Aquele Que Veio do Mar escrita por Ri Naldo


Capítulo 16
Desabafo




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Caí no chão duro da cela com as pernas cruzadas e as mãos na cabeça.

Estranhamente, eu estava constantemente tendo calafrios que iam da espinha até a barriga, e a profecia ficava martelando na minha mente. A gente estava perdendo tempo.

A cela só tinha um fino e rasgado lençol cobrindo o chão, para não deixá-lo mais imundo ainda; um travesseiro, que mais parecia pedra; os sacos de comida e a garrafa de água que Luna tinha deixado lá. Por que não nos matar logo?

Ninguém havia tocado na comida ou na água, e todos pareciam chocados com a revelação da história de Luna. Ela sofreu, tudo bem. Mas ela poderia fazer os outros não sofrerem, e não passarem pela mesma coisa que ela. Ela tinha uma escolha. Bem ou mal. Ela escolheu o mal. Mas por quê? Por que existem pessoas más?

Uma lembrança:

Estava chovendo torrencialmente. Eu estava enrolado no edredom junto com minha mãe no sofá, e nós tomávamos chocolate quente enquanto assistíamos um filme na TV. Ah, como era bom o tempo em que eu podia simplesmente me aconchegar nos braços da minha mãe, e todos os problemas sumiam.

Minha casa era nem tão pequena, nem tão grande. Minha mãe tinha mania de colocar todas as nossas fotos em quadros e pendurá-los nas paredes, de modo que quase todas as paredes estavam cheias de fotos nossas. Quando ela morreu, eu só consegui levar a minha foto preferida, que eu tinha deixado no meu quarto, no internato. Eu pretendia voltar, mas não tinha ideia de que ia ser atacado por um ciclope, salvo por uma garota que agora só me xinga — mas tenho certeza que gosta de mim — e duas loiras malucas, ter entrado em um táxi de fumaça, ido parar em um Acampamento de verão dos deuses bizarro para qualquer criança normal — como eu era, ênfase no "era" —, ser escolhido para uma missão praticamente suicida — porém extremamente necessária —, ter viajado metade do mapa dos Estados Unidos com uma cadela que pode viajar por intermédio de sombras, ter achado um garoto loiro filho de Atena que nos salva de quase tudo — precisamos dele mais do que gostaria de admitir —, e agora estar de cara com a morte iminente.

— Mamãe — falei, ainda com a língua queimando por um gole de chocolate muito quente —, por que existem pessoas más?

— Querido — ela respondeu, sorrindo e passando a mão nos meus cabelos —, nem todos têm noção de como o mundo seria melhor se vivêssemos em paz e harmonia. Alguns querem mais que outros, desprezam os mais pobres. E, na maioria dos casos, morrem na mão de sua própria ganância. E outros só são maus por querer. Mas, filho, todos temos escolhas. Um dia você vai ter que fazer uma escolha na vida. Eu espero que você faça a certa.

— Eles não tem uma mãe como a senhora pra abraçar e ficar tudo bem? — nós sempre falávamos bem um do outro, não importava o que acontecesse. E, acima de tudo, eu amava ela. Ainda amo, claro.

Ela me abraçou mais forte e me plantou um beijo na testa.

— Poucos tem sua sorte, filho.

Seu sorriso era como um pedaço do céu na minha frente. Você acha que eu estou exagerando? Imagine a pessoa que você ama. Qualquer uma. Imagine-a sorrindo sempre para você. O quanto eu não daria para ter o sorriso dela de volta...

— Também não é pra se achar, mamãe — falei, rindo, em tom de sermão.

Ela começou a me fazer cócegas, eu ria sem parar e ela ria também.

Por fim, ela cansou, e nós ficamos lá, deitados com os braços em volta um do outro, ofegando. A chuva caía lá fora. Então eu me lembrei.

— Mamãe.

— Sim, querido?

— Acho que… esqueci meu tênis secando e o deixei na chuva.

O sorriso na cara dela continuou o mesmo. Ela nunca se irritava comigo. Nem quando eu fiz minha maior travessura, que não vem ao caso.

— Não tem problema, querido. O sol vai voltar amanhã, não é?

Eu sorri. Mas é claro que o sol vai voltar amanhã. Eu queria ficar naquele sofá abraçado com minha mãe o tempo todo. Eu queria...

— Mamãe, você vai ficar pra sempre comigo? — perguntei, em meio a resquícios de risada.

Alguém interrompeu meus pensamentos profundos. Eu tinha entrado no "modo automático" de novo. Adivinha quem?

— Ei, surdinho! Deuses, você é surdo mesmo ou o quê? — Louise falava em um tom triste, como se a morte estivesse pairando com a gente. Eu nunca tinha visto ela assim. Ou estava muito raivosa, ou muito agitada. Nunca para baixo.

— Luna — gritei, e repeti: — Luna!

Ouvi os passos lentos descendo a escada, o já familiar capuz negro apareceu, e depois a mulher de cabelos negros permanentemente bagunçados por causa de um raio surgiu. Seus olhos castanhos me analisavam.

— Ora… Então alguém sente minha falta aqui, não? — ela falou, sarcasticamente.

— Você… você tinha uma escolha. Por que o mal?

— Vocês. Todos vocês. Deuses, monstros, titãs, gigantes, semideuses, toda essa mitologia, até eu faço parte disso. Todos fomos culpados. Todos nós matamos meu pai. Ser semideusa é como uma maldição pra mim! Se eu não fosse essa aberração que eu sou, eu ainda estaria com meu pai.

— Era só por isso? Só… seu pai? O mundo não gira em torno dele, Luna…

Por um segundo, sua expressão mudou de indiferença para raiva, mas logo voltou ao normal. Eu precisava colher bem as palavras.

— Sim, o meu mundo gira em torno dele. Eu perdi a pessoa que eu mais amava nesse mundo. Minha mãe só olhou na minha cara de verdade aquela vez. Somos apenas meros brinquedos de quem criou tudo isso — ela fez um gesto amplo com os braços —. Não vê?

Eu estava indignado.

— Eu perdi minha mãe com oito. Um prédio desabou em cima da cabeça dela. Acha que eu não sei o que você passou? Todo maldito dia eu desejava os braços dela em torno de mim! Toda mísera manhã eu imaginava ela me acordando com um pão com geleia em uma bandeja na minha cama! — nesse ponto, meus olhos já estavam cheios de lágrimas. Eu me recusava a deixá-las sair — Eu nunca vi meu pai. Nunca. Eu vivi cinco anos de minha vida em cinco internatos, e em cada um eu fui tratado como lixo, só uma pessoa gostou de mim, e eu não vou mais vê-la. Mas olhe só, eu desisti? Eu passei para o lado dos bandidos e fui brincar de caçar aquele que "ocasionou" a morte da minha mãe, ou seja, todos os arquitetos e pedreiros do mundo? Não! Eu estou aqui, tentando salvar outras pessoas da morte. Eu não quero que ninguém, nem mesmo o meu pior inimigo passe pelo que eu passei. Mas eu já superei, já é passado pra mim. Se eu posso, por que você não pode? — fiz uma pausa pra respirar. — Eu não sei quem teve a brilhante — fiz sinais de aspas com as mãos no "brilhante" — ideia de criar isso, mas eu só sei que essa menina — apontei para Louise — me salvou da morte. E essas meninas — apontei para Mirina, e, depois, para Julieta — viraram minhas melhores amigas em apenas uma semana. Este garoto — meu dedo virou para Colin — é a pessoa mais inteligente que eu já vi em anos, e é essencial para o nosso objetivo. Eu nunca, em hipótese alguma vou deixar você ou ninguém machucar algum deles — agora a fúria total já me dominava, eu estava apertando meu MP3 com tamanha força que achei que ele ia quebrar.

Luna pareceu admirada.

Ela abaixou até seus olhos ficarem paralelos aos meus. Ficamos nos olhando pelo que pareceu uma eternidade. Então, ela sussurrou:

— Eu tenho poder. Você, não. O que vai fazer? Vai apontar seu dedo para a minha garganta daí de dentro dessa cela? VOCÊ ESTÁ PRESO! — e ela começou a rir como uma bruxa de verdade.

— Na verdade, não.

Mirina era incrível. Ela tinha transformado as barras da cela em pó, assim como fez com as pedras. Agora tudo o que me separava de Luna era um monte de poeira. Imediatamente eu conectei o meu MP3 e a habitual espada cresceu. Eu dei um chute na barriga de Luna e apontei a espada para sua garganta.

— Sabe, acho que tenho algo melhor que um dedo.

— Então, vai me matar?

— Uma ideia viável, mas não.

Todos tinham ficado calados, até então.

— Dylan! Ela ia matar a gente, mate-a também! — Louise gritou.

— Não!

— Então eu mesma vou fazer isso — e levantou.

— Louise, não! — Colin gritou, ele e Julieta agora estavam livres, graças a Mirina.

— Escute o que o Dylan tem a falar — disse Julieta.

— Luna… você acha… você acha que o seu pai quereria isso pra você? Caçar aqueles que o mataram? Você acha que ele morreu pra você fazer isso? Não fala a morte dele ser em vão. O que ele quereria que você fizesse? Por favor, Luna…

Todos ficamos em silêncio por alguns momentos, até que Luna o quebrou.

— Vá para Chicago.

E, com essas três palavras, ela estalou os dedos e sumiu, deixando uma fumaça roxa pelo ar. Alguém caiu no chão atrás de mim.

Era Mirina.


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