Xadrez escrita por Senhorita Ellie


Capítulo 3
3 - Jogar, Jogar


Notas iniciais do capítulo

Olá!
Hoje esse espaço vai ser dedicado aos agradecimentos: Lady Di, muito obrigada por ter recomendado a história! Ela está apenas no segundo capítulo (terceiro agora) e ganhar uma recomendação nesse momento só faz eu me sentir mais confiante. Muito obrigada mesmo, sua fofa!
A todos os outros que enviaram comentários, meus agradecimentos, adoro ler os comentários de vocês e mesmo que eu não responda imediatamente (lesada, lesada) guardo todos eles com carinho no meu heart. :3
Dito isso, vamos ao capítulo! Espero que gostem. :3



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Quinta feira, 05 de junho de 2014, Vespasiano

Na manhã seguinte, Davi acordou em êxtase. Pulou da cama cinco minutos antes do despertador tocar e do despertador tocar, feliz por finalmente estar em paz, sabendo que todo o inferno tinha acabado: ninguém mais iria colocar pés para ele tropeçar no corredor, jogar pedras em sua janela ou pior, ovos em sua cabeça, nada. Finalmente ele podia ser feliz no Vespasiano de novo. Quando chegou ao refeitório, Davi estava à beira das lágrimas.

Sua felicidade era palpável a metros de distância, mas assim que ele varreu os olhos pelo refeitório, procurando pela mesa em que ele ficaria, Davi sentiu a alegria murchar: Guilherme estava sentado sozinho em uma das mesas no fundo do cômodo, de cabeça baixa, mexendo no celular, mas assim que percebeu que estava sendo observado, se dignou a encarar Davi por apenas um segundo antes de virar-lhe a cara com raiva. Claro. Os dois estavam brigados. Aquilo não pareceu um detalhe tão importante nas semanas que em que Davi estivera uma pilha de nervos, preocupado demais em xingar Matheus de todas as maneiras possíveis para se importar — na verdade, ele mal se lembrava da briga. Enquanto caminhava entre as mesas, procurando uma vazia, Davi forçou a memória, tentando se lembrar do porquê da discussão.

Eu sei que faz mais ou menos duas semanas que nós não conversamos... Que dia? Ah... Eu não me lembro. Que droga. Espere aí... Acho que foi no dia em que Marina me chutou do clube. Vish...

Davi encolheu-se visivelmente. Só o fato de não se lembrar dos detalhes da discussão significava que ele estava extremamente estressado no momento em que ela aconteceu, e descobrir que brigara com o melhor amigo no que Davi considerava o pior dia de todo o seu ensino médio só tornava isso pior. Além do mais, ele sabia que no momento de uma briga , sua língua se descontrolava, invocando momentos e fatos do passado que a outra pessoa queria esquecer e usando-os como arma — ele podia não saber o que tinha atirado para magoar Guilherme, mas com certeza tinha sido potente. Em dez anos de amizade, as brigas dos dois eram raras e geralmente se resolviam em poucos dias.

Ele queria ser perdoado. Mas soube no momento em que encarou Guilherme ,e este lhe virou a cara novamente, que se quisesse o amigo de volta, teria que se humilhar.

Resignado, Davi levantou-se da mesa, esquecendo a reflexão e levando a bandeja consigo. O caminho que separava sua mesa da de Guilherme não era muito longo, e ele usou aqueles poucos minutos para considerar todos os diferentes modos de pedir desculpas que ele sabia que tinham a chance de funcionar: desde se ajoelhar e implorar até fazer uma declaração melosa na frente do refeitório todo (tinha funcionado na quarta série). No fim, entretanto, escolheu por algo que ele esperava ser simples e eficaz: se postou em frente à mesa do amigo como um cachorro abandonado, colocando no rosto a melhor cara de piedade que possuía.

Durante vários minutos, Guilherme o ignorou com toda a fineza que possuía, como se testasse sua resistência, e após perceber que Davi não desistiria, o encarou com desprezo calculado.

—Você parece um cachorro abandonado.

—Au-au.

—Vou chamar a carrocinha pra você.

—Au-au.

—Esse latido não está convincente.

—Au... Au.

Guilherme crispou os lábios, parecendo colocar toneladas de esforço para manter a expressão séria, totalmente contrastante com seus olhos risonhos, e Davi soube que tinha sido perdoado.

—Ok, senta aqui, Totó. Vou adotar você. — Guilherme deu batidinhas amigáveis na cadeira ao lado da dele. —Se bem que Totó é um nome bem ruim... Vou chamar você de Bolinha.

—Bolinha é o seu passado, seu gordo. — Davi retrucou, sentando-se. —Ou seu presente. Olha só essas banhas!

—Vou mandar castrar você.

—Estou vendo elas balançarem...

Guilherme lhe respondeu com um sinal obsceno, e eles se encararam por um segundo antes de se abraçarem; Davi sentiu suas costas serem socadas de um jeito exageradamente amoroso. Quando se separaram, as costelas dele doíam um pouco, mas ele tinha seu amigo de volta.

—Voltou ao normal, finalmente! — Guilherme suspirou, pegando um pote de geleia da bandeja de Davi sem perguntar. Ok. Eles tinham acabado de fazer as pazes, permissões especiais eram concedidas. —Demorou para o menino te dobrar.

—Eu tento ser duro na queda, e na maior parte das vezes, funciona. Em outras, bem... — Davi suspirou, observando Guilherme pegar também sua fatia de bolo de chocolate. Aí já era demais. —Pare de catar as coisas da minha bandeja! Eu acabei de dizer que você está “banhudo” e você continua comendo? Pare de comer!

—Não, e vai se ferrar, Bolinha. De volta pra casinha.

—Se eu mandar você no meu lugar, o que acontece?

—Você vai jogar xadrez com Matheus o resto do ano — Guilherme deu um sorriso presunçoso —, sem meu maravilhoso apoio psicológico para te ajudar a não matá-lo.

Davi ficou calado por um momento.

—Volte a comer.

Eles conversaram e conversaram, e quinze minutos depois, Guilherme ainda ria baixinho.

Gordo maldito.

>><<

Davi protelou a conversa o máximo que pôde, mas Guilherme ainda tinha aulas no turno da manhã e não podia se atrasar. Os dois se despediram no meio do pátio principal, e enquanto o amigo seguia para o segundo prédio, onde ocorriam as aulas, Davi caminhou sem vontade para o quarto casarão, sentindo-se ao mesmo tempo com pressa de chegar e louco de vontade de correr de volta para o dormitório.

Ficar sem o xadrez foi uma experiência terrível, que ele não esperava que tivesse sido desta maneira: seu primeiro contato com o jogo acontecera no primeiro dia de clube, apenas dois anos antes, e em comparação com todos os seus colegas, que jogavam xadrez desde jovens, aquele tempo parecia insignificante. Ele tinha se surpreendido ao se pegar pensando em xadrez em todas as horas livres pela manhã, solitário em seu quarto, imaginando estratégias e jogadas diferentes e sonhando com o momento em que conseguiria voltar para o clube...

...E quando estava a cinco minutos de distância deste momento, Davi simplesmente suava frio, suas pernas pesando toneladas de repente.

Eu imaginei tudo tão bonitinho: eu iria entrar e participar do clube de novo e todo mundo iria me receber de braços abertos e tal... Esqueci que a Marina provavelmente vai me matar.

Seus passos eram lentos, mas ainda assim eficientes, e por mais que tivesse protelado, Davi chegou à sala do clube em pouco tempo. Parado em frente à porta, encarando a madeira como se esta fosse lhe dar todas as respostas de que precisava, ele respirou fundo uma, duas, três vezes, e finalmente segurou a maçaneta e a girou.

A primeira coisa que ele registrou foi um bispo de madeira dos tabuleiros da escola rolando em sua direção, colidindo suavemente com seu pé, e se abaixou para pegá-lo. Quando se levantou, passou rapidamente os olhos pela sala, notando que todos estavam sentados em duplas, como sempre faziam, e de repente Marina estava em cima dele, observando-o com seus olhos impiedosos.

—Olá. — ele a cumprimentou timidamente. —Bem... Voltei.

Marina não respondeu, ainda observando-o com os olhos mais pétreos que ele já tinha encarado e a atmosfera fria da interação pareceu contagiar todos os presentes. Em menos de um minuto, todas as conversas haviam cessado e o som das respirações era o único a cortar o silêncio tenso que se instalara.

—Percebi. Você está de volta. — a voz dela soou perigosamente baixa. Péssimo sinal. —E de repente o grande Davi está de volta! — gritou, fazendo todos os presentes pularem. Suspirando, Davi fechou os olhos e se preparou para o sermão. —Você faz ideia do quão preocupada eu fiquei com você nessas malditas duas semanas? Você é um maldito idiota! Simplesmente estúpido! Eu achei que você iria voltar no dia seguinte, quando esfriasse a cabeça, mas na. E duas semanas sem dar nenhuma notícia parece ótimo pra você, não é? — a voz se elevou para um berro. —DA PRÓXIMA VEZ, PENSE ANTES DE FAZER UMA BESTEIRA DESSAS! PENSE ANTES DE ME DEIXAR PREOCUPADA! PENSE ANTES DE FICAR DUAS SEMANAS SEM APARECER! E PRINCIPALMENTE, PENSE ANTES DE ME COLOCAR UMA MALDITA TORRE PARA DEFENDER O REI DE UM CAVALO! EU AINDA NÃO PERDOEI VOCÊ!

Ela parou para pegar fôlego, ofegante. Durante um longo minuto, Davi esperou pacientemente que ela continuasse, mas Marina não disse mais nada e o encarou avaliativamente, esperando por algo.

Ah. Claro.

— Me desculpe, Mar. — ele sorriu internamente com a própria esperteza de usar o apelido. —Eu não estive no meu melhor estado nas últimas semanas.

Ele respirou fundo, reconhecendo a verdade daquelas palavras, e escutou Matheus rir baixinho em algum lugar da sala. Desgraçado.

Marina o observou por um momento, os olhos cerrados, e por um momento de desespero, Davi notou que ela estava quase chorando. Por sorte, sua professora era mais forte que isso, e em algumas piscadas, estava completamente recomposta, caminhando para lá e para cá como se estivesse debatendo algo consigo mesma.

—Venha cá. — disse, enfim parando e estendendo uma mão para o garoto. Davi hesitou, temendo que ela fosse lhe dar um soco, mas deu dois passos hesitantes à frente, sendo surpreendido por um abraço de urso. Durou pouco, mas quando acabou, ele teve a impressão de que algumas costelas estavam fora do lugar. —Vá jogar xadrez, pirralho. Você vai ter que suar muito para compensar suas semanas de atraso comigo. — Marina lhe deu um sorriso pequeno, cúmplice, antes de se virar para a plateia silenciosa e ligeiramente abismada com a interação. —E vocês também! O que estão fazendo? Isso aqui não é um cinema! Voltem aos seus tabuleiros, bando de desocupados!

Um a um, os expectadores voltaram a seus jogos, silenciosos, embora alguns deles tivessem levantado o olho quando Davi caminhou pelas mesas à procura de um parceiro livre. Marcelo, seu companheiro também nas aulas de química, foi o único a acenar para ele suas boas-vindas — graças a alguns materiais de química sabotados, o garoto estava ciente da situação de Matheus e Davi, e entendia o que o fato de o amigo estar ali significava. Davi retribuiu o aceno com entusiasmo, pensando que os dois provavelmente iriam comemorar o fim do inferno depois.

—Caso você não se lembre, nosso número tem um número par de alunos. Com você fora, estivemos ímpares. — a voz de Matheus soou atrás dele, desgostada, distraindo-o de Marcelo. —Você pode adivinhar quem sobrou na maior parte dos dias?

—Não foi você, com certeza. — respondeu Davi, contrariado, virando-se para cumprimentar o outro. Matheus era valioso demais para ficar sem jogar, principalmente levando em conta seu status como representante da escola. —Quem foi o infeliz?

—Um dos novatos. Você sabe que calouros sempre sofrem. Não chega a ser meu problema. — o garoto sorriu de maneira prepotente. —Mas hoje eu sobrei, pois sabia que você voltaria. Vamos jogar.

Não era um convite, embora não chegasse a ser uma ordem. Davi olhou para os lados, desesperadamente procurando por uma saída, mas ao encontrar apenas pares de alunos e suas partidas em andamento, só pôde caminhar desanimadamente em direção à única mesa vaga da sala.

—Eu não me lembro de já ter dito isso, mas se eu já disse, não custa repetir: eu sou ruim, mas não mato. — Matheus provocou, observando-o se aproximar. —Você está se arrastando para cá do mesmo jeito que um condenado vai para a guilhotina, e o reflexo no meu espelho não me mostra algo tão cruel assim.

—O seu espelho de todas as manhãs te mostra algo feio como a dor da morte. Se bem que dizem que a morte é uma mulher linda com a qual você se deita para a eternidade, então eu não vou ofender a coitada. — Davi se sentou, observando as mãos treinadas do outro terminarem de posicionar as peças. —Você se olha no espelho e enxerga algo feio como você mesmo.

Matheus ergueu uma sobrancelha como se dissesse: é sério?

—Admita, a comparação é forte.

—Admitam, vocês dois incomodam! — alguém reclamou, exaltado. —Estou tentando jogar aqui! Ou comecem logo essa droga de partida ou façam o favor de irem para fora. É a segunda vez que eu perco um xeque! Mas que droga!

—Vamos calar a boca. — respondeu Matheus sem se afetar, enquanto se sentava e indicava que Davi podia começar a partida. —Mas não é por que você ficou duas semanas sobrando aqui no clube que seu mau humor se justifica, Fernando. E tome cuidado com a sua dama.

—EI!

Davi sorriu, analisando o tabuleiro, e ver Matheus sorrir também o fez pensar que eles tinham estabelecido uma espécie de trégua. Não duraria muito, mas eles teriam tempo para continuar aquela briga depois — todos os meses restantes daquele ano deveriam bastar para que eles se matassem. Apenas pensar nisso o fez querer chorar.

Não é hora de pensar nisso. É hora de jogar.

Davi moveu um peão, como era de praxe, e Matheus moveu outro em resposta. Estava começada a partida.

Ao contrário do primeiro jogo, onde Matheus estava fervendo por uma vitória, aquela partida estava distraída — o garoto não parecia completamente focado no movimento das peças, observando o tabuleiro com as sobrancelhas franzidas em um raciocínio distante. Quando Davi o pressionou pela primeira vez, quinze minutos depois, Matheus piscou como se tivesse acabado de acordar de um devaneio profundo.

—Xeque.

—Que não se repetirá. — Matheus retrucou, parecendo surpreso por ter sido pressionado tão cedo, deslocando o rei do perigo.

Mas se repetiu: o jogo a partir dali se desenvolveu em cima de constantes pressões da parte de Davi e respostas esquivas da parte de Matheus. A brincadeira de gato e rato durou quase meia hora, e já começava a se tornar irritante quando finalmente Davi encurralou o rei do outro entre três de suas peças restantes.

O ar da sala pareceu se tornar quase sufocante nos segundos que Davi levou para suspirar, levantar a cabeça, encarar a expressão de Matheus e anunciar sua segunda vitória.

—Xeque-mate.

—De novo. — Matheus encarou o tabuleiro com fria resignação antes de varrer as costas da mão por ele, derrubando todas as peças, e se levantar, estalando as juntas de modo preguiçoso. —Quando nossos treinos começarão? Poderemos começar hoje?

Davi se lembrou de que ele e Guilherme tinham combinado de fugir da escola para comparecer a uma festa de eletrônica que uma boate famosa de Belo Horizonte estaria dando. O combinado tinha sido feito um mês antes, então ele não sabia se ainda estava valendo — com as pazes recém-feitas, Guilherme poderia preferir ficar quieto na escola — mas por via das dúvidas, não iria travar compromissos.

—Não. Hoje não. Provavelmente amanhã. Eu entro em contato.

—Me deixe ciente. Vou estar preparado. — ele começou a caminhar preguiçosamente para a porta enquanto Davi reunia as peças do tabuleiro novamente, montando com elas uma jogada aleatória.

Ele estava montando as jogadas de forma divertida quando sentiu que alguém o observar e levantou os olhos, bem a tempo de flagrar Matheus o encarando da porta. Era um olhar intrigado, mas durou apenas um segundo após a interceptação de Davi — pego em flagrante, Matheus se virou e foi embora.

Isso foi estranho. Muito estranho.

Mas Davi ainda estava distraído com seu joguinho bobo e as preocupações com Matheus foram varridas naturalmente de sua mente em poucos minutos.

>>

Não vou poder sair com você, cara. — Guilherme se desculpou do outro lado da linha, a voz sem nenhum resquício de culpa. —Lamento.

Davi bufou, apertando o telefone. É sério?

—É por que nós brigamos?

Em parte. Eu vou sair com a Tábata.

—E quem raios é essa pessoa cuja mãe foi cruel o suficiente para chamar de Tábata?

Não ofenda a Tábata! — silvou Guilherme, a voz irritada. —Ela é minha namorada.

E desde quanto esse tatu tem namorada?

—E desde quando você tem namorada? — ele parou sua terceira volta em torno do quarto e fechou os olhos com a sensação de traição que ameaçava dominá-lo. —E mais importante: por que você não me contou? Eu sou seu melhor amigo, sua gazela!

Estávamos brigados, me desculpe. — Guilherme proferiu a última palavra de maneira quase jocosa. —E eu comecei a namorar a Tábata duas semanas atrás, mais exatamente um dia após eu mandar você ir à merda. Não tinha como eu te contar.

As voltas pelo quarto recomeçaram, e Davi já podia dizer com precisão o número de bolinhas da sua colcha de cama, de tanto que a encarava. Tiago, que estava sentado na outra cama, digitando algo no celular enquanto esperava a hora de escapar para o Madalena, lhe enviou um olhar de censura, silenciosamente formulando as palavras vigésima terceira volta com seus lábios.

Que se ferrasse. Davi estava com raiva.

—Uma garota que foi castigada com o nome de Tábata não brotou do chão duas semanas atrás e te pediu em namoro. — ele acusou, escutando o riso de Tiago. Só de raiva, passou a dar voltas em torno do quarto ainda mais depressa. —Quando você a conheceu e por que não me contou?

Ele ouviu Guilherme suprimir uma gargalhada, um trabalho malfeito: quando o amigo respondeu, a voz estava ondulante pelo riso.

Vendo a sua desgraça, com o Matheus e tal, eu resolvi que contar das minhas alegrias só ia te dar mais desgosto. — uma respiração profunda soou na linha. —Cara, não precisa ficar triste. É só uma festa. Papai aqui te leva em outras depois.

—Vá brincar de papai com a Tábata e não encha. — ele se preparou para desligar o telefone, escutando Guilherme rir baixinho. Como uma pessoa podia ser tão boa e não prestar ao mesmo tempo?—Tchau, Guilherme. Morra.

Guilherme ainda ria quando a ligação foi cortada, e Davi sentiu uma vontade louca de tacar o telefone na parede. Talvez fizesse isso: seu telefone era antigo, um modelo que ninguém mais ostentava, o que era estranho levando em conta sua situação endinheirada. Inconscientemente, ele começou a medir o peso do aparelho e onde o arremessaria, de modo a fazer mais estrago.

—Tem certeza que Guilherme é só seu amigo e não seu ex-namorado?

Talvez ele mandasse o telefone na cabeça de Tiago. Iria fazer um belo estrago.

—Claro que ele é meu ex-namorado. Nós nos pegamos loucamente no passado. E se não ficar esperto, pego você também. — retrucou, mal humorado. —Veja, eu quero tacar meu celular em algum lugar, e o alvo atual é a sua cabeça. Tem certeza de que vai continuar enchendo a paciência?

—Ok, ok, ok. — Tiago levantou as mãos para o alto em rendição, rindo. —Vá dar uma volta, jovem. Está muito irritado.

—Não estou? — Davi bufou. —Acho que vou dar uma volta mesmo. Mande abraços para a Isadora por mim e diga que ela é uma lutadora. Te aguentar é um inferno.

E saiu. Ainda conseguiu escutar Tiago retrucar, no quarto, que não era ele quem dava agonizantes quarenta e duas voltas pelo quarto enquanto falava ao telefone, mas não respondeu à reclamação do outro — talvez por que o colega tivesse razão.

Por vários minutos, Davi caminhou sem rumo pelo prédio, observando com atenção todas as portas e descendo cada degrau da enorme escadaria com lentidão torturante. O toque de recolher ainda não soara, o que dava liberdade para qualquer aluno caminhar como bem entendesse pela escola — Davi se lembrou de registrar sua estranheza em relação ao vazio dos corredores — e havia algo de reconfortante em poder andar a pé sem ser pego por nenhuma armadilha boba.

Quase meia hora depois, ele finalmente caminhou pelo gramado que separava os prédios de dormitórios do primeiro, segundo e terceiro anos, se encolhendo em sua blusa de frio fina — ele devia ter se agasalhado melhor. Ligeiramente confuso sobre para onde ir, Davi parou e olhou em volta, os três edifícios mais próximos e o complexo de salas de aula mais ao longe, seus olhos oscilando de um para o outro. Ele podia fazer bombas caseiras para jogar nas salas, mas aquele tipo de arte não tinha graça sem Guilherme por perto; podia depredar as carteiras e matar as saudades da terceira série, tempo onde bagunçar a própria sala parecia o clímax da rebeldia. Podia ir ao prédio dos alunos do segundo ano e...

Claro! Pensou ele, de repente mais animado. Já sei o que eu vou fazer.

>>

Na primeira vez que caminhara pelo prédio de dormitórios do segundo ano, Davi precisou bater em várias portas diferentes antes de encontrar a de Matheus, tendo escutado todo tipo de saudação de alguns segundanistas mais simpáticos. Por isso, ele ficou satisfeito por ainda se recordar da localização do quarto (ele o visitara no dia anterior, não lembrar implicaria uma amnésia severa), e subiu as escadas para o terceiro andar com segurança, chegando em poucos minutos ao final do corredor. Recostando-se na parede, Davi bateu à porta de Matheus e esperou.

Ninguém atendeu.

Bufando, ele se desencostou e bateu novamente, com mais força e por vários minutos — e dessa vez a porta se abriu, revelando um garoto sonolento com cara de idiota, cujo nome Davi teve de ir às profundezas da memória para resgatar. Carlos.

—Quem é você? — o garoto perguntou, coçando os olhos. —Não é o Matheus, não é?

—E eu pareço o Matheus, por acaso? Minha pele é mais escura, eu não uso óculos, tenho alguns cinco quilos a mais de músculo... E olha só! Eu não tenho franja! — Davi puxou um dos cachos que seu cabelo insistia em fazer no topo da cabeça. —Cabelo “bugado”. “Bugadíssimo”.

Não era necessário ser nenhum gênio para notar que Carlos tinha ficado magoado: o garoto tinha erguido uma sobrancelha e o encarava como se decidisse com qual mão iria socá-lo, ou qual ofensa dispararia primeiro.

—Me desculpe. — Davi se apressou, antes que o outro começasse alguma ladainha de impropérios, ou pior, uma briga no meio de um prédio cheio de alunos do segundo ano, todos possíveis aliados de Carlos. —Eu não ando no meu melhor humor ultimamente. Eu sou uma visita para o Matheus, ele está?

—Está. — depois de um longo silêncio, Carlos deu espaço para que o terceiranista entrasse, embora sua expressão sugerisse que ele desejava algo bem diferente. —Eu não enxergo nada sem minhas lentes, sabe? Você poderia ser o diretor, para mim seria só um monte de borrado.

Davi sentiu uma onda de vergonha.

—Foi mal.

—Foi mal mesmo. — ele sorriu, enfim. —Matheus está no banho, então você tem liberdade de se sentar e esperar. Se não tem problema, vou voltar ao que eu estava fazendo antes de você bater na porta. — deitando-se na cama da direita, Carlos cumprimentou Davi com educação seca antes de fechar os olhos. —Tente não conversar muito alto, boa noite.

Deitando-se folgadamente na outra cama, Davi admirou a habilidade que o garoto tinha de dormir: em poucos minutos, ele já estava ressonando baixo, formando uma harmonia interessante com o ruído que vinha de dentro do banheiro. A união agradável dos dois sons começou a deixar o terceiranista com sono, e ele já tinha se esparramado na cama de Matheus para dormir quando a porta do banheiro se abriu com um estrondo, assustando-o.

Para compensar a situação vergonhosa na qual se encontrava, Davi teve como consolo o fato de que Matheus parecia tão assustado e acanhado como ele. Pingando água em todos os cantos do corpo, com uma toalha enrolada na cintura, o segundanista parecia ainda mais branco do que o normal, encarando a própria cama com uma expressão de assombro.

Por alguns segundos absolutamente terríveis, eles evitaram se encarar, e ninguém disse nada.

—Ah... Eu mudei de ideia. — começou Davi, sentindo-se idiota. Algo muito inteligente pra se dizer, Davizão. Se você está aqui, é óbvio que você mudou de ideia. — Mas acho que não fui muito inteligente em não te avisar.

—Você bateu na porta, pelo menos? — Matheus piscou exatas três vezes antes de recobrar a expressão de sempre. As palavras, entretanto, ainda soaram um pouco trêmulas. —Não me diga que entrou aqui sem avisar ninguém.

—Eu bati na porta e fui atendido por um cara simpático de nome Carlos. Ele conta como ninguém?

Obrigado, Carlos.

—De nada. — a voz saiu abafada pelo riso. —Agora use a sua gratidão e fale baixo.

Matheus passou a mão pelos cabelos molhados, suspirando, e Davi perdeu um único segundo para registrar todo o corpo do garoto à mostra: os ângulos suaves dos músculos nos braços e torso, onde a água escorria levemente, o pescoço fino, o ângulo do queixo, os ossos dos quadris. Era tudo muito bonito ao mesmo tempo em que parecia distante, inatingível, e novamente as palavras “beleza fria” lhe vieram à mente.

—Eu achei que você iria querer jogar, mas caso não queira, eu posso ir embora e a gente joga amanhã, como tínhamos combinado. — ele se viu dizendo, desviando os olhos de Matheus. —Afinal, fui eu quem mudou de ideia de uma hora para a outra.

—Não pense que eu estou satisfeito com isso... Mas você fica. Eu ia estudar, mas jogar xadrez não deixa de ser um estudo. — o segundanista caminhou pelo quarto, parando em frente ao grande e único guarda-roupa presente. —Só preciso que você feche seus olhos nessa sua cara feia para que eu possa trocar de roupa.

Davi se fez de ofendido, mas obedeceu. De olhos fechados, ele escutou os barulhos suaves de gavetas se abrindo e fechando, alguns passos, alguém praguejando baixinho e, enfim, o rangido da cama em que estava, indicando que mais alguém se sentara lá.

—Está pronto?

—Não vamos jogar aqui. Para eu pegar meu tabuleiro, terei de fazer barulhos e Carlos é insuportável quando está com sono. Vamos para a biblioteca. Lá tem alguns conjuntos de peças velhas de madeira lascada que devem servir por hoje.

Matheus se levantou e foi até a porta. Depois de alguns segundos de hesitação preguiçosa, Davi o seguiu. Os dois desceram as escadas do prédio em silêncio e quando chegaram ao gramado que separava os prédios dos dormitórios da biblioteca, ele se apertou contra si mesmo, desejando ardentemente seu moletom mais quentinho. Matheus, por sua vez, nem sequer tremia e ao chegarem à biblioteca, encarou o tiritar de dentes do terceiranista com desprezo.

—Seu fresco. Nem está caindo neve do céu e está quase tendo uma hipotermia.

—Como você consegue?

—Magia.

—Temos uma fada entre nós? — Davi suspirou com falsa alegria quando finalmente entraram na biblioteca, que tinha a temperatura cuidadosamente controlada para não danificar os livros. —Você é a Sininho?

Matheus foi para trás do balcão de identificação de livros, vazio no momento, e mergulhou pra dentro dele, procurando por algo. Quando respondeu, a voz soou abafada.

—Sou o saci-pererê.

—Muito branco. E tem uma perna sobrando aí também.

—Bem, então vá se ferrar. — ele emergiu com um tabuleiro em uma mão e um saquinho cheio de peças na outra. —Ou melhor, vá se sentar. Hora do jogo.

Os dois se dirigiram a uma mesa em silêncio e durante alguns minutos, arrumaram as peças. Com um olhar, ficou decidido que Matheus começaria, então Davi esperou que ele fizesse o primeiro movimento.

Um cavalo.

Davi arregalou os olhos imperceptivelmente — não era ilegal começar um jogo com um cavalo, mas certamente incomum. E a estranheza daquela primeira jogada ditou todo o clima do jogo, que durou quase duas horas e foi o exercício mental mais desgastante que Davi havia provado em tempos.

Todas as jogadas foram exaustivamente pensadas, dissecadas e analisadas antes de serem feitas. No período em que o adversário pensava, nenhum dos dois jogadores se distraiu; estavam calculando as possibilidades, os erros, as estratégias. Todas as ofensivas vindas de Matheus foram frias, mais analíticas que agressivas, e Davi sentiu-se como se estivesse sendo estudado e processado, ao invés de realmente confrontado.

As peças, pouco a pouco, começaram a morrer: primeiro, depois de várias jogadas esquivas e alguns peões, um bispo se foi, seguido de seu par, da torre e dos dois cavalos. Em troca, Davi capturou as duas torres e a dama de Matheus, mas em nenhum momento ele se sentiu particularmente animado por isso, ou competitivo como naquela primeira partida no parque; estava mais preocupado em entender a postura ardilosamente escorregadia do adversário, em entender por que aquele jogo parecia tão diferente, tão seco, tão... Morto.

E nessa reflexão feroz, ele demorou a notar que Matheus o observava, os lábios crispados firmemente e os olhos transbordando um sentimento próximo à derrota. Confuso, Davi olhou para o tabuleiro, percebendo que só haviam restado três peças: seu próprio rei, o rei adversário e um cavalo branco.

Empate por insuficiência de peças.

—Você notou, claro.

—Sim. Empate.

—Empate.

—Por que você fala como se tivesse perdido? — Davi perguntou, sinceramente sem entender. —É um empate. Significa que nós estamos no mesmo nível. Não é uma derrota nem uma vitória.

Matheus respirou fundo e abriu a boca como se fosse dizer algo, mas mudou de ideia no meio do caminho e a fechou novamente Em silêncio, ele se levantou, espreguiçando-se vigorosamente, e fez seus passos para fora da sala, batendo de leve no ombro de Davi ao passar pelo garoto.

—Existem mil resultados além do empate entre uma derrota e uma vitória... — ele disse, parando por um minuto na porta. —Mas não importa. A vitória é a única coisa que interessa. Boa noite, Davi.

E saiu.


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Notas finais do capítulo

Espero que gostem. Obrigada novamente à Monique (Moon And Stars) pela paciência infinita, sem ela eu não estaria aqui (sério, gente, essa menina é muito amor). Procurem um beta, e se tiver como, procurem a Monique :v
Até o próximo!