercada por traiçoeiras formações de corais e rochedos pontiagudos que faz com que o ir e vir do local seja uma aventura só para os mais corajosos e muitíssimo bem pagos. Lá prospera essa espécie cujo couro quando curtido, com uma técnica que apenas os nativos conhecem, ganha um tom vibrante e espetacular de cereja. O fato de ser meu favorito se deve a lembrança eterna da cara de meu pai quando soube a quantia que deveria desembolsar depois de mais de um ano de travessia marítima, pois lamentavelmente me esqueci de informa-lo da compra dessa matéria-prima em particular.

Também sempre ficará na minha memória a expressão do carpinteiro ao receber a madeira e o couro para confeccionar essas poltronas e sua cara quando recebi esta maravilhosa encomenda e ordenei que meus homens o matassem para garantir que ele não usasse restos do material para criar qualquer bobagem para terceiros. No fim das contas vasculharam todo o ateliê e não encontraram nada – as sobras haviam sido queimadas conforme ordenei. Mas a essa altura todo o sangue do sujeito já tinha saído pela sua garganta, de modo que acho que não se importou com o fato de não ter me desculpado.

Respirei fundo, saboreando o aroma que impregna minha adorada sala, algo forte e viril que faz com que meus primos mais delicados espirrem para enrubescer logo em seguida com qualquer comentário “espirituoso” meu.

O som da porta me fez tirar os olhos das porções de cores diversas no céu e fitar a figura adentrando o cômodo. Ansiava com uma pontada de esperança que finalmente fosse o serviçal que ordenei buscar algo para comer tivesse voltado, mas era apenas Mila, minha noiva. Conhecemo-nos desde crianças e reconhecemos nosso compromisso antes mesmo de saber como era a cara um do outro.

Lembro-me até hoje nosso primeiro diálogo. Ela carregava consigo um estúpido brinquedo felpudo e em forma de ovelha e depois de um tempo forçado a entretê-la e apresentar a propriedade, o cheiro pungente daquela pele começou a me irritar e aproveitei a ausência de adultos na biblioteca para pegar a vela da lamparina e atear fogo nele. Ficou sem reação, chocada demais em sua inocência infanta para reagir de alguma forma – determinado como sempre fui, segurei seu braço, me aproximei de seu ouvido e disse:

– Se contar para alguém, irei ordenar meus guardas apanhar cada pessoa da sua família e abri-la com um machado bem devagarinho. E você terá que assistir, escolherá quem será primeiro e quem será o próximo e o próximo... – ela segurou o choro e acenou com a cabeça de modo afirmativo.

Parando para pensar foi um monólogo, mas mesmo assim continua memorável. Durante um longo tempo nossas interações eram basicamente monólogos meus, pontuados por ação e reação: se ela fosse servida com alguma comida que eu não gostava, jogava fora; caso usava um vestido que achava feio, a chutava na primeira poça de lama que encontrássemos; se distraía enquanto eu falava com ela, era amarrada ali até eu terminar a história ou me sentir caridoso o suficiente para deixa-la ir (o que costumava demorar umas dez horas pelo menos); ela não vinha assistir meu treino com a espada para dar continuidade aos seus estudos com piano e eu desafinava o instrumento inteiro para depois contemplá-la com tapas nas mãos com uma vara de seu instrutor e colocar cada tecla no tom certo novamente. Vocês sabem, um relacionamento como qualquer outro.

A primeira vez que de fato tivemos um diálogo foi no aniversário de meu irmão mais velho há três anos. Morjov é alto, forte, bondoso, inteligente, justo, amado... De modo como me encaram acho que devem ver alguma espécie de oposto em mim, começando por nosso pai. Quando nasci condenei à morte minha mãe e minha gêmea e acho que ele não aceitou isso muito bem, deixando claro em cada mísero ato o quanto me detestava desde que me lembre. Meu irmão não é o retrato da abnegação, sempre disposto a fazer papel de ridículo para me deixar confortável ou feliz. Desprezo meu pai, mas odeio meu irmão.

No entanto, naquele dia em especial, foi imperdoável quando pediu que minha noiva cantasse uma canção para ele de presente em frente a todos os nossos parentes e conhecidos – sua própria prometida havia falecido por uma doença respiratória qualquer que não me interessei em saber, uma vez que depois de pagar para tirarem sua virgindade à força, criei expectativas se contaria para ele, não me interessava em mais nenhum aspecto dela – pois era de conhecimento geral que a maioria torcia fervorosamente para que acabasse se casando com ele. Diziam pelas minhas costas achando que eu não tinha meus métodos para ficar sabendo que ela era pura e boa demais para um traste deturpado como eu.

O fato é que Mila prontamente atendeu ao pedido e cantou. Nunca havia a visto abrir a boca antes então não sabia que sua voz era tão bonita – doce e delicada como o afago de uma mãe, firme e macia como os seios de uma puta estreante. O choque inicial rapidamente foi substituído pela raiva, pois se eu não sabia algo tão trivial de minha estúpida noiva, como poderia Morjov sabê–lo? Desde quando eles tinham algum tipo de intimidade?

Quando acabou recebeu aplausos entusiasmados de todos no salão, enquanto que coloquei meu sorriso mais cínico no rosto ao acompanhar o resto. A boca de meu estômago ferveu quando ela depositou um beijo na bochecha dele antes de vir sentar-se ao meu lado e prometi a mim mesmo que haveria volta.

Mais tarde, naquela noite, a esperei em seu quarto. Ela entrou calma e distraída, o cansaço pela noite de festa evidente em seus olhos claros e expressivos; foi com certo prazer que observei ela congelar na soleira a me ver, casualmente, deitado em sua cama de fronhas ricamente bordadas.

– Feche a porta e venha até aqui. – ordenei. Ela obedeceu em silêncio. – Você me humilhou hoje, Mila – disse calmamente, enquanto já via os primeiros sinais de tremores em seu corpo franzino – você estava lá, agindo como a vadiazinha idiota de meu insuportável irmão enquanto deveria estar quieta e obediente ao meu lado. Eles estavam rindo de mim pelas costas, sabia disso? – ela fez que não com a cabeça. – Olhe nos meus olhos e responda com a boca Mila! Ou ela só serve para se dirigir a Morjov?

O choque de pedir para que ela verbalizasse alguma coisa foi evidente, pois até seu tremores cessaram. Quando ergueu o olhar, ele estava vidrado e límpido, gritando o tipo de medo mais ancestral que alguém pode ter, aquele pavor genuíno e cravado no cerne da pessoa.

– Não sabia, meu senhor. – respondeu num fio de voz. O modo como ela disse aquele “meu senhor” com sua vozinha adorável me fez arrepiar inteiro; aos 11 anos eu não fazia ideia, mas hoje sei que toda aquela vulnerabilidade e servidão escancaradas na figura prostrada à minha frente me fizeram ficar sexualmente excitado pela primeira vez na vida.

– Não sabia mesmo não é? – disse enquanto levanta. Peguei o primeiro objeto que vi, uma flauta feita de prata e a bati em sua face. Ela foi jogada no chão com a força da agressão e ficou ali encolhida, tremendo e gemendo. Abaixei-me ao seu lado e continuei: – Não sabia que eles me odeiam? – Um outro golpe, dessa vez na barriga. – Que eles torcem para que você fique com o perfeitinho do meu irmão? – Mais um na coxa. – Que eles acham que você é boa demais pra mim? – Outro no topo da cabeça. – Que seu pai quer reformular o acordo de matrimônio com Morjov e não sabe como pedir ao meu pai? – Um bem dado nas costas. – Que meu pai quer reformular o acordo de matrimônio com Morjov e está esperando o seu pedir? – Mais um no joelho que o fez estalar. – E que meu adorado irmão sabe de tudo isso e aparentemente está mais que disposto a ficar com você?

– Não, meu senhor, eu não sabia, eu não sabia, eu não sabia... – disse ela, o retrato do pânico em forma de garotinha no chão, ali na minha frente.

Deixei a flauta de lado e a segurei pelos cabelos, forçando-a a se levantar; guiei-a até a cama onde me larguei ao seu lado e cobri a nós dois.

– Bom se você não sabia, não tem mais nada a ser feito a não ser continuar sempre fiel a mim, não é mesmo?

– Sim, meu senhor. – respondeu ela de imediato, os olhos cintilando a meia-luz do luar por conta das lágrimas.

– Ótimo! – eu disse e fiz o pedido que se tornaria uma rotina praticamente diária em nossa vida: – Mila, cante para mim.

Na manhã seguinte, quando nos encontraram naquele estado, ela prontamente explicou que caiu da escada e que fiquei lá a noite toda, velando seu sono. É claro que ninguém acreditou, mas isso expôs o nível de submissão dela em relação a mim e qualquer conversa sobre reformular o acordo matrimonial sumiu das cartas trocadas entre meu pai e meu futuro sogro. Não expressei verbalmente, mas ela entendeu a dica, pois nunca mais cantou para mais ninguém além de seu estimado noivo.

Depois daquele dia, eu sempre quero que ela fale. Não que tenha de conversar comigo, isso seria irritante e entediante, mas amo o som de sua voz, pois além de amável é absolutamente temorosa a mim – “sim, meu senhor”, “não, meu senhor”, “como queira, meu senhor”, ela tem que me elogiar, adorar, incentivar, acariciar meu ego com sua voz fina e delicada.

Claro que num primeiro momento sua recusa a continuar suas aulas de canto causou estranheza em todos, principalmente em suas amigas de infância, que vieram do ducado onde Mila nasceu, para viver com ela ali como suas futuras aias, pois a amavam como uma irmã. Exigi que ela se livrasse de cada uma delas humilhando-as em público, dizendo palavra por palavra com uma expressividade de dar inveja a qualquer atriz os discursos cruéis e horríveis escritos por mim que fizeram as garotinhas voltarem devastadas para seus pais e garantiram que menina alguma chegasse perto de minha noiva. Nada de amigas, nada de confissões chorosas, nada de problemas ou de ela achando que tem apoio para se voltar contra mim.

A imagem de Mila dizendo todas aquelas obscenidades e falsos boatos com uma postura altiva e sua voz de veludo permearam meus sonhos durante muito tempo e de vez em quando ainda voltam – sempre que isso acontece, acordo duro e com minha cama suja.

Percebi com o tempo que quanto mais tirasse dela, melhor ficaria –escolho suas roupas, faço sua agenda de aulas, dito quando ela pode ou não encontrar sua família e o que escreve nas cartas que manda para eles, preparo o que ela diz a meu pai e meu irmão quando eles iniciam um diálogo com ela, seleciono os livros que deve ler e determino quais músicas aprenderá a cantar e tocar para me entreter.

Estou pensando em algum apelido, pois enquanto ela for Mila, não será totalmente minha. Entretanto, me acostumei a dar a entonação certa ao dizer seu nome, uma que a faz perder a cor num instante – enquanto não achar algo que se saia tão eficaz em minha cabeça, ela segue tendo algo de seus pais.

Nosso relacionamento avançou um passo importante há alguns meses. Sua família passa por apertos graças ao seu avô que está cada vez senil e incapaz de tomar decisões sensatas no uso do dinheiro que possuem, mas é turrão demais para se deixar afastar do controle. Nunca o vi pessoalmente, mas deve ser uma figura e tanto.

A consequência inicial é que ela chegou a um nível incrível de falta de amor-próprio e suportava qualquer coisa que eu fizesse, provavelmente com medo de como seus parentes ficariam sem o apoio de minha família, sustentados por nosso noivado.

Aproveitei um dia em que meu pai e meu irmão estariam fora e só voltariam na manhã seguinte para satisfazer uma curiosidade minha: se eu a mandasse cantar a noite inteira sem desafinar, ela obedeceria? Até onde aguentaria? Por isso, fiz com que um servo avisasse que a queria em meu quarto imediatamente, ou ficaria no mínimo nervoso.

Encostado no dossel de minha cama e com os braços cruzados, esperei calmamente e com uma satisfação genuína enquanto ouvia os passos apressados subindo as escadas que levavam ao topo de minha torre. Ela entrou de modo tempestuoso, com o rosto vermelho pelo esforço, os cabelos e vestido em desalinho.

– Estou aqui... meu senhor. – disse ela ofegante.

Tenho algo com sua voz, não nego e sempre gosto de ouvir entonações novas, principalmente novos tons de pânico, medo e servidão; aquela respiração entrecortada... foi demais para mim. Quando me dei conta já tinha atravessado o cômodo e tomado seus lábios.

Ficou evidente que ela nunca tinha beijado ninguém antes na vida, mas aquilo só me fez querer mais – ela era inteira minha, até para eu ensinar uma ou duas coisinhas sobre como me dar prazer. Sua postura era rígida como uma tora e apertando-a contra mim pude sentir seu coração disparado.

Seu cabelo foi fácil de soltar, bem como a capa que ela usava – seu vestido, no entanto, era mais difícil e rasguei o traje sem pensar duas vezes; ela, claro, estava apavorada, me olhando como se reconhecesse pela primeira vez a besta com quem a haviam noivado.

Não a violentei ou algo do gênero; vê-la gritando ou pior, calada esperando aquilo acabar seria terrível para mim. Diferente do um eu de 11 anos, hoje já dormi com putas o suficiente para saber do que uma mulher gosta, e como fazê-la gemer meu nome – e foi o que fiz: toquei-a de todas as formas e com cada carícia a fazia pedir por mais, pedidos esses que eram alternados com súplicas para que eu parasse, porque aquilo era errado – no geral não deixaria barato um questionamento direto, mas ela dividida entre a culpa e o prazer, se torturando ao mesmo tempo em que gostava... uma visão sublime. Quando acabamos, o arrependimento e a autodepreciação estavam tão estampados em seu rosto que eu a agarrei novamente. Foi uma noite longa.

Desde então, não a toquei dessa forma em nenhum momento, curtindo seu estado de espírito quebrado; sua postura ao falar com donzelas, praticamente gritando ao mundo que não é mais uma delas, o modo como me encara como se eu fosse uma assombração cada vez que apareço em seu quarto ou mando-a ir me ver no meu, como se retrai quando a encaro de modo firme ou quando encosto em seu braço.

Não faço ideia de quanto tempo ela vai suportar essa pressão velada e mental, mas Mila já criou um complexo de inferioridade tão grande que talvez fique firme até o fim – mas não me preocupo, gosto disso nela, pois sempre me estimula a achar novas formas de nos divertirmos.

E cá está ela, indo se sentar defronte a mim, quieta, contida, cabisbaixa. Logo atrás entrou o energúmeno com os biscoitos salgados que pedi, além de duas bebidas: conhaque para mim, chá quente para ela. Mila nunca bebia, eu a proibia de encostar os lábios em qualquer coisa, ela nem sabe o gosto – talvez sob o efeito do álcool minha noiva desmorone e isso acabaria com a graça.

Quando ele se retirou com pedidos de desculpas apressados, ela tirou o véu que cobria seu rosto – peça que sempre deve usar quando não estamos a sós, pois ninguém além de mim precisa ver seu rosto. Seus lábios inexperientes, seu olhar de cão assustado, suas olheiras vindas de noites mal dormidas e regadas a lágrimas, sua face cada vez mais magra, tudo isso é meu.

Ela começou a comer em silêncio enquanto observava seu estado. Sua falta de saúde era evidente e nos últimos tempos me pergunto se ela vai durar muito depois de nosso casamento. Nas circunstâncias atuais, não faria uma grande diferença se morresse, seria apenas lamentável.

Há algum tempo sua família mandou sua prima de segundo grau, Mirian, para viver aqui e com sorte achar mais um nobre para esses falidos se amarrarem – corpulenta, burra e carente, foi uma presa fácil. Mirian e Mila nunca se deram bem e foi com um certo ganho pessoal que abriu as pernas para mim. Sua voz, aliás, é horrível, nada dos gemidos suaves, baixos e cheios de culpa de minha Mila e sim uns guinchos escandalosos, pontuados por exclamações que só serviam para cortar meu tesão.

O fato é que Berton nasceu. Depois de meses enrolando-a dizendo que assumirei nosso relacionamento e arranjarei para que o acordo familiar passe a incluir ela no lugar de sua prima, o bastardo finalmente veio ao mundo e não faço ideia do que fazer.

O destino de Mirian é certo, quero me livrar dessa puta o mais rápido possível... Mas, não posso dizer o mesmo da criança. Um herdeiro é um herdeiro e tem algo nesse bebê que me faz gostar dele – o modo como ele fere os mamilos de sua mãe ao tomar o dobro de leite que um recém-nascido tomaria, o modo como esperneia a noite toda e a deixa sempre acabada, como joga as coisas nos outros, sempre no rosto. Neguei-lhe uma ama de leite e lhe dei poucos funcionários dispostos a abafar o caso desde o início da gravidez e é com satisfação que eu a vejo definhar não só por minha falta de cuidado, mas principalmente por causa desse filho.

Vou dar a notícia para a família dentro de poucos dias, no próximo aniversário de Morjov – poderia ter dito antes em qualquer outra reunião familiar, mas não perderia a chance de estragar o dia dele com o anúncio de um bastardo faminto, agressivo e exigente. Será um momento incrível.

Mas antes, quero ver a reação de Mila, quero faze-la admitir a todos que já sabia e que não se importa, porque ela não vai ter o direito de se importar. Estou curioso se isso finalmente irá fazê-la chorar a dizer que me odeia ou se nossa fervorosa noite foi o suficiente para convertê-la de vez em uma seguidora fiel.

– Mila – comecei – qual é minha citação favorita?

– Aquilo que é bom se torna admirado por nossos ouvidos, mas aquilo que é cruel se torna belíssimo aos nossos olhos. – citou ela com perfeição.

– E o que você acha?

– Se o meu senhor gosta dela, sem dúvidas é boa.

– Mas é correta? – ela me encarou em pânico, sem saber qual resposta seria a certa – As pessoas amam elogios sabe? Amam serem paparicadas, agraciadas... da mesma forma que gosto quando você diz que eu tenho uma pontaria incrível com meu arco, também gosta de ouvir que sua voz é belíssima... e a propósito, ela é. – ela piscou, surpresa pelo rumo da conversa e sem saber como interagir. Suspirei com sua falta de reação; teria de me esforçar mais se quisesse ouvi-la falar. – Mas por outro lado as pessoas gostam de observar as coisas más do mundo, há certa beleza nelas que nada se compara; um cadáver, uma pessoa sendo maltratada, um machucado particularmente feio. Temos de nos esforçar para não olhar essas coisas, porque é hipnótico, atraente. Não concorda?

– Está certíssimo, meu senhor. – respondeu de imediato.

– Como sempre. – acrescentei.

– Como sempre. – se apressou em concordar.

Ela esperou um tempo, mas quando viu que estava comendo, voltou a comer também. A verdade é que estou frustrado, não consigo a carga dramática que quero para dar a notícia. Ela está calma demais, firme demais.

Sua postura contida enquanto comia me tirava do sério, queria vê-la tremendo e com lágrimas nos olhos. Usava meu vestido favorito, o azul-claro de babados e mangas curtas; sempre que ela usava algo com algum decote devia usar um xale na frente dos outros, sempre que vestia algo sem mangas devia calçar luvas longas que não mostrassem um centímetro de pele. As suas hoje eram brancas.

– Mila, porque ainda está de luvas?

No lugar de responder, começou a tira-las. Luvas que praticamente vão até os ombros são uma peça de roupa incômoda e desnecessária e sempre gosto de vê-la lutando em silêncio para removê-las e manter a dignidade. Conforme ela se movia de um lado para outro forçando o tecido justo a deslizar por seu braço fino, seu cabelo parcialmente preso se desmanchava e a suave cascata de cachos castanhos caia sobre os ombros – seu cabelo é liso, mas eu gosto de cachos, então ela acorda uma hora mais cedo para deixa-los no ponto todos os dias.

Então me ocorreu – eu sabia como deixa-la instável num instante. Queria esticar aquela diversão um pouco mais, mas era por uma boa causa; olhando para um dos tapetes no chão, tenho certeza de que ela é como um Carpai: pequena, amedrontada, macia e totalmente sujeita aos meus caprichos. Porque não lança-la ao chão junto com os seus e toma-la mais uma vez?

Quando pousou as luvas em seu colo, me encontrou a encarando com uma voracidade que nunca dirigi a algo ou alguém na vida. Seu rosto ficou branco como o de um fantasma e o medo – aquele medo exclusivo que ela guarda só para mim – vieram à tona.

– Mila, solte o resto de seu cabelo. – ordenei.

Quieta e resignada, ela o fez e as ondas caíram delicadamente.

– Certo, agora desate seus sapatos.

Contendo uma exclamação que não me passou despercebida, ela se abaixou e me obedeceu, soltou as fitas azuis que atavam o calçado branco e os tirou.

– Me dê seus pés e... Mila, cante para mim.

Enquanto ela entoava uma canção tranquila sobre a natureza que eu amava em sua voz, tirei suas meias longas lentamente, sentindo a maciez de suas coxas míseras, acariciando seus pés pequenos, beijando cada um dos dedos e fazendo-a se arrepiar com o ato.

Levantei e passei para o seu vestido, desabotoando as dezenas de pérolas que começavam desde a nuca até o quadril, me segurando para simplesmente não arranca-las, pois realmente amava aquele vestido.

O deslizei e vi o corpete branco e simples que ela usava por baixo – naquele dia fatídico também usara uma peça branca, sem rendas, o traje íntimo perfeito para alguém puro e vazio como ela.

Deitei-a no chão e a encarei. Tão vulnerável e ao mesmo tempo tão segura de si – ela sabia o que ia acontecer e tinha aceitado o fato antes mesmo de se dar ao luxo de temer de modo decente. Era cada vez mais curto o tempo em que passávamos no mesmo joguinho, mas aquele sem dúvida era um tempo recorde; ou eu era bom demais, ou ela havia finalmente criado alguma defesa mental pra resistir, ou um pouco de ambos.

De modo inesperado, ela voltou a cobrir seu rosto com o véu – era uma renda aberta e era possível ver seus traços o suficiente para não me atormentarem com a questão, mas ainda sim pouca coisa ficava visível além do rosado de seus lábios ou seus olhos intensos e claros, eternamente em estado de alerta.

– Você queria me contar alguma coisa, meu senhor? – perguntou ela.

– Deixa para lá, você pode saber com o resto da família. – respondi - Mas lembre-se... sempre fiel a mim certo?

– Sempre, meu senhor. – garantiu – Mas eu tenho algo que gostaria de lhe contar. – Aquilo sem dúvidas despertou minha curiosidade; fazia muito tempo que não se impunha no nível mais mínimo e dizer que ela sabia algo que eu não sabia... era uma audácia que não via há uns dois anos, portanto sem dúvidas era algo especial.

– Então diga. – murmurei, passando o dedo pela sua clavícula e sentindo-a prender a respiração com o toque.

– Minha prima Mirian foi encontrada morta essa manhã. Parece que a casa em que ela supostamente vivia sozinha, na verdade, era mantida por uma amante, que a amarrou e tacou fogo no lugar todo. – O choque me atingiu, não nego, mas o choque por ninguém ter me avisado nada o dia todo e não pela morte daquela porca, só facilitou meu serviço. Porém...

– E sabem de alguma coisa? Tinha... mais alguém lá?

– Parece que havia uma criança bastarda, meu senhor. Porém ela foi mandada para longe, para crescer fabricando os Cristais de Inocência que o senhor tanto gosta. Mas como o povo de Mari é resistente, temo que o menino não sobreviva por muito tempo na rotina árdua de trabalhos, mesmo que só o façam ir lapidar a partir dos três anos. Havia um bilhete garantindo que seu último cristal seria entregue a mim.

Então foi nesse momento em que eu percebi qual era a mudança em Mila. Ela não estava mais forte, embora minha perícia na cama ainda pudesse ter uma parcela de culpa.

Mesmo que fosse um parente não muito amado, a antiga Mila teria chorado, sofrido, se fechado no quarto e só saindo quando eu mandasse – mas essa me contava tudo calmamente, com um descaso inacreditável com a sua parenta de sangue e o bebê, logo ela que se derretia por aquelas coisas rechonchudas e barulhentas.

Afinal de contas havia um furo fundamental nessa história: se o amante não havia amarrado nem queimado ninguém, só podia ser culpa da oficial do homem e por qual motivo mais a pedra seria entregue a ela? Porém não havia nenhuma falha aí, era tudo proposital, ela queria que eu soubesse até onde foi e do que se tornara capaz após todos os anos de martírio em minhas mãos.

Essa era uma mulher que me daria filhos mais fortes que Berton, que me ajudaria a derrubar meu pai e Morjov, que seria sempre fiel a mim, até o fim.

– Mila?

– Sim, meu senhor?

– Me chame pelo nome.

– Sim... Henry.

E a beijei fervorosamente. Beijei minha noiva linda como só as pessoas cruéis conseguem ser.


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Notas finais do capítulo

Vamos lá, acho que devo uma explicação não é mesmo?
Nem Henry e nem Mila são vilões exatamente clássicos, aquele cara mau que empaca a vida do mocinho. Porque para mim os piores vilões, tanto na ficção quanto na vida são aquelas pessoas que te convencem de que o mau é o melhor caminho. Aqueles que, não importa quão doce e amável a pessoa tenha sido um dia, eles a fazem abrir mão de seus valores em troca de um caminho "mais fácil", não importando o preço.
Porque essas pessoas tem um carisma que sempre as tornam as mais perigosas possíveis.
Obrigado por ler e espero que tenham gostado!