Aquele Que Veio do Mar escrita por Ri Naldo


Capítulo 22
Torneio


Notas iniciais do capítulo

Dedico esse capítulo para a Júlia, que me ajudou com a história da Julieta e mais outras coisinhas.



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O quê? Já é minha vez? Mas a Louise começou a contar agora a pouco! Sua história é tão pequena assim? Calma, não precisa me bater, eu já vou. Menina estressada…

Hum, olá! Meu nome é Julieta, como vocês já devem saber. Segundo o que me disseram, eu vou ter que contar minha história pra vocês. Bom, é um pouco triste e longa, mas é o que me disseram pra fazer. Acho que devo começar com aquele torneio de arco e flecha.

— Olha, mãe. — apontei para um cartaz um tanto desbotado fixado na parede da minha escola. — É um campeonato de arco e flecha! Um campeonato de verdade!

Eu tinha só sete anos, e as únicas vezes que tinha tocado num arco e flecha foi quando meu pai me deu um, poucos meses antes. Ao contrário dos outros semideuses, eu vi meu pai, e, na verdade, ele ia me visitar todo ano. Desde pequena eu sempre soube que era uma semideusa. Minha mãe cuidava para que eu não chamasse muita atenção. Afinal, nenhuma menina de menos de sete anos poderia lutar contra monstros de três metros de altura.

E, mesmo tendo apenas sete anos, e mesmo sem ter tocado em um arco na vida, eu demonstrei certo potencial com a arma, pelo menos um potencial relevante pra quem tinha a minha idade. Até meu pai, Apolo, o senhor do arco e flecha ficou surpreso.

Torneios de arco e flecha não eram muito comuns em Sacramento, na Califórnia, então claro que uma garotinha apaixonada por arcos como eu ficaria louca com isso.

— Posso ir, mãe? Deixa eu ir! — eu estava balançando a saia dela de um lado para o outro, tentando chamar sua atenção. — Por favor?!

— Quando é?

Analisei as informações presentes no cartaz.

— Daqui a duas semanas!

— Não é muito pouco tempo pra você treinar?

— Eu já sou boa o suficiente! Vai, mãe, por favor! — eu estava realmente excitada com aquele torneio. Quem sabe quando teria outro desses?

Eu estava tão agitada que os pais e alunos que saíam da escola olhavam pra mim como se eu fosse algum tipo de louca. Eu realmente precisava ir naquele campeonato.

— Calma, Julieta. Tá bom, você pode — ela falou, e sorriu pra mim.

Eu comecei a pular de felicidade, como em todas as vezes que eu via meu pai. Até hoje eu não entendo por que a maioria dos semideuses tem rancor de seus pais e mães olimpianos. Eu entendia que ele não podia ficar, e era grata por ele quebrar as regras e ir me ver todo ano.

Eu não era tão boa quanto disse que era pra minha mãe, eu só falei aquilo pra tentar convencê-la de que eu tinha chances naquele torneio. A cada dia o número de cartazes aumentava, o que significava que a concorrência também aumentava mais e mais. Isso era sério, e eu realmente desejava ganhar aquele torneio, então eu tinha que treinar.

Logo depois de chegar da escola e almoçar, eu ia treinar no meu quintal, usando as diversas árvores como alvos — eu usava um pouco de tinta guache branca e vermelha pra fazer os círculos —, e só saía de lá quando já estava escuro, e minha mãe já tinha se esgoelado me chamando para tomar banho.

Agora só faltava um dia, e a ansiedade já me dominava até os ossos. Decidi não treinar hoje, para eu não acabar sem energia para amanhã. Quando eu cheguei em casa e comi, fui direto dormir. Minha mãe estranhou eu não ter ido para o quintal.

— Ué, não vai treinar hoje? — ela falou, da porta do meu quarto.

— Claro que não. Eu tenho que economizar energia! Imagina se eu caio no sono na hora de atirar a flecha?

Ela riu. Era um riso genuíno. Eu sabia que ela não ligaria se eu ganhasse ou perdesse. Ela apenas queria me ver feliz. Eu a amava por isso.

Acordei às 6 da tarde, horário que a gente usualmente jantava. Encontrei minha mãe na cozinha, mexendo em uma panela no fogão. Cheguei perto dela, e vi que estava fazendo mingau de aveia. Eu odiava aveia.

— Mãe! Você sabe que eu odeio aveia. — falei, indignada.

— Aveia vai te dar energia pra amanhã, ou você não quer ganhar? — ela tinha um sorriso de malícia no rosto.

— Que golpe baixo. Só dessa vez.

— Bem, na próxima vez que tiver um torneio você come de novo.

Comemos em silêncio por um tempo. Quase não percebia minha mão indo e vindo do prato, porque eu estava afogada em pensamentos.

— No que você está pensando? — perguntou minha mãe. Era incrível como aquela mulher me conhecia tão bem.

Fiquei batendo a colher no prato, pensando na melhor forma de falar aquilo que estava na minha mente.

— Eu queria que meu pai estivesse lá. Eu queria que ele me visse — falei, ainda encarando a colher.

— Acho que o seu pai não perderia um evento importante como esse, não é? Vai por mim, de algum jeito ele vai estar lá — ela apertou minha bochecha, que, quando eu tinha aquela idade, eram demasiado grandes. — Que tal sairmos agora? Descontrair um pouco?

Assenti. Acabou que chegamos em casa do salão de boliche às duas da manhã. Como toda criança normal da minha idade, eu estava morrendo de sono. Cinco minutos depois de escovar os dentes eu já estava roncando.

Então, finalmente, o grande dia chegou. Na escola eu já não conseguia me concentrar em nada, e, quando cheguei em casa, eu estava tremendo de tanta ansiedade. O torneio estava marcado para as três da tarde, e, naturalmente, às uma e meia eu já estava com tudo pronto. Minha mãe, notando meu nervosismo iminente — que não era coisa difícil de se notar —, se aproximou e me abraçou.

— Vai dar tudo certo, você vai ver.

Quando o relógio bateu duas e meia, nós saímos de casa, e eu fiquei tentando conter minha tremedeira olhando para as casas retangulares e coloridas que tínhamos à nossa vizinhança. Chegamos ao parque municipal, local onde ocorreria o torneio. Quando saí do carro, eu me senti definitivamente pequena. Tinha pessoas muito mais velhas e altas que eu lá, e até alguns adultos. Quando me viam com o arco na mão, lançavam um olhar como “o que essa garotinha está fazendo aqui?”. Eu apenas os ignorei. Adorava quando me subestimavam, só para provar o contrário.

Eu e minha mãe fomos até a banca de juízes, onde três pessoas, dentre elas uma mulher, estavam conversando e rindo entre si. Era lá também onde se faziam as inscrições. O da esquerda, um adulto moreno de pele escura, vendo que eu estava chegando, virou sua atenção para mim.

— Olá, menininha, pra quem você vai dar esse arco?

— Eu, hum… vou usá-lo.

— Quer dizer que vai competir? — a mulher do meio, uma ruiva gordinha, falou.

— É proibido? — minha mãe levantou a voz.

— Não, mas…

— Então coloque o nome dela aí.

O homem apenas ficou de boca fechada e colocou meu nome na lista dos inscritos, que, pelo que eu vi, passava dos cinquenta.

— Vai começar daqui a quinze minutos, você pode aquecer um pouco ou só esperar, se quiser.

— Muito obrigado — falei, entre risadinhas.

Decidi esperar lá na arquibancada, que estava quase lotada. Já havia visto tudo em minha mente. Eu iria ficar nervosa no exato momento de lançar a flecha, erraria o alvo de longe, e todos ririam de mim. Balancei a cabeça, precisava eliminar esse tipo de pensamento.

Quinze minutos depois foi feita uma chamada com o nome de todos os inscritos. O homem de pele escura que havia me inscrito a estava fazendo. Levantei, esperando meu nome ser chamado, quando finalmente “Julieta Capuleto Leicerd”. Fui até onde os outros estavam, próximos à banca de jurados. Podia sentir o olhar das pessoas da arquibancada sobre mim.

Quando ele terminou a chamada, veio até nós e nos explicou o esquema do torneio. Seríamos divididos em grupos, e apenas o primeiro de cada grupo passaria para a próxima fase. Na primeira fase, cada um teria direito à três flechadas em um alvo a trinta metros de distância, onde cada círculo no alvo valia uma determinada pontuação. Todos haviam entendido. Era hora de fazer tudo aquilo valer a pena.

Meu grupo seria o primeiro, e eu seria a última dele, então apenas fiquei sentada na grama, dando olhadas de esguelha para minha mãe, que estava observando os competidores com atenção. O primeiro garoto, mais ou menos quinze anos, fez vinte e dois pontos, apenas oito pontos a menos da pontuação máxima. Os próximos fizeram, respectivamente, quinze, vinte e zero. A menina que não acertou nenhuma flechada saiu da área dos competidores chorando.

Fui tremendo até a marca no chão onde os atiradores deveriam ficar. Mirei a primeira flecha, respirei fundo e soltei. A flecha parou na marca de seis pontos. Pelo menos eu não tinha errado, e recebi até alguns aplausos. A segunda chegou mais perto, sete pontos. Eu estava com treze pontos até agora. Eu estava indo bem, só precisava de mais nove para empatar com o primeiro lugar. Fiz uma pequena oração para Apolo, estivesse ele assistindo ou não, e soltei a flecha. Fiquei com os olhos fechados por um tempo, com medo de onde a flecha pudesse ter parado, com medo de ter de sair da competição, mas eu os abri quando ouvi os aplausos frenéticos da plateia. Eu acertara a flecha exatamente no centro do alvo. Eu tinha passado o primeiro lugar, e continuara na competição.

Olhei para minha mãe, ela sorria pra mim. Isso fez tudo valer a pena. Como ainda tinham onze grupos para se apresentar, eu fui sentar lá do lado dela, e ela me contou como a torcida vibrou quando eu acertei o centro do alvo, e como as apostas em mim aumentaram.

— Apostei oitenta dólares em você, então é melhor você ganhar, mocinha — ela afagou minha cabeça, e ficamos lá até eu ter de voltar.

Na segunda fase nós seríamos divididos em dois grupos de seis pessoas, e o grupo que fizesse mais pontos no total continuaria, enquanto todos os outros competidores do outro grupo seriam eliminados. Minhas chances na primeira fase eram de uma em cinco, agora de uma em dois. Já era uma vantagem.

Duas pessoas de cada grupo atiravam em dois alvos diferentes ao mesmo tempo, o que dava mais ansiedade para saber quem fez mais pontos. E começou. Eu seria a quinta, e atiraria junto com uma mulher já adulta.

Saímos perdendo na primeira rodada, oito a cinco. Catorze a dez. Vinte a dez — um garoto do meu time errara o alvo por pouco. Vinte a vinte — foi a vez da menina do outro grupo errar, e o do nosso acertar em cheio. Agora era eu. Eu ficaria com o mesmo alvo que atirei na primeira fase. Poderia atirar na contagem de três. Um… posicionei meu arco… Dois… preparei a flecha… Três. Atirei. Eu acertara no ponto nove do alvo, e a mulher adulta do time também. Era hora da última rodada, e estávamos empatados. O menino que ia atirar do meu time se adiantou, e eu, como sempre, fechei os olhos. E só abri novamente quando ouvi a vibração da torcida. Olhei o placar no telão perto dos alvos. Trinta e oito a trinta e nove. Ganhamos por um ponto de diferença. Eu, sem pensar, corri até o menino, que era mais ou menos um metro maior que eu e o abracei. Ele sorriu pra mim e disse “valeu, garotinha”.

Agora seríamos divididos em três duplas, e competiríamos no mesmo esquema do anterior, só que quem perdesse seria eliminado. Era uma espécie de mata-mata. E, dessa vez, eu seria a primeira. E adivinhe só. Contra aquele cara que eu tinha abraçado. Bela vida.

— Boa sorte, garotinha — ele falou pra mim, e acenou.

Eu sorri pra ele de volta e corei. Me pus a preparar a flecha. Eu não queria eliminá-lo, e nem sair da competição, então, quando a ruiva gordinha contou até três, eu apenas fechei os olhos e soltei a flecha. Mas depois de soltar eu olhei, e vi a flecha se fincar no número dois. Droga, com certeza aquele menino tivera uma performance melhor. Eu saíra. Mas, quando fui olhar em que pontuação ele tinha chegado, eu fiquei confusa. Não havia flecha, o que significava que ele tinha errado o alvo, e que eu eliminara ele. Fui até ele, e olhei para baixo.

— Desculpe — falei baixinho, corada.

— Não tem problema — ele afagou minha cabeça, igual minha mãe. — Vou estar torcendo por você.

Eu sorri pra ele de novo.

Fui falar com minha mãe, enquanto esperava. Ela continuava a me incentivar. E, quando acabou a terceira fase, e só restaram três, eu soube que era agora. A final.

Teríamos uma flecha cada, no mesmo alvo. Não poderíamos acertar onde outro participante acertara — ou seja, se alguém acertasse o centro ganharia. Engoli em seco. Essa seria difícil.

Eu seria a última. O primeiro errou o alvo logo de cara, e saiu choramingando. O segundo acertou o alvo. Nos nove. O que significava uma coisa. Era tudo ou nada. Eu tinha, precisava, devia acertar no dez, só assim poderia ganhar. Antes de preparar a flecha, e antes de tudo, eu dei uma olhada em volta. Ele tinha que estar ali. Eu precisava do apoio dele. Então eu vi. Um cara já adulto, loiro, com um boné dos Yankees piscou para mim, e eu soube que era ele. Uma esperança cresceu dentro do meu peito, e eu soube naquele momento que eu podia ganhar. Eu mirei, e esperei a contagem de três. Soltei a flecha. Mas, no exato momento que eu soltei e flecha, fui empurrada para frente, e caí de cara no chão. Um barulho ensurdecedor perfurou meus tímpanos, e eu já não ouvia nada. Olhei para trás. A arquibancada explodira. Ou melhor, o gerador que ficava abaixo da arquibancada explodira. Tudo ficou escuro. Eu corri até lá, tirando os pedaços de madeira do caminho com dificuldade e gritando.

— Mamãe! MAMÃE!

Pessoas corriam por todos os lados, gritando e se esperneando. Eu tirei uma última lasca de madeira, e vi os cabelos dourados de minha mãe, vi seu rosto redondo, coberto de sangue que saía de seus ouvidos e nariz. Mas eu não vi vida. A explosão matara minha mãe. Então eu gritei, e chorei. Chorei até aquele cara com o boné dos Yankees me pegar pela cintura.

— Pai, a mamãe! — eu chorava no ombro dele.

— Eu, sei, filha. Venha. Eu vou te levar pra um lugar seguro.

— Eu quero a minha m...

Mas não tive tempo de completar a frase, porque meu pai começou a brilhar, e, quando olhei pros meus braços, vi que também estava brilhando. Então, de repente, sem mais nem menos, estávamos ao pé de uma colina. A colina Meio-sangue.

E agora, sete anos depois de tudo isso, eu ainda tenho pesadelos. Eu ainda vejo, às vezes, o rosto sem vida de minha mãe. Então, acho que é só isso que eu tenho pra contar a vocês. AH! Claro, como pude esquecer?

Antes de sumir, eu dei uma olhada para os alvos, e vi que acertara o alvo exatamente no centro.

Eu ganhara o torneio.


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