Xadrez escrita por Senhorita Ellie


Capítulo 2
2 - Inferno


Notas iniciais do capítulo

Olá! Já faz algum tempo, não é? Mas eu estou de volta!
Neste espaço, hoje, vou fazer uma nota sobre a cronologia.
Os acontecimentos do primeiro capítulo ocorrem em datas bem separadas. Conversando com a minha beta, acabei percebendo que embora a cronologia seja bem clara para mim, eu não posso obrigar vocês a adivinhá-la,então eu fiz as devidas alterações no primeiro capítulo para que ela fique bem clara. Qualquer um de vocês que quiser retirar suas dúvidas, pode voltar ao capítulo um, as datas estão em seus devidos lugares e acho que assim será mais fácil de acompanhar.
Dito isto, enjoy!



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Segunda-feira, 31 de março de 2014, Vespasiano

Ele acordou meia hora antes de seu despertador tocar e a primeira coisa que registrou foi que estava sentindo a pior dor de cabeça da sua vida. Davi não estava surpreso — só uma dor de cabeça realmente violenta poderia fazê-lo acordar naturalmente às seis e meia da manhã — mas ainda assim gemeu e xingou ao se virar na cama, constatando que era ao mesmo tempo cedo demais para se levantar e começar o dia e tarde demais para voltar a dormir.

É segunda feira... Davi pensou, tentando se orientar. E eu estou de ressaca. Uma puta ressaca. Talvez eu precise de uma aspirina. Ou duas. Talvez três. Ou uma porrada na cara para me desmaiar pelo resto do dia, quem sabe...

Flashes da noite anterior foram até ele em uma sucessão e Davi gemeu ainda mais alto, de dor e desgosto.

Eu dormi na cama de alguém. Era homem ou mulher?Meus quadris estão doloridos. Era homem. Ai que droga. Eu não me lembro nem do rosto da criatura. Não vou me levantar daqui. Marina que me desculpe, hoje não tem xadrez, hoje ninguém vai me ver, hoje eu não saio dessa cama.

Davi virou para o lado, satisfeito com a própria decisão, e estendeu a mão para desligar o despertador. Ele provavelmente devia se levantar e tomar aspirinas, mas resolveu não fazer nem isso — dormiria até meio-dia e esperava que fosse de novo ser humano quando acordasse novamente.

—Jovem? Você já está acordado? — Tiago sentou-se na outra cama, fazendo um barulho suave. A cabeça de Davi latejou. —Eu acordei você?

Tiago tinha cortado o cabelo há algum tempo, mas nunca deixaria de parecer alguém que tinha acabado de sair de uma rodada violenta de drogas. Os olhos vermelhos sempre o denunciavam, e ele tinha o tom lânguido de quem só estava prestando meia atenção no que o falante estava dizendo; mas na sua atual situação, Davi não se viu no direito de julgá-lo.

—Não. A ressaca me acordou.

O outro riu. Não era a primeira vez que Davi voltava para o Vespasiano destruído por causa de bebedeiras.

—Bebeu o que dessa vez? Você está um caco.

—É mais fácil você perguntar o que eu não bebi. — Davi choramingou quando uma o vento balançou levemente as cortinas nas janelas, e ele olhou diretamente para a luz vinda de fora. —Talvez eu não tenha provado absinto, mas eu me lembro de alguma coisa verde, então provavelmente eu provei... Como eu ainda estou vivo, cara?

—Cara, eu me faço essa pergunta — o suspiro de Tiago foi quase triste —, todos os dias.

Davi tentou rir, mas diante da dor, apenas parou e fechou os olhos por um segundo.

—Eu não vou sair do quarto hoje. Você pode avisar aos professores para mim?

—Claro. Mas não é com a sua professora do Clube de Xadrez que você tem que se preocupar? Pelo que você me contou daquela mulher, é bem possível que ela venha aqui te buscar. — o tom falsamente assustado de Tiago fez Davi sorrir, ainda de olhos fechados. —E eu juro que não vou lá avisá-la que você vai faltar. Não quero que ela me acerte na cabeça com uma das peças de xadrez que vocês usam.

—Marina é um doce. Ela só é enérgica. — Davi se virou na cama, franzindo o rosto. —Mas não precisa avisá-la. Ela vai perceber depressa que eu não vou aparecer... E vai me matar depois. Isso se eu sobreviver ao dia de hoje.

Tiago não respondeu por alguns minutos, mas Davi o escutou movimentando-se pelo quarto: fechando as janelas e cerrando bem as cortinas, subindo o zíper da mochila e por fim, caminhando para a porta.

—Espere. — Davi sentiu algo ser colocado sobre sua mão. Parecia uma cartela de comprimidos. —Aspirinas para você sobreviver. Tente não tomar todas de uma vez só. Duas overdoses pode ser demais para você, mesmo que seu fígado seja mais poderoso que o super-homem.

Mesmo doente e com a cabeça rodando, ele viu graça na piada e riu.

—Obrigado, Tiago. Agora suma.

O colega não precisou de uma segunda ordem.

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Ele acordou novamente às duas da tarde, se sentindo definitivamente mais humano, embora as dores de cabeça ainda não o tivessem abandonado. O quarto estava anormalmente frio, e ao apurar os ouvidos, Davi logo descobriu o porquê: chovia forte lá fora, um tipo de chuva anormal para os dias finais de março. Seu corpo todo doía, como se tivesse sido passado por um moedor de carne, mas ele conseguiu se levantar e tomar um banho, o que o deixou realmente revigorado. Quando saiu do chuveiro, se sentiu quase normal... E com muita fome.

Ainda não era a hora do intervalo das turmas da tarde, o que significava que as remessas de comida ainda não tinham saído, mas ele sempre podia ir ao refeitório negociar alguma coisa, e foi exatamente isso o que Davi fez. Depois de uma chantagem extremamente eficaz contra os cantineiros, estava sentado em uma mesa com uma bandeja cheia de comida na sua frente.

—Rosquinhas! Eu adoro rosquinhas. — ele mordeu a bolacha com satisfação. —Por que só servem rosquinhas no intervalo da manhã? Que ódio.

—Talvez para impedir que malucos que falam sozinhos as comam. — o terceiranista deu um pulo, e respirou fundo quando Matheus sentou-se na cadeira à sua frente. —É um ótimo motivo, você deve admitir.

Davi estranhou que ele estivesse ali. Matheus estava no clube há um ano, e embora parecesse bem entrosado com todos, parecia evitar Davi de todas as maneiras possíveis — ao ponto do colega de laboratório de Davi, Marcelo, perguntar a ele se os dois estavam brigados. Depois disso, o mais novo passou a cumprimentá-lo nos corredores, parecendo extremamente desgostado com isso, e só — aquela era a primeira vez que Matheus se dirigia a ele com um tom próximo do amigável.

Havia algo de errado. Óbvio que havia. A começar pelo fato de que os dois cursavam o turno da tarde, embora em séries diferentes, o que significava que Matheus tinha matado aula.

Matheus não mata aula.

—Você não mata aula. — parecia algo idiota para se dizer, mas saiu sem que Davi pensasse direito. —O que está fazendo aqui?

—De fato, eu não mato aula. — o outro sorriu. —Mas o professor de química do segundo ano não veio, ou seja, não há aula para se matar. Estou aqui por que preciso falar com você.

Davi gelou.

—Marina mandou algum recado mortal onde ela promete que vai arrancar meu pescoço? Se for, pode entregar. Eu estou pronto. — não estava. —Estou pronto para a minha punição.

Matheus crispou os lábios, o rosto se contorcendo em uma careta engraçada, como se ele estivesse se segurando para não rir.

—Não. Marina xingou você algumas vezes hoje, mas ela tinha algo mais importante pra se preocupar do que isso. E é por esse algo que eu estou aqui. — suspirou. —Ah... Você provavelmente se lembra do que ela falou sobre a Competição Nacional de Xadrez, certo?

Claro. Como não lembrar? Aquele fora o único assunto de Marina por semanas.

—Obviamente.

—Pois bem. Ela escolheu o representante da nossa escola hoje. Você pode dizer que ela foi bem justa: colocou o nome de todos os presentes em uma caixinha, enfiou a mão e tirou o papelzinho. Adivinha quem foi sorteado?

Davi encarou os olhos flamejantes de Matheus por um longo minuto antes de responder. Onde ele queria chegar com aquela conversa?

—Você.

—Sim. — outro suspiro. —Abril prestes a começar, e a competição é no início de dezembro. Você pode dizer que eu tenho tempo, e eu tenho, mas não para desperdiçar. Preciso treinar. Preciso jogar xadrez até que eu não suporte mais ver um tabuleiro, porque eu preciso ganhar. Você entende?

—Claro. — Davi ficou imaginando se era apoio que Matheus queria. —E eu torço por você.

—Mas quanto você torce por mim?

—O quanto for necessário para que você ganhe, oras.

—Então você quer que eu ganhe.

—Sim, eu já disse isso.

A expressão no rosto de Matheus fez o outro se sentir subitamente receoso.

—Então eu quero que você jogue xadrez comigo. Todos os dias que você puder, até a competição. Se eu vou enjoar de xadrez, você vai enjoar de xadrez comigo.

Eles se encararam por um segundo.

—Não.

—Mas você não disse que torce por mim o quanto for necessário para que eu ganhe? Você não disse que quer que eu ganhe? — o segundanista deu um sorriso simplesmente diabólico. —Como você pode não jogar xadrez comigo depois de acabar de dizer isso?

E Davi percebeu: toda a conversa tinha sido uma armadilha para aquele momento. Suas palavras tinham sido usadas contra ele — e Matheus fizera de propósito.

Que filho da mãe.

—Porque você não gosta de mim. Um ano inteiro no mesmo clube e você mal se dá ao trabalho de dizer oi. Não vou jogar xadrez com alguém que não se importa! Torço pra você ganhar, ok, mas longe de mim. Tem muita gente no clube que jogaria com você. Não precisa ser eu.

—Sim, precisa. — ele tirou a franja comprida do rosto e encarou Davi com seriedade. —Por motivos que eu não vou te explicar, precisa ser você. E eu não pretendo te deixar em paz. Se você não aceitar jogar comigo com uma conversa agradável entre homens maduros, vou vencer você em uma área que você parece dominar: a infantilidade.

E ainda tem coragem de me chamar de infantil!

—Pode vir. — o sorriso competitivo veio sem que Davi o chamasse. —Estou esperando.

Matheus não discutiu. Na verdade, aquele parecia exatamente o fim que ele estava esperando, e quando se levantou, enfiando as mãos nos bolsos, encarou Davi com a mesma chama de desafio que tinha ardido quando jogaram xadrez no ano anterior. Chamando-o. Tentando-o a fazer algo. Mas Davi estava com dores na cabeça e no corpo, e o máximo que fez foi dar de ombros.

—Bem, recomendo que você ande atento nos corredores. — o tom do mais novo soou paternalista e inocente. Quase não parecia uma ameaça. Quase. —Eu disse que você vai jogar xadrez comigo... E você vai jogar xadrez comigo. Passar bem.

Dada a sua habilidade de previsão, acho que não. Davi pensou confiante enquanto mordia outra rosquinha.

Mas Matheus voltou com um copo de suco de laranja, derramou-o na cabeça de Davi e foi embora, satisfeito — e Davi, sentindo-se enjoado com o cheiro cítrico, começou a se perguntar se não podia começar a andar preparado...

Apenas por precaução.

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Quinta-feira, 01 de maio de 2014, Vespasiano

Quando ele era mais novo, o pai lhe chamou débil mental. Davi não conhecia a expressão e ao invés de ficar ofendido com ela, foi correndo perguntar à mãe o que significava. Ela não lhe respondeu, e naquele mesmo dia, ele escutou os dois discutindo no quarto ao lado do seu — a mansão tinha paredes luxuosas, mas a acústica era boa —, a voz da mãe destilando uma raiva que Davi jamais escutou novamente.

—O que você acha que tem na cabeça chamando seu filho de débil mental?

—Ele é um débil mental!

—Ele tem seis anos! O que você quer?Um Einsten? Túlio! Pelo amor de Deus!

No outro dia, quando Davi perguntou novamente o que era um débil mental, Mônica sorriu como se a briga jamais tivesse ocorrido.

—Débil mental é uma pessoa que não sabe de nada... Uma idiota. Mas eles não existem. Idiotas completos não existem, querido.

E Davi cresceu acreditando naquilo: idiotas completos não existem. Era uma ideia otimista, linda e utópica que Matheus, nas semanas que se sucederam ao encontro no refeitório, fez questão de provar que estava errada.

Já na manhã seguinte, Davi descobriu que a ameaça do segundanista não era brincadeira: quando foi arrumar seu material, descobriu que todos os livros didáticos tinham sido vandalizados com canetão preto, os escritos “jogue comigo” grafados de diferentes formas em todas as páginas não importantes. Também percebeu que alguém tinha derramado seu vidro de cola em sua mochila, melecando completamente todos os cadernos. O estrago foi irreversível.

Davi sinceramente pensou em ir ao dormitório dos alunos do segundo ano e matar Matheus, mas percebeu antes de fazer besteira que não podia provar nada — e respirou fundo antes de ir para a sala com seus cadernos destruídos.

Naquele mesmo dia, um pé misteriosamente brotou na frente do seu enquanto Davi caminhava com a sua bandeja de comida no refeitório, e ele caiu com a cabeça na tigela de sopa que carregava. Foi um triste azar, todos disseram, e ele não conseguiu almoçar — teve de voltar para o dormitório e tomar um banho para se livrar do cheiro de feijão. E para coroar aquela data maravilhosa, descobriu tarde demais que todo o seu equipamento de equitação tinha sido sabotado — o tombo que levou do cavalo rendeu uma noite na enfermaria da escola, e duas semanas de dores freqüentes nas costas.

Fora um primeiro dia magistral. Mas Matheus não parou por ali.

Seu material de química foi adulterado, e enquanto ele e Marcelo faziam experiências no laboratório, tiveram o desprazer de misturar dois ingredientes reativos. A explosão foi linda, colorida, e lhes rendeu uma semana de detenção, além de um desconto considerável na nota — Marcelo reclamou daquilo pelo resto do mês. De algum modo, o trabalho de filosofia que Davi redigira durante duas noites seguidas com todo o esmero foi substituído por uma ladainha de “jogue comigo, jogue comigo, jogue comigo”, e o terceiranista teve que usar todo o poder de persuasão que tinha para convencer o professor a receber o trabalho correto com um ligeiro atraso. Seu guarda-chuva foi roubado, e Davi tomou chuvas terríveis que pareciam penetrar sua pele e congelar os ossos.

E o pior: toda vez que ele encontrava Matheus nos corredores, o garoto praticamente dançava de felicidade. Parecia estar se divertindo terrivelmente.

—Eu simplesmente não suporto mais — Davi se jogou na cadeira ao lado de Guilherme, um mês após o convite de Matheus —, esse bullying maldito. Eu devia denunciar isso para a diretoria.

—Provavelmente. — Guilherme era a única pessoa que sabia dos detalhes da história, e às vezes Davi tinha a impressão de que ele estava se divertindo tanto com aquilo tudo quanto Matheus. —Ou talvez você devesse aceitar o convite e jogar xadrez com o menino. Você tem que admitir que ele é persistente.

—Guilherme, isso é bullying!

—Não, isso é um cara extremamente infantil usando da infantilidade como arma para convencer alguém. Eu o admiro. — o amigo mordeu um pedaço de bolo de cenoura. —E eu não sei por que você está fazendo tanto jogo duro com isso. Já vi você aceitar ofertas muito mais loucas que isso...

—Bêbado...

—Ainda assim. Ah, vamos lá. Ele deve fazer seu tipo. — Guilherme esticou o pescoço, aparentemente procurando Matheus. —Para fazer seu tipo não é muito difícil, é só ter dois olhos, uma boca, um coração que bate e alguma dose de desejo sexual. O resto é negociável.

Davi apoiou o rosto nas mãos, descrente: o amigo estava se divertindo. Horrores. Era naquelas horas que ele se arrependia de ter contado para Guilherme sobre a sua bissexualidade e os seus problemas (o que era um pouco ingrato, porque Guilherme ajudara em ambos). O amigo era bom e gentil, mas terrivelmente implicante, às vezes.

—Eu não quero ficar com Matheus, Guilherme. — Davi usou o mesmo tom que ele usaria com uma criança de cinco anos. —E também não quero jogar xadrez com ele... Embora essa hipótese não seja necessariamente ruim.

—Você o acha atraente! Eu sabia! Rá! Eu preciso ganhar um troféu!

—Não, não acho. — explicou pacientemente, como se Guilherme fosse um tipo de retardado, e dizia a verdade. A combinação de cabelos negros ondulados e pele morena de Matheus era agradável aos olhos, mas não tinha muito charme: uma beleza fria. —Mas ele é um bom oponente. Eu jogaria com ele, se não estivesse tão irritado e não odiasse tanto admitir uma derrota.

Guilherme riu.

—Um dos dois vai ganhar... E mesmo que eu seja seu amigo há dez anos e tudo mais, eu ainda não acho que vai ser você. — ele apontou para Davi de forma acusatória. —Veja só, você até já mudou seus hábitos por causa da criatura!

Davi admitiu à contragosto que o amigo tinha razão. De alguma forma, que ele não conseguia conceber, Matheus tinha conseguido colocar formigas na comida dele duas vezes, e desde essas ocasiões, o terceiranista passou a checar religiosamente a bandeja antes de comer, durante todas as refeições. Ele também parara de deixar os livros didáticos na mochila, passara a andar com certa cautela nos corredores e começara a checar todos os trabalhos duas vezes antes de entregar. Lembrar todas essas coisas o fez admitir que Matheus conseguira transformá-lo em um paranóico.

—Ok. Talvez ele esteja vencendo a batalha, mas isso não quer dizer que vai vencer guerra.

—Ele já venceu a guerra. Já era, Davi. Jogue xadrez com o menino, antes que ele coloque baratas aí ao invés de formigas.

Davi não respondeu: apenas dissecou o sanduíche com toda a dignidade que ainda lhe competia antes de comê-lo, pensando que não, não mesmo, nunca, iria jogar com Matheus. E tinha se tornado questão de honra.

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Quarta-feira, 04 de junho de 2014, Vespasiano

Matheus escutou o desafio mental — era a única hipótese possível. As provocações se tornaram mais freqüentes e quando Davi encontrava o segundanista no corredor, seus sorrisos eram tão grandes que se assemelhavam mais a esgares — inversamente proporcionais ao humor de Davi. Ele andava de cara fechada nos corredores e chegou a gritar com um garoto da segunda série quando os dois esbarraram acidentalmente — qualquer coisa era suficiente para levá-lo aos berros. Guilherme, cansado de levar patadas, passara a sentar-se em outra mesa, e até mesmo o xadrez não conseguia distrair Davi de sua irritação.

—Davi... — Marina teve a decência de parecer genuinamente preocupada. Era a terceira partida que jogavam, mas ele estava em tal estresse que não se lembrava de quem tinha ganhado a primeira. —Eu acabei de ganhar de você usando um cavalo. Você tinha três possibilidades de escapar, mas ao invés disso, me colocou uma torre na frente do rei, sendo que todo mundo sabe que o cavalo é a única peça que passa por cima das outras! Acorde pra vida e me conte o que está acontecendo!

Ele quase contou: Marina era confiável, provavelmente a única amiga que ele tinha na escola além de Guilherme. O único problema era que a amizade não a tornava menos professora, e contar para ela seria a mesma coisa que admitir a derrota.

—Não é... — ele trincou os dentes, sentindo que Matheus sorria na mesa às suas costas. —Nada. Estou bem... Só não dormi direito essa noite.

—Se fôssemos seguir essa lógica, faz mais ou menos um mês que você não prega os olhos. — ela estava cética, mas não insistiu. —Se você quer ficar horrível, fique horrível, mas fique horrível sem colocar uma torre para defender um cavalo enquanto joga comigo! Ver você cometer esse tipo de besteira me faz ter a impressão de que eu sou uma péssima professora.

Davi deu o fantasma de um sorriso.

—Claro, general. Sem torres. Sem xadrez também. Não quero mais jogar essa droga por hoje. Vamos ficar parados olhando um para a cara do outro.

Ele se arrependeu no momento em que disse as palavras: ficou óbvio pela expressão de Marina que ela tinha se ofendido. Mas era tarde demais, e ele não tinha paciência para se esmerar em desculpas.

—Davi... — ela franziu o cenho. —Ok. Está dispensado. Vá fazer qualquer coisa, mas não volte aqui até estar em condições de jogar. Não vai perder seus pontos nem nada, mas não volte.

E ele se foi. Duas semanas depois, ainda não voltara.

— Senhor Montecruz. Senhor Montecruz. — Ulisses, o professor de física, o encarou com severidade. Faltava um dia para que as provocações de Matheus completassem dois meses, e o humor de Davi, em uma escala de zero a dez, estava em menos cem: a encarada que Ulisses recebeu em resposta poderia congelar o inferno. —O professor mandou chamá-lo aos seus aposentos. Vá agora. Você não parece estar prestando atenção em minha aula mesmo.

Davi deu de ombros ao se levantar e saiu da sala sem pedir licença. Perguntou-se por um segundo o que Matheus tinha aprontado daquela vez, para que fosse necessário um chamado do Ensebado, mas o pensamento não perdurou, porque ele não se importava — nada do que Matheus fizesse seria pior do que ter conseguido privá-lo do xadrez, sua melhor distração no Vespasiano. Aquelas duas semanas na escola sem o jogo tinham se provado terríveis.

—Senhor Caldarias. — ele cumprimentou o diretor ao abrir a porta, sem bater, e o homem reconheceu sua presença com um aceno de cabeça. —Por que precisa de mim?

—Sente-se, Davi. Não chamei você aqui para repreendê-lo. — Cristiano deu um meio sorriso. —Na verdade... Eu estou passando um recado.

Aquilo não parecia boa coisa. Davi sentou-se, tenso.

—Alguém anda me mandando cartas bastante prolixas endereçadas à sua pessoa. — o diretor começou a explicar. Parecia estar segurando o riso. —Elas não dizem muita coisa, então eu não as entreguei. Mas a última me pareceu articulada o suficiente, então aqui está.

Davi pegou o papel que o homem lhe estendia, e o desdobrou se sentindo ligeiramente apreensivo. Desdobrou uma, duas, três, quatro vezes, até finalmente conseguir ler as palavras “JOGUE COMIGO DEPRESSA, DESGRAÇADO. EU JÁ ESTOU FICANDO SEM CRIATIVIDADE PRA TE ATAZANAR” distribuídas por todo o papel. Não precisava de assinatura.

Ele deveria ter rasgado o papel. Deveria tê-lo rasgado, amassado e gritado. Deveria ter feito isso tudo e ainda pisado em cima dos restos. E no fim, talvez ainda queimasse tudo. Mas ao invés disso, Davi riu — uma longa e gostosa gargalhada que durou longos minutos e o fez sentir como se estivesse se livrando de toneladas de peso sobre os ombros. Era como se ele não risse há anos.

—É de algum amigo seu? Não está assinado.

—Não. Não é de um amigo meu. — ele ainda ria. —Mas é de um conhecido.

—Bem... — Cristiano o analisou com cuidado, como se Davi fosse algum débil mental. Mas débeis mentais não existiam. —Você pode ir. Espero que o responda a altura. Eu não gostaria que alguém me chamasse de “desgraçado”.

—Senhor Caldarias... — apesar de ofegante, Davi soou conspiratório. —Você não faz ideia do quão leve um “desgraçado” pode parecer perto de certas coisas... Obrigado por me entregar isso. Passar bem.

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Naquela mesma noite, Davi foi ao dormitório do segundo ano e bateu em todas as portas até encontrar o quarto de Matheus, no terceiro andar. Ele tinha escutado xingamentos suaves da maior parte dos segundanistas, não muito satisfeitos por serem acordados, mas Matheus o recebeu com uma expressão neutra — quase como se o esperasse.

—Entre no meu humilde quarto e fale baixo. Carlos dorme cedo. — Matheus apontou displicentemente para um garoto com cara de idiota que dormia na cama da direita. —Eu não esperava você aqui hoje, mas se você veio, é por que, provavelmente, o diretor entregou meu recado. Certo?

—Sim, entregou. Achei uma rendição muito criativa. — Davi se jogou na cama da esquerda, à vontade, e Matheus franziu o cenho. —É assim que você pede desculpas por fazer da minha vida um verdadeiro inferno por dois meses completos?

—Vai completar dois meses amanhã. — o segundanista o corrigiu. —E não, não foi um pedido de desculpas: eu te ofereci uma trégua. Se não aceitar, eu vou começar tudo de novo.

—Eu não me importo tanto com o resto, mas você conseguiu me tirar do xadrez. Estou realmente irritado com você por isso, não sei se posso esquecer e te perdoar.

—Você não foi jogar xadrez na tal feirinha? — o tom de Matheus era cínico. —Até onde eu saiba, você sempre passa seus finais de semana lá.

Davi se sentiu como se tivesse levado um soco.

—Eu iria, caso você não tivesse estragado meus trabalhos! — ele silvou, fervendo. —Tive que passar meus finais de semana aqui reescrevendo todos eles! Na verdade, eu não tenho paz há muito tempo por sua causa! E você ainda não me disse por que raios tem de ser eu a jogar com você!

—Simples. Eu disse que seria você, e quando eu decido uma coisa, não sou exatamente maduro na hora de ir atrás.

—Isso eu percebi! Você me provou que idiotas completos existem sim, e eu sinto vontade de bater em você nesse exato momento! Talvez eu te dê uma surra.

—É um direito que te assiste. — e Matheus o encarou com os mesmos olhos flamejantes, abrindo os braços em um convite gestual. —Mas não vai adiantar nada... Eu vou continuar até que você aceite. Davi... —a voz dele assumiu um tom de apelo. —Nessa brincadeira com você, eu perdi dois meses. Nós já estamos quase em julho, e a competição é em dezembro. Eu preciso treinar porque eu preciso ganhar. Eu posso não gostar de você e ter sido um grosso, mas você não vai morrer se jogar xadrez comigo algumas vezes por semana, vai? Eu não sou um oponente tão ruim assim, sou?

—Só joguei com você uma vez, não posso dizer nada. — era uma mentira; por aquela única e distante partida, Matheus tinha se tornado o melhor oponente que ele já enfrentara. Mas Davi jamais diria isso, principalmente notando o modo baixo como o segundanista tinha mudado a postura, indo suavemente do ataque para a chantagem emocional. E convencendo. —Eu só quero um pouco de paz de volta. A única forma de eu conseguir isso é jogando com você? É isso que você quer me dizer?

Matheus, sentindo que o jogo estava ganho, deu um sorriso que iluminou todo o seu rosto.

—Sim.

Ninguém disse nada por alguns minutos.

—Eu vou definir os horários. — Davi quebrou o silêncio, finalmente se dando por derrotado. —Não vamos jogar até muito tarde e você não pode fazer barulhos, pois meu colega de quarto dorme pesado até uma da manhã e depois foge para o Madalena. Você leva seu tabuleiro. E eu quero que você se desculpe por tudo o que fez na frente de todo mundo.

O dono do quarto arregalou os olhos, e Davi sentiu um prazer perverso em constatar que Matheus não estava esperando por aquilo — finalmente peguei você, hein? Por um momento silencioso, Davi conseguiu ver a mente de Matheus maquinando, uma tensão fria se estabelecendo no quarto, até que finalmente o segundanista suspirou de forma conciliatória, encolhendo os ombros.

—Só se eu ganhar o campeonato. Isso vai provar que você se esforçou em me ajudar.

—Você vai ganhar. Eu já tinha dito que torcia por você.

—Claro. — o tom era irônico. —Eu só precisei fazer você torcer o suficiente.

Os dois se encararam, sem piscar. Davi mal conseguia acreditar no que estava fazendo — Matheus tinha simplesmente o infernizado por dois meses, deixado seus nervos em frangalhos e o transformado num paranóico, e no fim, ele tinha aceitado aquele acordo ridículo. Sua mente voou pelas possibilidades por alguns segundos, pensando em mil formas diferentes de se vingar do segundanista, indo desde deixá-lo nocauteado no dia do campeonato até sabotar o tabuleiro, mas no fim, admitiu a triste verdade: o garoto era o inferno. E com o inferno não se mexia.


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Notas finais do capítulo

Agradecimentos!
Obrigada a quem comentou, a quem acompanhou, a quem leu e a quem gostou. Espero que vocês continuem gostando da história do Matheus e do Davi tanto quanto eu gosto de escrevê-la. :3
E, claro, agradecimentos especiais à Monique, Moon And Stars, minha beta linda que dá as melhores dicas. Morram de inveja.
Até o próximo!