Sagira escrita por Senjougaha


Capítulo 4
Capítulo 4 - Eu tinha uma mãe e não sabia


Notas iniciais do capítulo

Mil vivas porque o Nyah! voltou heheh.



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Ouço alguns murmúrios e alguém está tirando minha franja da minha testa. É uma mão fria, mas cuidadosa e suave. Solto um gemido e sinto gosto de sangue em minha boca. Me sento e encaro minhas mãos sujas de sangue seco. O que aconteceu?
– Sagira, você está bem? - Tanatos pergunta se distanciando de mim.
Ele tenta se esconder no escuro pra que eu não perceba o quão preocupado/aliviado/desconfiado/assustado ele está. Mas se esquece de que enxergo perfeitamente bem no escuro e de que seus olhos são incrivelmente dourados. Sendo assim, sim, estou vendo seu misto de sentimentos constrangedores.
– Ah, sim, não esquenta - respondo passando a mão nos olhos.
– O que aconteceu agora a pouco? - ele pergunta chegando mais perto.
– Nada, droga - respondo frustrada.
Alguns minutos de silêncio se instala sobre nós e eu começo a choramingar.
– Não conte ao meu pai - peço.
É mais correto dizer que imploro.
Percebo que Tanatos prende a respiração. Ele não sabe o que fazer me vendo daquela forma patética. Eu, a deusa do sarcasmo chorando pra que ele não conte ao meu pai que algo aconteceu comigo. Talvez a vida também seja sarcástica comigo como consequência.
– Não vou contar - ele responde tenso.
Concordo com a cabeça e murmuro um débil "obrigada", fazendo com que ele volte a respirar normalmente.
– Mas tenho o direito de saber tudo, certo? - ele tenta.
Ah cara, que teimoso.
– Se eu te contar, vai pensar que sou uma garota que caiu num poço de auto-piedade e eu não quero a sua pena - torço o nariz.
– Não vou pensar isso - ele garante com uma certeza sem fim no olhar e chega mais perto.
O encaro. Será que... Será que eu devo contar pra ele? Já faz um tempo que não falo sobre minha vida pra ninguém. Na verdade, nunca falei da minha vida pra ninguém. As únicas pessoas que no mínimo se importam comigo são Hades e Anúbis, e eu não preciso contar as coisas pra eles. Porque eles simplesmente sabem, sempre estão comigo de alguma forma.
– Meu pai não te contou nada? - pergunto comprimindo os lábios.
Ele nega com a cabeça e frustração emana dos olhos de Tanatos. Ele quer mesmo saber.
– Eu não vou te contar - digo olhando fundo em seus olhos.
– Não? - ele repete confuso e desapontado.
– Vou te mostrar - completo pegando a mão dele de repente e mordo seu dedo, arrancando um filete de sangue.
Ele solta um gemido involuntário e sinto vontade de rir dele. Mas preciso me concentrar. Em como tudo era há séculos atras ou melhor, como o desastre Sagira aconteceu.
~Flashback
É um flashback diferente. Agora, estou como terceira pessoa juntamente com Tanatos: observando tudo, assistindo tudo e eu me sentiria num cinema se não fosse pelo calafrio que percorre minha espinha.
Uma bela mulher surge e ela está chorando. Tão amargurada. Segurando os poucos pedaços que sobraram de seu coração. Ela tem a pele bronzeada naturalmente, cabelos tão negros que possui tons de azul e pequenos cristais lhe enfeitam o corpo, como gotas de chuva.
Tanatos tenta fazer uma pergunta mas eu interrompo antes que ele a pronuncie. Sei que ele quer perguntar: quem é essa?
Movo meus lábios formando a palavra "Néftis é a mamãe". Soa bem patético e quase reviro os olhos para mim mesma. Ele aperta minha mão e só então percebo que estamos bem juntos e de mãos dadas. Não tenho tempo de protestar ou me sentir surpresa, porque o passado me chama de volta.
Néftis soluça à margem de um rio. Sei que é o Nilo de alguma forma.
Anúbis aparece atras da mãe e a abraça, consolando-a.
– Mãe... - ele murmura triste.
Ela chora ainda mais alto, abraçando o filho.
– Por que? - ela pergunta olhando para o céu sem focar em lugar algum - por que eu tenho que aguentar tudo isso?
Anúbis se frustra e vai embora. Sei que é porque ele detesta choro e exagero. Detesta corações partidos, especialmente o da mãe.
"Néftis é casada com Set", digo à Tanatos por pensamento "Não é lá o melhor marido do mundo, por ser a encarnação do mal", completo encarando minha mãe com o cenho franzido "Mas ele a ama do seu próprio jeito".
Tanatos assente. Ele está muito bem atento à história e sei que eu provavelmente não devia misturar gregos e egípcios, mas agora, contar pra ele é uma necessidade.
"Por séculos houveram boatos de que Néftis na verdade é apaixonada por Osíris, o deus do submundo, mas esse amor nunca foi correspondido", terminei e segui Néftis que agora corria pela mata rala.
Ela para, chocada e eu me aproximo mais. Deixo Tanatos ver o que a choca tanto: Hades está ali, encarando o céu da mesma forma melancólica que ela estivera há momentos atras.
– O que o traz aqui? - ela pergunta se afastando.
Sobressaltado, ele se afasta também. Olha ao seu redor e franze o cenho.
– Certamente não vim até aqui por vontade própria - ele resmungou a encarando desconfiado - não me chamastes?
Ela nega com a cabeça, fazendo os cabelos se desalinharem e algumas lágrimas voarem.
Aperto a mão de Tanatos e pulo um pouco no passado. Não preciso dizer que os dois tiveram um caso a partir daquilo.
Agora estamos diante da mesma Néftis. Ela encara o próprio reflexo no Nilo com expressão horrorizada, chocada. A barriga estava crescendo e o que ela pensara ser apenas uns quilos a mais era a gravidez mais indesejada dos mundos.
– Kalene - ela chama com uma voz seca.
– Sim, senhora? - uma serva jovem surge apreensiva.
– A todos que me procurarem por cinco meses, diga que não estou - ela ordena desfazendo a trança.
A serva assente. Ela nota o motivo do futuro sumiço da mestra, mas não pode dizer nada. Kalene sabe muito bem que até mesmo Néftis tem um lado obscuro.
Pulo mais uma vez e agora estamos diante de uma Néftis que joga o bebê para os braços de Kalene, com desgosto. Tanatos se sobressalta ao meu lado.
– Suma com isso - ela ordena rancorosa.
– C-Como, minha senhora? - ela pergunta com medo e confusa.
– Mate - ela responde como se fosse óbvio.
Kalene assente e sai da casa luxuosa, se preparando psicologicamente para obedecer a ordem da dona e mestra.
Mas o bebê em seus braços é tão encantador. Ela sabe que é uma menina, é claro. Fora ela que cuidara do parto.
– Eu sinto muito, menina - Kalene chora e dá um passo em direção ao rio Nilo.
Pretendia jogar a criança lá, deixando seu destino para a sorte. Mas uma voz cheia de raiva contida a impediu.
– Me dê ela, Kalene - Anúbis ordena.
– Não, senhor - ela gagueja e soluça - tenho ordens para... para...
– Me. Dê. A. Garota. - ele repete dando um passo firme por palavra.
Kalene estremece e com cuidado, deposita a garotinha nos braços do irmão. Teria jogado de medo do próprio, mas temeu a vida da criança.
– Ela tem um nome? - ele pergunta baixinho, fitando os olhos completamente negros e sem fundo do bebê.
– Não senhor - a serva responde, triste.
– Minha mãe sequer lhe deu um nome? - Anúbis pergunta incrédulo e com raiva nos olhos.
Kalene nega com um gesto assustado e ele ergue a criança nos braços, pensativo.
– Ela é tão pequena - ele se espanta e Kalene vê uma expressão amorosa no rosto sempre tão rancoroso de Anúbis.
A serva sorri e finalmente relaxa.
– Sagira - os dois dizem juntos.
A garotinha agora dorme agarrada ao peito do irmão mais velho.
– Kalene - Anúbis chama após alguns segundos de silêncio instalado no local.
– Sim - ela responde dessa vez sem medo algum.
– Encontre o pai dela o mais rápido possível - ele ordena - e a entregue.
Anúbis toca a testa da irmã e a envolve em ataduras. Pareço até uma múmia junior, e me esforço para não revirar os olhos diante da falta de criatividade do meu irmão. Ele a entrega para Kalene, que assente e parte imediatamente.
No escuro, Anúbis fecha os olhos com raiva da própria mãe. A odiaria se conseguisse. Mas então respira fundo e se lembra dos olhos da irmãzinha. Iguais aos seus. De seu pequeno rostinho inexpressvo, seu corpo anormalmente pequeno e frágil. Tão... dele. Anúbis então abre os olhos e sorri. Daria sua vida para proteger sua pequena e nova família.
Pulo novamente no passado e agora estamos no reino de Hades. O choro de um bebê acorda Perséfone, que com olheiras gigantes acalenta a criança, desesperada por paz. Ela não parece odiar a criança. Na verdade, parece ter um carinho especial por ela.
– Shhhh, querida, o papai vai acordar - ela implora abraçando o bebê.
É a primeira vez que pulo naquela época e congelo, chocada diante do filme que se passa à minha frente. Tanatos percebe e acompanha tudo no mesmo nível de espanto.
Perséfone canta uma canção de ninar e adormece ao mesmo tempo que o meu "eu bebê". Logo Hades aparece e embrulha as duas com um leve sorriso no rosto.
Incapaz de continuar vendo algo que era demais pro meu cérebro processar, pulo novamente várias vezes e mostro à Tanatos as vezes em que eu, ainda pequena, me transformo numa loba gigante, causando problemas no submundo e fazendo Perséfone ficar louca de raiva ou preocupação. Hades se mantém sempre paciente e carinhoso ao seu próprio modo.
Mas um certo dia, eu me transformo e não consigo voltar. Por três meses, Perséfone e Hades aguardam que eu retorne à forma humanóide e nada.
– Talvez essa seja a forma original dela - os espíritos sussurram com medo de que sejam ouvidos - a menina sempre foi violenta, uma verdadeira animal, deve ser igualzinha à mãe...
Mas Perséfone ouve perfeitamente. Furiosa, ela desfere um tapa no fantasma responsável pelo insulto. Ordena que punam o mesmo. Sempre se considerara a mãe da criança e pensa que o adjetivo de "animal" fora direcionado à ela.
– Senhora, eu não quis dizer que sois uma besta - o fantasma implorou - eu falava de Néftis, a verdadeira mãe da criança!
Perséfone congela com a menção daquele nome.
– A verdadeira mãe... Ah, tem razão - ela murmura friamente - eu jamais seria a mãe dessa coisa.
Ela se vira, furiosa e determinada a deixar de amar a garotinha que finalmente consegue retornar à forma "humana".
– Que se dane! - ela grita fazendo o teto tremer.
E olha diretamente para nós. Para Tanatos e eu, ali assistindo.
Perséfone sorri, primeiro de um jeito doce. Depois de um modo sinistro, como se dissesse "vocês não deviam ter visto isso".
E nós apagamos.


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