Aquele Que Veio do Mar escrita por Ri Naldo


Capítulo 23
Cachorro




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Já é minha vez? Deuses, como vocês têm pouca história pra contar.

Meu nome é Colin Farrell Bourdon, e sou filho de Atena, como vocês sabem. Eu fugi de casa quando tinha oito anos, se estão curiosos em saber. Meu pai, depois que minha mãe foi embora, entrou em uma depressão profunda, nem comer ele podia, eu contratei uma enfermeira particular pra ele e fugi. A polícia acabou me pegando em um descuido, e eu fui parar no internato de Louise, já que eu negava em dizer onde era a minha casa. Vocês também sabem a parte de como conheci Louise, já que ela contou. Então, creio que devo começar por quando salvamos Mirina.

Era um tempo agitado no Acampamento, todos os sátiros estavam ocupados, não havia um sequer que estivesse livre, correndo pelas florestas atrás de suas ninfas ou jogando vôlei com os campistas. Todos estavam em uma missão, em qualquer lugar que fosse do país, para resgatar um semideus. Então, quando isso acontecia, casualmente semideuses veteranos eram enviados ao invés dos sátiros para essas missões. Como eu e Louise estávamos no Acampamento ia fazer quatro anos, fomos escolhidos para uma dessas. Washington D.C, ou seja, dias e mais dias de viajem. Ainda bem que fomos poupados disso, pois ignoramos o que Quíron nos dissera e fomos de táxi. Não um táxi normal, claro. O das Irmãs Cinzentas. Do que íamos levar dez dias, levamos dez minutos.

Mirina vivia em um internato — como 99,9% dos semideuses, Julieta entre esses 0,1% —, que, particularmente, era até bonito. Ficava longe da cidade, como uma chácara ou algo assim. Eu lembro de um papel de parede preto. Aliás, tudo lá era preto, parecia até uma espécie de seita. O que eu achei estranho, e um tanto desnecessário, foi que os alunos tinham que usar uniforme, mesmo fora do período de aula. Acho que só tiravam aquele treco horrível na hora de dormir. Talvez. Se Mirina ainda estivesse aqui eu perguntaria para ela.

— Qual a necessidade disso? — perguntei para Louise, depois da terceira detecção de metal pela qual passávamos. Parecia até que estávamos entrando no Pentágono.

— Sei lá — ela fez um gesto, movimentando o dedo indicador ao redor da orelha, ou seja, “são todos uns loucos”.

Finalmente, depois de incontáveis precauções de segurança, conseguimos entrar no lugar, só entrar.

— Nós, hum, queremos falar com Mirina Murray.

— Vocês são os pais dela? Acho que não. — falou, carrancuda, a secretária do internato, que parecia uma foca adulta vestida de preto. Achei que tinha ido parar numa ilha de vikings.

E vocês me perguntam, “como você sabia que Mirina era uma semideusa?”. Já que não tínhamos o olfato desenvolvido de um sátiro, íamos até nosso Oráculo, Rachel, e ela adivinha onde e quem eram os semideuses. Aquilo era estranho, mas com certeza ele devia saber algumas coisas importantes, eu até queria ser o Oráculo… Mas, imagine só, um filho de Atena como Oráculo, que beleza.

— Nós precisamos falar com ela. — falou, mais carrancuda ainda, Louise.

— Vocês não precisam de nada. — a secretária levantou a voz.

Louise bateu no balcão.

— Nós… precisamos… falar… com… ela. — Louise repetiu. Todos que estavam na secretaria olharam para nós, assustados. Juro que naquela hora o soco que ela me dera quatro anos antes doeu novamente. Ou talvez seja só aquele que ela tinha me dado depois de sairmos do táxi, “só pra aquecer”. Ela amava me bater.

A secretária pareceu intimidada, e seu olhar carrancudo vacilou. Era digitou algo no computador, que Louise quase derrubou, e nos apontou para uma das sala que ficava no fundo da secretaria. Saímos andando, com o olhar das pessoas nos seguindo para onde quer que fôssemos. Talvez estranhassem não estarmos de uniforme.

— Tá, e como vamos achá-la no meio dessa multidão? — falei.

O pátio do internato era um inferno de meninos e meninas, de diferentes idades, tamanhos, porte físico, etc. Íamos levar um bom tempo ali.

— Mirina, volte já aqui! — gritara alguém atrás de nós.

Ou não.

Uma menina loira corria com uns quatro livros nos braços. Ela não era muito diferente de agora, já que isso aconteceu poucos meses atrás. A mulher — que deveria ser a bibliotecária —, corria como louca atrás dela.

— Essa é a terceira vez que você rouba da biblioteca, só essa semana! — ela gritava. — Eu vou ter que chamar a diretora.

Mirina virou e mostrou o dedo do meio pra mulher, que parou, perplexa.

— Eu não ligo! — Mirina gritou de volta, e voltou a correr, rindo. Vi vários rostos se virarem para ver o que estava acontecendo.

— É a Mirina roubando livros de novo — alguém falou.

— Já é normal.

E voltaram às suas atividades. Olhei para Louise, ela deu de ombros, e saiu andando na direção que Mirina fora. Corri para acompanhá-la.

— É melhor irmos rápido — apontei para a bibliotecária, que agora estava acompanhada de outra mulher. A secretária parecia uma criancinha indefesa perante ela, que deveria ser a diretora. Devia ter, literalmente, dois metros e meio de altura. — Ela tem uma aura estranha…

— Está dizendo que a diretora é um…

Tapei a boca dela.

— Sim, vamos.

Depois de algumas perguntas, chegamos ao dormitório de Mirina, ofegante.

— Quem são vocês? — ela perguntou por cima de um livro.

— Depois explicamos, você tem que vir com a gente. Tem uma mulher do tamanho de um poste atrás de você — falei.

— Ela realmente chamou a diretora? Legal, eu não tenho medo dela. E por que eu iria com vocês?

— Porque somos iguais a você — disse Louise.

Ela adotou uma expressão confusa.

— O que vocês querem dizer com isso?

— Perdemos nossos pais, de uma maneira ou de outra. Somos caçados por monstros. E temos, hum… certos poderes.

Ela imediatamente voltou a ler o livro.

— Eu não sei do que vocês estão falando.

— Ah, ótimo, não vai vir? Ok — Louise foi até Mirina e jogou o livro que ela estava lendo pela janela.

— Ei! Eu estava quase terminando! Eu tinha que saber quem morreu! — ela estava indignada.

Louise tapou a boca dela com uma mão, segurando a cabeça ao mesmo tempo, e pegou as pernas com outra, imobilizando-a nos seus braços, o uniforme preto se destacando na pele branca de Louise.

— Ou vai por bem, ou vai por mal. — e saiu andando do dormitório.

Eu já podia ouvir a voz que quase parecia masculina da diretora virando o corredor. Falei para Louise se apressar, e saímos de mansinho pelos corredores. Ao invés de encontrar uma saída daquele labirinto, encontramos o zelador, que, vendo a situação de Mirina, gritou:

— O QUE VOC…

Louise deu um chute no saco do coitado, que caiu duro no chão, resmungando com voz de soprano. Mas tinha sido o suficiente.

— Ali — ouvi a voz da bibliotecária. A diretora correu em nossa direção, o que quase demoliu o prédio dos dormitórios.

— Hora de parar de sermos discretos — e nós também corremos em disparada.

Saímos do prédio, e todos os alunos viraram seus rostos para nós, e ficaram perplexos quando viram a diretora em pessoa correndo atrás de nós, ou talvez o fato de Louise estar levando Mirina nos braços, que tentava gritar desesperadamente.

Eu vi as palavras “Saída de Emergência” em uma porta no final do pátio. Apontei pra lá, e Louise assentiu. Ela não esperou a porta ser destravada e tudo mais, ela deu um chute, que resolveu as coisas bem mais rápido. Saímos em uma estrada de terra, que devia levar à cidade.

A diretora também não esperou, literalmente destruiu tudo. Mas agora não eram só “simples” bibliotecária e diretora, elas estavam se transformando em algo muito pior, se é que isso é possível, agora que estavam fora do alcance de vista dos alunos.

— Eu te disse — falei pra Louise.

Ela olhou pra trás e deu de ombros.

— Cale a boca e segure ela — Louise soltou Mirina nos meus braços, que tentou correr, mas eu a segurei.

— Louise, você não está pensando em lutar com o que é que seja aquilo sozinha, não é?

— Eu já lutei uma vez. O que foi, Colin, sua memória está falhando? — ela deu um sorrisinho.

Os uniformes negros se transformaram em pelugem, os corpos das duas mulheres se fundiram, o nariz foi inclinado para frente, e as orelhas, esticadas para trás. Cada par de braços e pernas se uniu, formando um só, a não ser pelo último par, que virou uma longa e peluda cauda. Ortros, o cão bicéfalo que nos atacara quatro anos antes, estava ali na nossa frente. Bem maior.

— Acho que você não vai conseguir derrotá-lo com apenas um soco agora, Louise.

— Sem problemas, eu dou quantos socos forem necessários.

Louise deu o primeiro soco, sem nenhum efeito aparente. O segundo, menos efetivo ainda. Mas o cachorro quem deu o terceiro, e Louise foi arremessada com tudo para o chão. Ela se levantou de novo, e estava com raiva, nem me perguntem como ela ficava quando estava com raiva, é horrível demais. O cachorro tentou mordê-la, mas ela segurou seu dente e o arrancou, tirando um ganido dele. Em troca, ela cortou a mão. Então uma lembrança me veio à mente. Depois que cheguei no Acampamento, eu passei a maior parte do tempo pesquisando sobre monstros. Ortros foi um deles, ele era igual à descrição. Pelugem preta, bicéfalo, aparência canina, e veneno nas presas.

— Essa não… — falei, baixo.

— O que foi? — Mirina perguntou. Ela assistia a luta boquiaberta.

— Louise! Saia daí! Ortros tem veneno nas presas!

— Eu não ligo, estou quase acabando com ele — mas ela não havia sequer feito um arranhão, além de arrancar o dente.

— Louise Roocher Martin, pare de ser cabeça dura pelo menos uma vez na vida e aceite a razão. Você vai morrer se continuar aí! — gritei. Ela pareceu com raiva, mas assentiu. Voltou correndo até onde estávamos, enquanto o cão se debatia com a dor de um dente arrancado.

— Chame a carruagem das Irmãs Cinzentas. Leve Mirina até o Acampamento.

— E você?

— Alguém tem que cuidar dele, não? — apontei para Ortros, que já se recuperara.

— Colin, não… — a raiva sumira do rosto de Louise.

— Vai, Louise, rápido. Ou isso vai ser em vão.

Corri até o cão.

— Ei, bola de pêlos, por que não vem em cima de mim? — dito e feito.

A última coisa que vi antes de dobrar uma das ramificações da estrada de terra foi Louise entrando no táxi feito de fumaça com Mirina. Eu pensei nas opções. Podia correr, mas eu ia cansar, e o monstro me pegaria. Podia tentar despistá-lo, mas ele era um cachorro, o que significava que devia ter um faro avançado. Só me restava usar o que tinha na mochila, um líquido bem peculiar que eu, secretamente, andava tentando fabricar.

Assim que explodisse, a garrafa de fogo grego embeberia tudo de estivesse em seu caminho, então eu teria que correr muito, mas era minha única opção. Eu esperei Ortros vir até mim, e no exato momento que ele abrira a boca para me devorar, eu joguei a garrafa estômago dele adentro.

Ouvi o ganido estridente do cão, então eu corri, mas as chamas eram rápidas demais. Senti elas chegarem na minha calça jeans, e senti minha pele queimar, mas eu vi uma esperança azul. Me joguei de cabeça no lago.

Então, sem nenhum dracma sequer, eu andei por dias e dias, até chegar em Nova York, estava tão perto de Manhattan… quando três garotas me ofereceram estadia grátis em uma pensão. A partir daí, vivi pela paciência das harpias de uma refeição completa e de comida de passarinho.

Até o dia que Dylan, Louise, Mirina e Julieta me salvaram.


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Notas finais do capítulo

Próximo capítulo já é segunda parte, então, até lá



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