Evangelho segundo Queiroz escrita por Anonymus_Fulano


Capítulo 1
Evangelho segundo Queiroz


Notas iniciais do capítulo

Um agradecimento especial a Mary Ann e a Laura pela ajuda com o roteiro.Boa leitura!



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“Ele nos avisou que retornaria; Mas enquanto não vinha mandou outra em seu lugar.” - Qz 1:20

Meu nome é Queiroz, tenho cinquenta e dois anos e sou pai de dois filhos, o Marcus e o Raphael. Tenho diversas histórias para contar, as quais escuto enquanto estou dirigindo meu táxi, mas me pediram para espalhar essa em especial. Sou uma pessoa temente a Deus, estou na igreja todo domingo, quando não tem jogo do Mengão, é claro. Sempre escutei o padre dizer que Jesus ia retornar, assim como tinha feito na Páscoa. Ressuscitar e começar o julgamento final das pessoas da Terra. Mas antes de voltar, ele decidiu ressuscitar uma pessoa na Páscoa, enquanto comemorávamos seu grande feito de anos atrás. A única coisa que gostaria de perguntar a Ele um dia é: - Por que tinha de ser logo ela?

Antes eu preciso explicar mais uma coisa sobre a minha família. Marcus e Raphael são filhos meu e de Elizangela, Eli, minha nega. Conheci ela na época de colégio e estamos juntos desde então. Junto com Eli veio um ser abençoado chamado Odinete Barbosa Lima da Silva, minha sogra. Mulher mais santa não existe meu amigo, uma senhorinha que na velhice por mais encolhidinha e enrugada que estivesse, estava na missa toda santa manhã. Rezava o terço, o rosário, rezaria até a missa se o padre permitisse. Dona Odina era uma Santa, uma Santa bem da chata. Quando éramos adolescente quase pegou minha nega e eu no sofá da casa dela fazendo coisas que até Deus duvidaria. Picuinhas à parte, ela era uma boa pessoa, morreu em paz enquanto dormia e essa é a história da sua segunda passagem na Terra.

Foi na páscoa de dois mil e quatorze, os meninos estavam lá em casa, Marcus trouxe a namorada inclusive. Minha nega estava fazendo aquele bacalhau gratinado que tanto amávamos. As cervejas já estavam gelando no freezer industrial, presente dos moleques em um dos dias dos pais. Mais tarde tinha jogo do Mengão: Flamengo x Fluminense valendo a última vaga do campeonato. Minha boca enchia de água só de pensar na combinação do bacalhau e do manto sagrado na TV. Mas não seria uma Páscoa comum, mesmo com os ovos de chocolate na geladeira. Assim que o bacalhau entrou na mesa principal naquela redoma de vidro gigante, uma luz invadiu a copa onde estávamos, pela porta dos fundos.

– Eita pai que isso, comprou fogos? É Páscoa, não o Natal. - Marcus resmungou enquanto protegia os olhos.

E bem no meio daquela luz surgiu aquela figura minúscula e encolhida com os bracinhos abertos. Estava toda de branco e com um echarpe rendado sobre as costas. Quando a luz diminuiu estávamos todos perplexos, minha nega estava muito emocionada, mal conseguiu pronunciar as palavras.

– Ma... mamãe?

– Oi minha filha. Você deixou esse bacalhau de molho direito?

O que se seguiu foi um desespero generalizado. Eli saiu gritando pela casa morta de medo, deu para ouvir os vizinhos gritando perguntando o que estava acontecendo, ameaçando ligar para a polícia. Eu já estava indo pegar a carabina do meu pai. Os meninos estavam paralisados, até que Rapha, sempre o mais curioso, decidiu chegar mais perto para tentar tocar na velha.

– Caramba gente, acho que é ela mesmo!

Ai os dois correram para abraçar a avó, a encheram de beijos e abraços. Eli se juntou a eles, soluçava sem parar de tanto chorar. Ela afagou a cabeça de todos e pediu calma. Todos começaram a se questionar o porquê dela voltar, o que estava acontecendo, era o fim?

– Calma, meu filhos. Deus me mandou antes dele voltar para passar uma mensagem, ela será revelada até o final desse dia. Eu também preciso ter uma conversa com você, jovenzinho. – Disse a última frase apontando para mim.

Tomei um susto, minha sogra falar comigo quando estava viva já não era boa coisa, agora então!

– Mas antes vamos comer, estou com fome e pelo visto vocês também estão.

Nós nos sentamos à mesa e o Rapha já foi logo curioso para a avó.

– Mas então, como é o céu vó?

– Menino boa pergunta, a gente para de pensar nisso quando chega lá, sabia? O céu é tudo, literalmente, do jeito que você quiser. Eu por exemplo já pedi uma TV de sessenta e duas polegadas quando cheguei lá e uma conexão com a internet decente. Tá acompanhando GoT?

Raphael se engasgou com o pedaço de bacalhau que estava engolindo. Dona Odina teve que dar uns três tapas na suas costas.

– Como é, vó?! Got?!

– É filho, aquele seriado do anãozinho, o Game of Thrones. Os céus ficaram bem chateados com o casamento sangrento.

Raphael olhava incrédulo para a sua avó, o que diabos (com o perdão da palavra Senhor, mas tenho que transcrever as coisas fielmente) estava acontecendo?

– Quer dizer que você tem acesso a TV a cabo no céu?

– Sim, sim. Mas esse é meu céu sabe, escolhi assim, para não ficar muito descolado de vocês. Sinto muita falta da Terra às vezes.

– Entendi, caramba isso quer dizer...

Dona Odina fuzilou Raphael com um olhar, eu conhecia aquele olhar, foi o mesmo que recebi quando rolou o flagra no sofá com minha nega ou quando eu fazia algo que ela julgava errado.

– Nem pense nisso meu filho, esse tipo de coisa não é bem vista lá em cima. Inclusive te aconselho a dar uma maneirada nisso aqui embaixo, ache uma menina decente logo.

Rapha ficou branco, empalideceu de uma forma que dava para acreditar que ele tinha morrido naquele momento.

– A senhora lê mentes?!

– A gente aprende uma coisinha ou outra lá em cima. E me passa mais um pedaço de bacalhau por favor, ficou bom mesmo minha filha.

Todos a olhavam com surpresa, minha nega tremia ao servir mais uma posta de bacalhau.

– Ah minha família não me olhe assim, todos no céu sabem tudo que todos fazem e pensam aqui. Não estamos julgando ninguém...ainda. – Completou a frase com um sorrisinho.

Dona Odina se virou para a namorada do Marcus agora.

–Você é a Ana?

– Sim Dona Odina, prazer, seus netos falam muito da senhora.

– É eu sei, eles são uns amores não? Apesar de pisarem na bola às vezes. Falando em pisar na bola.

Minha sogra segurou na mão dos dois. Fez uma cara séria e prosseguiu a falar enquanto eles se concentravam nela.

– Eu vim falar uma coisa bem particular com vocês dois. Vamos maneirar nessas fotos que vocês trocam pelo WhatsApp?

Tadinha da Ana, acho que se esconderia debaixo da terra se pudesse naquele momento, a bichinha ficou de um vermelho mais vivo que a camisa do Mengão. Começou a gaguejar como se tivesse desaprendido a falar.

– Q... Qu... Que fotos, Dona Odina?

– Essas mesmo minha filha.

– Mas, mas quer dizer que eu vou lá para baixo?

E aí a velha desatou a rir, a Ana estava com as unhas cravadas nas coxas do Marcus.

– Não minha filha, você precisa de bem mais que isso. Na verdade, não tem nada de errado nisso que vocês fizeram, mas pense bem, se você tem vergonha de falar que faz para as outras pessoas, acha que isso é de todo certo?

A menina olhou com lágrimas nos olhos para o meu filho. Os dois pediram licença por um minuto. Dona Odina estava com um sorriso na cara como se nada tivesse acontecido. Rapha estava segurando o riso. Eu e a nega só fomos entender melhor o que tinha acontecido dias depois. WhatsApp não era aquele negócio dos celulares modernos de trocar mensagens?

– Acho que vou tirar a mesa, quer algo mais mamãe?

– Não obrigado, estou satisfeita.

– Bem eu vou para a sala me aquecer para o jogo.

– Benzinho, porque você não me ajuda na louça um minuto?

–Bem... Claro amor.

Poucas vezes lavo a louça, sei que quando ela me chama é porque quer conversar alguma coisa. Dessa vez não foi diferente. Enquanto a água caía pelo jogo de pratos, ela já começou a falar.

– A mamãe está esquisita amor, notou?

– Assim amor, teoricamente sua mãe está morta, quer coisa mais esquisita?

– Não Queiroz, tirando isso. O modo que ela está falando, se comportando. Será que eles mudam a gente no céu?

– Ah minha nega não sei, deve ser essa coisa de Espirito Santo que eles tanto falam, falar em língua e essas coisas. Isso deve mexer com a gente.

– Entendi. E será que ela voltou para ficar muito tempo com a gente? Será que ela vai querer morar aqui?

– Pelo Jesus que ressuscitou a velha, não fala isso nem de brincadeira minha nega! Mal está cabendo a gente aqui. E no mais, acho que ela não iria querer trocar a TV que tem lá em cima pela a gente.

– Que isso amor, mamãe sempre amou muito a gente, não ia ser uma TV que ia parar ela.

– Duas então?

Minha nega jogou um pouco de sabão em cima de mim e fez uma cara de riso contido reprovando a brincadeirinha. Cheguei e a abracei pelas costas enquanto ela lavava a louça, beijei sua bochecha.

– Fica tranquila, deve haver uma regra lá em cima que impeça isso. Agora vou lá ver o jogo, me dá um beijo para dar sorte. - Dei um selinho demorado nela. Sabe, poucas pessoas conseguem dizer isso das suas esposas, mas eu sou louco por ela.

Passei na geladeira antes, roubei uma gelada e depois me sentei no meu humilde sofá. E aí era só eu e a TV, que agora estava passando as escalações para o jogo a seguir. Um repórter no campo estava informando que Cidinho estava escalado.

Caraca, esse moleque não vai jogar nada, pensei.

– Bote um pouco de fé no garoto. - Era minha sogra falando do meu lado.

Dei um pulo de tanto susto!

– Caraca, dona Odina faz isso não, quase morri aqui... quer dizer... ah, a senhora entendeu.

Deu um sorriso curto e me convidou a sentar do lado dela de novo.

– Precisamos conversar alguns minutos meu filho.

Sentei de volta, tentei manter alguns centímetros de distância dela. Não queria conversar agora, tinha todo um ritual antes do jogo começar, não gostava muito de falar com ninguém. Era me concentrar no jogo e passar boas vibrações para a "seleção".

– Pode ser daqui a pouco? O jogo já vai começar.

– Claro filho. - Dona Odina me mandou aquele mesmo sorriso curto.

O jogo começou, Mengão não tava indo muito bem, não sei se era a presença de um ser que voltou da morte do meu lado, que ainda por cima era minha sogra, mas eu estava mais nervoso agora. Quarenta e três do primeiro tempo, zero a zero.

–E agora meu filho, podemos conversar?

– Calma ai Dona Odina, já tá acabando o primeiro tempo.

Então ela se colocou bem ao lado no meu campo de visão. Vi sua mãozinha se esticar, dois dedos se estalarem rapidamente. Na TV, o jogador do Fluminense chutou do meio do campo. Gol!

– Não! Não! Poutz, que isso minha sogra! Não faça isso pelo amor de Deus! - Não estava acreditando, pulei, xinguei, soquei o ar.

– Tenho sua atenção agora?

– O que é isso? A senhora ganhou super poderes? - Larguei meu corpo mole novamente no sofá.

– Super poderes o que, o Caetano faz isso quase todo o jogo, o goleiro estava adiantado e ele viu, não percebeu? Enfim, isso não importa agora. O que importa é que eu tenho uma mensagem importante de Deus para você.

Ela pegou nas minhas mãos, olhou fundo nos meus olhos com toda a ternura que um ser humano poderia ter.

– Queiroz. Deus quer que você seja um discípulo dele na Terra.

Eu caí na gargalhada imediatamente. Como assim o Todo Poderoso quer que eu assuma um cargo tão importante e manda logo minha sogra para me dizer isso?! A não ser que tenha dado algum erro nos computadores do céu.

– Calma ai, calma ai dona Odina. Por todo respeito que tenho pela senhora. Tá de sacanagem né?

– Não tô de sacanagem meu filho. Você acha que o Altíssimo ia ter todo o trabalho de me fazer voltar para fazer uma brincadeira com você? - Foi a vez dela de gargalhar.

– Mas então não entendo, por que logo eu?

– Porque você tem um ótimo networking aqui em baixo. É um ser que ama sua família e frequentador da igreja.

– Um nete o que minha sogra?

– Networking, Queiroz. Boas conexões. Você já parou para pensar na quantidade de pessoas que você já conheceu e interagiu naquele táxi?

– É por causa do táxi então?

– Não só isso, o táxi é um detalhe. Você é comunicativo e é uma pessoa de grande coração. Você ainda olha para minha filha com aqueles mesmos olhos de um adolescente apaixonado sabia?

Fiquei um pouco envergonhado, não gosto quando as pessoas reparam em mim sabe.

– Mas mesmo assim, a responsabilidade é tão grande, não sei nem o que fazer, por onde começar? Vou ter que comprar uma toga, andar descabelado. Pensando bem, Jesus não tinha nem onde dormir, nem comer... Vou ter de me tornar um sem-teto?

– É só fazer isso que você está fazendo comigo. Converse, conte um pouco do seu dia a dia e como acha que Deus está brincando com você, mas no fim te surpreende. Deixa que o resto ele vai te ajudar. - Dona Odina gargalhou novamente e continuou.

– O problema das pessoas hoje em dia é que elas desaprenderam a crer. E não estou falando somente no âmbito da religião. Hoje em dia é muito mais fácil você procurar o amor nos braços de outra mulher do que acreditar que se você lutar por seu casamento ele pode melhorar.

– Sim minha sogra, mas as coisa nem sempre dão certo.

– Eu sei meu filho, não estou questionando este ponto. Mas as coisas estão muito mais descartáveis. Quando uma coisa estraga hoje em dia o primeiro pensamento é comprar outra. E não estou falando de bens, uma amizade por exemplo, quando ela se rompe muito dos amigos preferem que o remorso tome conta e buscam por novos amigos.

– E o que fazer? As pessoas se sentem como idiotas muita das vezes quando a amizade é traída.

– Essa coisa de idiota, de traído, muitas das vezes é invenção de nós mesmos. Somos seres humanos, temos interesses e pensamentos que muitas das vezes vão conflitar com outros seres humanos. Mas isso não necessariamente quer dizer que a outra pessoa está agindo de má fé com você. É só um ponto de vista.

Dona Odina se ajeitou um pouco mais no sofá e continuou.

– As pessoas com isso estão com medo de crer, de se doar. Tem medo de que as achem idiota, tem medo de acreditar em algo que no fim pode ou não existir. Mas a essência de crer está nisso, você não tem certeza se aquilo é o que é. Se doar meu filho, esse é um dos segredos para viver uma boa vida. Se doe ao seu amigo, se doe a sua esposa, se doe aos seus filhos. Não espere nada de volta, porque o que é seu está reservado.

O jogo recomeçou, minha sogra falou que teria que ir embora agora, mas não queria fazer a mesma extravagância da entrada e nem se despedir para ver as pessoas tristes. Ia simplesmente sair, tinha deixado aquele dia uma mensagem especial para cada um e a geladeira estava repleta de chocolate como presente para todos.

Naquele dia, o Cidinho fez dois gols, o apelido dele ficou "Milagre de Páscoa". E foi assim que minha sogra ressuscitou na Páscoa para perturbar o meu juízo, quase me levou a loucura. Mas as palavras dela estão gravadas na minha cabeça até hoje.

– Chegamos doutor. Deu vinte três e setenta, vamos deixar em vinte e três para ajudar o troco.

– Certo, toma vinte e cindo. Pode ficar com o troco Queiroz. – O passageiro começou a colocar a mão no bolso. - Sabe, essa sua história de sogra voltando dos mortos é bem maluca, difícil de acreditar. Mas talvez sua sogra tenha razão. Obrigado por compartilhar comigo. – O rapaz de terno retirava as notas da carteira.

– Imagina doutor, obrigado você pela companhia.

– Boa sorte com o emprego novo de discípulo.

– Muito obrigado! – Queiroz gargalhava.

O taxi passeou ao redor do aeroporto, logo uma pessoa fez sinal mais à frente. Era um jovem com uma camisa do fluminense e uma mala grande do seu lado. Queiroz parou, pegou a bagagem do garoto e colocou no porta malas, depois entrou novamente no taxi. O garoto sentou no banco de trás.

– Rapaz, você com essa blusa do fluminense me lembrou de uma coisa. Sabia que tenho uma sogra que ressuscitou?

“Amai-vos, credes, doais-vos. Só não atrapalhem um jogo do mengão” Qz 8:28


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Notas finais do capítulo

Bem conforme dito e repetido lá em cima essa história faz parte do desafio de Abril. E que desafio, o limite de 3.000 caracteres foi duro. Independente do resultado eu realmente espero ter provido uma história interessante e divertida para você leitor. Feliz pascoa!