~*~

Igraine caminhou pelo corredor, ouvindo os sons que vinham do local para o qual estava indo. Sozinha ali, longe de olhares julgadores, ela soltou um suspiro (ou o pouco que conseguia devido ao corset apertado) e escorou-se na parede, tentando prover um descanso, ainda que parco, para seus pés. Não via a hora dessa festa terminar e poder arrancar os sapatos de salto fino. Com um resmungo, se recompôs e foi até a única porta que havia ao final do corredor. Por ser uma porta de metal compensado, o ruído que provinha dali saía abafado e incompreensível. Igraine tocou na grande maçaneta e percebeu que a porta estava destrancada mas não a abriu.

" Será que devo mesmo fazer isso?"

Talvez fosse melhor dar meia volta e ir para a festa. Cruello dissera que iria se ausentar em uma reunião de trabalho com determinados convidados. Isso era algo normal, até porque o desfile era uma apresentação para realizar vendas e parcerias significativas. E na certa ele estava reunido com o ápice dos consumidores excêntricos. 

Não era algo que lhe dizia respeito. Nem mesmo Scarlet estava ali.

Porém, as palavras de Patrick Star pairavam em sua mente e a incomodavam. Por um lado sabia que não podia se deixar envolver pela língua ferina do jornalista. Tinha provas do caráter dele quando se tratava de prejudicar Cruello, fosse qual fosse a forma. Por outro, havia algo nas palavras de Patrick Star que faziam sentido e por isso ficava tão incomodada. Ainda que tentasse guardar tais pensamentos no fundo de sua mente e ignorá-los, a verdade é que todo o trabalho e zelo que Cruello tinha sobre ela e sua postura no desfile, a incomodava. Parecia que ele queria moldá-la á força e enquadrá-la nos padrões que ele, a Devil's e toda a alta sociedade esperavam dela. 

Não seria hipócrita em dizer que algumas coisas não gostara. Sentia-se bem maquiada e usando tais roupas. Hoje mesmo estava se sentindo uma mulher bela e sexy como nunca  antes ela lembrava ter se sentido. 

Mas não queria ser obrigada a deixar de ser o que era por ele. Nem por ele e nem por ninguém.

"Droga, isso é tão confuso!"

Sem querer pensar mais, abriu sorrateiramente a porta, adentrando com cuidado.

A primeira coisa que seus sentidos perceberam foi a iluminação taciturna do local e uma voz masculina se sobressaindo entre as outras. Havia uma fumaça constante e incômoda que Igraine detestou de imediato. Notou que o seleto grupo de convidados estavam dispostos em algumas mesas, separados em pequenos grupos. Nas mesas, eles fumavam charrutos ou narguilés, enquanto degustavam de bebidas caras servidas em taças de cristal por empregados devidamente vestidos.

Ela viu o namorado (que ela pensara ser filho) de Grimhilde, Hans, em cima do que parecia ser um pequeno palco com um púlpito do lado direito. Ele mantinha um tablet em mãos e falava com a confiança de bom vendedor.

Ao lado dele, uma das modelos que estivera no desfile, estava parada, usando um chamativo casaco de pêlo acinzentado e uma espécie de gorro do mesmo modelo. Certamente ela sentia calor, mas disfarçava isso muito bem com seu sorriso presunçoso.

— E aqui temos um casaco, alta costura, confeccionado pela Devil's e design assinado por Cruella Devil. Pelagem de mink legítimo, sem manchas sem odores e grande maciez.  Confortável, elegante e imponente, como podem ver. O chapéu acompanha. O lance inicial é de quinze mil dólares. Eu ouvi dezessete?
— Dezoito!
— Vinte!
— ...eu ouvi vinte e um? - barganhou Hans.
— Vinte e três! - exclamou o sheik com seu sotaque.
— Porque você quer outro casaco feminino? - indagou Grimhilde
— Para minha segunda esposa, é claro.
— Mas sua família vive em Dubai! Não conseguirão usar casacos de pele em um lugar quente como aquele!
— Pequenos detalhes. O importante é ter! É o que sempre digo!

  Grimhilde revirou os olhos e não disse nada.

— Dou-lhe uma...dou-lhe duas... - continuou Hans. - Dou-lhe três... – ele bateu um martelinho sobre o púlpito. – Vendido para o sheik Abudlah Al-Sahaim!

  Palmas moderadas e comentários de elogio enquanto o sheik pedia que um segurança seu se aproximasse com uma mala, a qual, ao abrir, havia uma notável quantia em dinheiro. Ele pegou dois maços e meio devidamente separados e entregou para um funcionário da Devils, que recolheu o dinheiro com cuidado e o colocou em um pequeno cofre sobre uma mesa no canto da sala. A modelo se despiu do casaco com ajuda de um estilista e mais dois funcionários da Devil’s (Igraine os reconhecia pelos trajes preto e branco que usavam) que com extremo cuidado colocaram o casaco e o chapéu em uma bela e ornamentada caixa, fechando-a com cuidado e a  levando para uma grande mesa do outro lado da sala.

   Apesar do local pouco iluminado (pois a luz se concentrava principalmente na parte do pequeno palco, para apresentar as peças), Igraine pôde ver que a mesa era na verdade um tipo de aparador que pegava mais da metade da parede e caixas de vários tamanhos estavam separadas em diversas pilhas e na frente de cada uma, havia uma plaquinha contendo o nome de um dos compradores (a pilha mais cheia, não era de surpreender, pertencia ao sheik).

— Muito bem, continuando... – a voz de Hans se sobressaiu entre o burburinho dos endinheirados. – Temos agora esse modelito ousado e único, produzido pela Devil’s e assinado por Cruella Devil, utilizado pela mesma uma única vez durante o desfile de 1970 em Paris e que foi eleito como um dos mais  belos da coleção verão do mesmo ano devido ao seu design e costura impecável.

  Uma modelo negra entrou no palco usando um esplendoroso e longo vestido de leopardo, justo ao corpo, com uma abertura que ia até o começo do quadril e um decote ousado. Ela usava colar, brincos e pulseiras de marfim e causou um murmúrio de excitação quando desfilou pelo pequeno palco.

— Mas que coisa bem feita... – murmurou Hans, mas ao perceber o olhar de Grimhilde em si, retomou a atenção ao trabalho. – Bom, temos aqui um item confeccionado com legítima pele de leopardo e joias de marfim africano.  O lance inicial é de ...vinte mil dólares.
— Vinte e um!
— Vinte e três!
— ...dou-lhe uma...
— Vinte e cinco! - uma mulher idosa repleta de joias e maquiagem ergueu o braço.
— Com todo o respeito, madame Tremaine, a senhora não tem corpo nem idade para...
— Não me venha dizer o que posso ou não posso usar, sua desvirginadora  de jovens! – ralhou a senhora para Grimhilde.
— ...Vinte e Cinco! – rosnou Grimhilde.
— Vinte e seis!

  As duas mulheres se encararam com ódio.  Hans trincou. Aquilo seria um combate pessoal.

— Dou lhe uma...dou-lhe duas...dou-lhe...
— Ainda não! Vinte e oito!!!
— Vinte e...
— Trinta e dois mil dólares.

  As duas mulheres olharam na direção da voz grossa e viram o príncipe africano erguer a mão e garantir que seu lance não seria batido. A esposa ao seu lado, abraçou-lhe o braço com um sorriso apaixonado e os empregados da Devil’s prontamente dispensaram a eles o mesmo tratamento dado ao sheik quando este adquiriu a peça.
  Igraine encostou-se na porta, oculta pela penumbra.

  Suas pernas bambearam e ela lentamente deslizou para o chão, dando finalmente o descanso para seus pés. Mas em contrapartida seu coração batia acelerado, o estômago parecia conter um cubo de gelo e sua cabeça rodopiava.

 Como aquilo poderia estar acontecendo?! Um leilão com peles de animais! Era absurdo, era horroroso, era revoltante! Aquelas pessoas ricas, esnobes e cruéis usando pele de dezenas de animais inocentes cruelmente mortos para puro capricho...pessoas poderosas alimentando uma indústria cruel como se fossem simples peças de roupa. Tudo para aumentar o status e disfarçar o quão ruins eram por dentro.
  E como Cruello poderia compactuar e lucrar com isso?! Onde ele estava?!

  Intrigada e indignada, ela observou o leilão continuar. Um visual motoqueiro feito com couro de antílope foi vendido para Grimhilde (Hans pareceu gostar, na certa seria presente para ele), um par de luvas de chinchila para a senhora que discutira com Grimhilde, um casaco de peles de vison e uma echarpe de raposa foram vendidos para o sheik. Ao ver a echarpe de raposa, Igraine virou o rosto, indignada e decepcionada. Uma mistura de ódio e dor mesclavam-se aos seus sentimentos ao ver tamanha crueldade e descaso. Não prestou atenção aos demais anúncios de peças que Hans fazia, e tampou os ouvidos quando começaram os lances. Precisava fazer alguma coisa.

— E agora vamos para  a última peça da noite. – a voz de Hans tirou Igraine de seus pensamentos. – Um artefato de luxo, requinte, beleza e completa ostentação. Única peça, não há igual no mundo. Foi encomendado por Cruella Devil, desenhado por ela e produzido pela melhor equipe de estilistas da Devil’s. E quem desfila é seu herdeiro!

Ah não...não....

  Igraine sentiu que seu coração se despedaçava. Cruello Devil surgiu no pequeno palco, caminhando de forma elegante e orgulhosa, exalando todo seu charme e sensualidade e vestindo um enorme e pesado casaco de legítimo tigre siberiano albino. O traje era horrivelmente belo, exalando elegância e poder. Em um dos lados da gola, a parte superior da cabeça do animal servia como um adorno que gerou furor de excitação entre os possíveis compradores mas para Igraine lhe deu vontade de vomitar e matar.
  Como Cruello poderia usar uma  coisa dessas?! Ele levava tão a sério o fato de querer “honrar” Cruella Devil?!

   Cruello Devil estava lindo e aquilo a irritava ainda mais. Mas  controlaria seus sentimentos. Seus sentimentos não poderiam sobrepujar os seus ideais e o que ele exibia usando aquele casaco, era algo inaceitável. Respirou fundo e se aproximou silenciosamente do pequeno palco, mas de modo que sua presença fosse logo notada (o que não seria difícil sendo que estava toda de branco em um ambiente de pouca luz – exceto no palco). Alguns dos presentes começaram a notar a presença de Igraine e quando Cruello percebeu que já não estava sendo o centro das atenções mesmo com o casaco de tigre, ele olhou na direção e então a viu. O sorriso soberbo foi se desfazendo e só um pensamento instaurou em sua mente.

Merda.

  Igraine parou diante de Cruello e, como o palco era um pouco alto, ela o olhava de baixo para cima. O rapaz notou a expressão de raiva e decepção e os olhos cheios de lágrima. Por sorte a maquiagem era a prova d’água mas ele não deveria pensar nisso sendo que diante de si estava uma bomba prestes a explodir e ele sabia muito bem o motivo.

— Olá, Igraine. – ele falou. – Pensei que...ficaria na festa.
— Acho que teremos muito o que conversar... - Igraine murmurou aquilo com tanta raiva que Cruello sentiu como se ela o atravessasse com uma faca e o jovem riu, sem jeito.
— Eu estou um pouco ocupado agora...como pode ver...
—Como você pôde, Cruello? Você estava todo esse tempo acobertando o comércio ilegal de peles sob esse desfile...por acaso todos aqui tem o mínimo de noção de que estão cometendo um crime? Não há mesmo qualquer resquício de empatia pelos animais sacrificados?

   Os presentes observaram surpresos. Hans trincou diante do problema, Grimhilde escondeu um sorriso de deboche e apenas o sheik parecia confortável e até divertido. Cruello lançou um olhar assassino para Igraine.

— Igraine, espere do lado de fora que logo poderemos conversar sobre isso, aqui não é o lugar.
— Não vou esperar do lado de fora coisa nenhuma!! Você acha que eu sou besta? Que vou fazer tudo o que você quer? - ela desviou de Cruello e encarou os demais.  - Vocês acham bonito fazerem o que estão fazendo? Sabem que para cada casaco que compram vários animais são mortos?! Vocês estão compactuando...

  Cruello sabia que a situação ficaria insustentável e teria problemas. E problemas era algo que ele não queria ter, ainda mais entre aqueles que eram os melhores. Lançou um olhar significativo para Hans enquanto se despia do casaco e o entregava para dois funcionários e desceu do pequeno palco.
  Caminhou até Igraine, que estava de costas prestes a dizer impropérios para o sheik que mantinha um sorriso falsamente simpático no rosto mas Cruello sabia que não duraria muito tempo. E se o bom-humor do sheik acabasse, muitas coisas estariam em jogo.

— O senhor poderia ter consciência de que utilizar peles de animais não é algo realmente bonito e sim uma demonstração de...
— A senhorita é realmente interessante. Acho que aumentarei minha proposta feita ao senhor Devil por você. Vale mais do que camelos mesmo.
— O...o que está falando?! Mas não vou deixar que fuja do assunto! Não é porque o senhor é rico que pode comprar vidas assim! Pois esses animais foram vidas cruelmente cortadas para...
— COM LICENÇA. – Cruello falou alto, se interpondo entre os dois com um sorriso simpático. – Me perdoe sheik, mas preciso ter uma palavrinha com ela!
— Está querendo me...
— ...calada. – ele sussurrou apertando um pouco o braço dela e ainda sorrindo. – Acabei de lembrar que preciso falar algo importante com ela!
— Oh, mas estamos no meio do leilão... – o sheik comentou. – A senhorita pode assistir conosco, achoque ela irá gostar.
— Garanto que só levará alguns minutos. – pediu Cruello antes que Igraine pudesse abrir a boca.

   Cruello virou-se rapidamente para os presentes enquanto sutilmente empurrava Igraine para longe deles.

— Aproveitem esse pequeno intervalo para saborearem um de nossos drinques e checarem suas redes sociais. Volto já!

  Com um sorriso falsamente simpático, ele puxou Igraine para fora da sala. Ela tentou resistir, mas ele tinha uma pressão me seu braço e com medo de cair se ficasse parada, o seguiu. No corredor de onde viera, o rapaz  a levou até uma outra porta, abrindo a mesma com violência.     

    Cruello praticamente empurrou Igraine para dentro, fechando a porta com força atrás de si. Ela se virou, raivosa e com lágrimas cobrindo o rosto, esfregando o braço que ele segurara.
  Cruello a encarava, os olhos azuis fitando-a com surpresa e irritação. Ele respirava com força, Igraine podia notar o peito dele subir e descer por conta da camisa justa. Os cabelos que antes estiveram cuidadosamente fixados com gel, já começavam a despentear.

— O que... - ele começou, lento e mordaz. - O que estava pensando em querer fazer barraco durante os meus negócios?! Você tem algum discernimento de quais pessoas estava prestes a ofender com suas opiniões estapafúrdias?!
— Estapafúrdias?!!  VOCÊ ME ENGANOU!- Igraine vociferou. - Me enrolou com toda essa palhaçada de glamour, querendo que eu fosse sua marionete boazinha enquanto fazia um leilão de peles embaixo do meu nariz!! Você achou mesmo que eu ia aceitar tudo isso numa boa?! Achou?!
— O que há de mal em um leilão de peles?! São peças únicas, de qualidade, marcas da Devil's, desenhadas por Cruella Devil! Valem muito! Em metade delas já consegui mais de um milhão de dólares!
— Por que escondeu de mim?! Me deixou plantada com aquelas pessoas e....- Igraine respirou fundo. - Um tigre albino Christian?! Como pôde? É uma espécie extremamente ameaçada de extinção!
— Não me chame de Christian! Eu pedi para você ficar lá na festa porque sabia que se te levasse comigo você daria piti por conta das peles, com toda essa sua mania de protetora dos animais! Não estava sozinha! Tinha Scarlet e você me pareceu estar se dando bem com a Georgie! Eu não estou na festa simplesmente para posar de dono do desfile, estou á trabalho e tenho de focar nele! E sim, era um tigre albino, em extinção! Lógico que aquele casaco vale muito e vendi ele por um preço excelente!
— Que horror!! Se eu soubesse de tudo isso nunca teria vindo a esse desfile! Eu aceitei tudo que me fez passar e nunca reclamei de nada e para quê?! Para ver esse horror!
— Não teria visto se não tivesse ido xeretar o que não lhe dizia respeito! Poderia ficar conversando de boas com Scarlet e Georgie!
—  Georgie e Scarlett tinham seus assuntos para resolver ao invés de serem minhas acompanhantes!  Eu vim nessa droga de festa por você, Christian! Porque queria que você estivesse feliz e...você... - Igraine começou a chorar... - Você me engana...como um caçador capitalista!!
—  Caçador?! O tigre já estavam morto há anos! Queria que eu fizesse o quê?! Pegasse o casaco e tacasse fogo?! Pare de querer exagerar tanto! Ninguém além dos envolvidos sabem do leilão e eles obviamente não irão abrir a boca porque senão vão ter que aguentar a problematização de um monte de gente ativista chata!

— Você não entende nada! Só se importa consigo mesmo! É um egoísta mimado que só pensa em benefício próprio! Você é asqueroso!
— Ah me poupa desse discursinho! Eu estou muito ocupado hoje para ficar dando atenção aos seus xiliques! Não vem querendo que eu me converta ao seu ativismo idiota! Reclama que eu te coloquei isso e aquilo mas quando se olhou no espelho, toda montada, adorou! Minha noite estava perfeita até você querer arruinar tudo! Mas não vai conseguir!
— Isso, é só para isso que eu presto mesmo?! Para arruinar tudo o que você faz... A caipira, a ordenhadora de vacas, a sem classe, a ecochata.!É só isso o que você enxerga em mim! Só vê defeitos e faz questão de falar!Nunca me elogia, nunca é carinhoso, sempre me critica... Acho que no final das contas você só queria que eu fosse para a cama contigo!E a trouxa aqui caiu feito um patinho na sua lábia! Achando que você era o meu principe... O punk maravilhoso que me salvou à 10 anos! Sou uma iludida imbecil, motivo de piada!
— ...Ainda está achando que eu não sou o Devs?!
— Você não é ele, não é mais! Deixou de ser, escolheu ser Cruello Devil! Que só mostra o que lhe é conveniente para que as pessoas façam o que você quer, não é?

  Cruello a encarou, mudo com a súbita explosão da garota. Que Igraine era frágil e emotiva ele sabia, mas nunca a vira daquela forma.

— ...está falando asneiras. - murmurou. - Você acha que pode ser sempre a pessoa que foi, mas não é assim que a vida aqui funciona. Mas tem razão na última coisa: sim, eu mostro e sou o que eu quero que as pessoas saibam e esperam que eu seja! É isso que é a vida... São máscaras, Igraine! Você não é mais a camponesa ordenhadora de vacas, olhe para a sua realidade agora, olhe para a sua realidade futura! Se eu mudei, você pode mudar também! Mude diante deles, de todos eles! É assim que você vive e você ganha! Eu te ajudo a mudar e você...
— EU NÃO QUERO MUDAR! - ela esbravejou, sem fôlego. - Ser algo que eu não sou só para agradar as pessoas?! O que vou ganhar com isso? Fama, glamour, convites para recepções grandiosas... E quando eu estiver doente, ou estiver precisando de ajuda...acha que essas pessoas que você entitula amigos vão ajudar?! Eu prefiro ter a minha vida usando roupas de departamento, sendo a ativista chata e ter amigos que se importam comigo do que essa gente mesquinha que se escondem atrás de máscaras e age com falsidade! Você já pensou algum dia...se fosse apenas Christian... Sem a herança da Cruella...alguma dessas pessoas olhariam para você? Te ajudariam?
— ...como não olhariam?! - ele provocou. - Mesmo quando eu era o punk que você tanto amava, eu era muito popular! Sempre tive muitas pessoas ao meu redor! E está se gabando que só você tem amigos porque é uma pessoa que não mudou ao longo dos anos?! Eu tenho amigos que me acompanham há mais de vinte anos! Sabe o Hans? Nos conhecemos ainda nos tempos de colégio! Sabe Grimhilde? Era amiga de Cruella e uma professora minha! Alfred e Scarlet decidiram por eles próprios me acompanhar dos tempos de rolê até hoje! Evoluimos juntos e acha que nos arrependemos?! Não! A vida de luxo é benéfica para nós, aprendemos a valorizar e descobrir potenciais em nós mesmos! É isso que quero que entenda, é isso que quero que aprenda!
— NÃO! Você vive nesse mundinho onde tudo gira em torno de si próprio! Eu não vou mais te bajular e nem aceitar as coisas erradas que você faz! - ela bateu o pé - Eu sempre aguentei os seus xiliques e até suportei Scarlett por você... Mas não dá! Você precisa mudar por mim também! Você só se importa com a droga da Davils... E eu, Christian? E eu?! Você se importa com o meu bem estar? Acha que eu seria feliz me tornando algo que não sou? Olha para mim!Foi por essa pessoa que você se apaixonou?! Ou nem isso você sente por mim?
— Ah, que saco! - ele levou a mão aos cabelos, desfazendo penteado. - Porque esse tipo de problema tem que acontecer quando tudo está dando certo?! Estava tudo certo, você estava se dando bem, eu estava lucrando, o desfile foi um sucesso...mas tem que acontecer algo porque você acha que eu leiloar artigos de vestuário feitos com peles legítimas é a maior atrocidade que um ser humano pode fazer!
— É uma crueldade, sim! É um horror! Quantos animais foram sacrificados só para ostentar esse luxo ridículo!
— Do jeito que fala parece que eu acabei de matar eles e mandar fazer os casacos! Essas peças de roupa já estavam na mansão da Devil's há anos! Eram de Cruella Devil e eu não iria deixar tudo aquilo mofar em caixas e armários! Chamei o peleiro que trabalhou com Cruella para verificar as peças, fazer os reparos que precisassem para então colocá-los á venda!
— Ainda que você não use, está compactuando para que outras pessoas usem e o mercado ilegal continue...
— Ah não! Discurso não! - ele se virou, murmurando. - Scarlet bem que me avisou...

— Agora você vem e mete aquela megera no meio da nossa discussão!  Porque não assume logo que ela é sua amante?! Já que ela é linda, rica e inteligente... A melhor coisa era ficar com ela, não é?! Aposto que riem de mim pelas minhas costas! Como já vi fazendo! Olha lá... A caipira sem classe, a suburbana! Há quanto tempo vocês estão juntos?! E se estão juntos porque não assumem? Gostam de me fazer de chrifruda?!
— Eu não tenho caso com Scarlet, aloka! Credo!
— Quantas amantes você tem alem dela? Me fale logo!!!  Grimhilde também é sua amante? Aquela piranha!! Eu não suportaria ser corneada por uma mulher que tem idade para ser minha avó!! - Igraine estava histérica.
— EI, EI EI!! Segura o descontrole aí! Para começo de conversa, eu não tenho caso nenhum com Scarlet, isso é um absurdo! – ele fez uma cara de nojo. – Namorar com ela é dormir todas as noites pensando que jamais poderá acordar novamente! E Grimhilde não é velha, não! Quando ela me desvirginou, não tinha nem trinta anos! E ela tá super bem conservada! – ele filosofou. – Conservada até demais, chega a ser sinistro...
— EU NÃO QUERO SABER DAS SUAS EX, seu idiota!! - Igraine o encarou, raivosa. - Estou cansada desse vestido torturante, desse sapato horrível, desse espartilho que mal me deixa respirar e de você querendo que eu seja a sua marionete! Você tem que amadurecer e parar de Você não se importa mesmo com o que eu quero?!

    Igraine sentou-se na poltrona vermelha diante do jovem, arrancou os sapatos com raiva e Cruello viu ali o momento de começar a falar algumas verdades.

— O problema é que você pensa que sabe o que quer mas talvez não saiba! Você só se coloca pra baixo e não enxerga a pessoa que é! Estou tentando mostrar isso para todos e até para você mesma! Porque não enxerga isso e faz questão de continuar bancando a politicamente correta?!
— Christian... Por quê me escolheu? Eu realmente achava que você me amava por eu ser o oposto de tudo o que você tem aqui... É isso que você quer? Que eu seja como a Scarlett ou a Georgie? Por que quer que eu me anule por um capricho seu? É dessa forma que você diz que gosta de mim? Me arrumando e me moldando do jeito que você acha que é o melhor? O melhor para mim ou o melhor para você?
— Mas que droga! Você que não entende nada! Só reclama, só se diminui, só fica de paranóia e começa a pensar e agir como uma maluca!
— MALUCA?? Maluca, eu?!  Seu cretino, embuste!! - Igraine atirou o sapato que tinha nas mãos na direção dele, Cruello desviou assustado enquanto a mulher vir para cima dele com o outro sapato de salto agulha na mão . - Todo esse circo de gente falsa e hipócrita e eu sou a maluca??!! – ela deu uma sapatada no braço dele, que recuou, assustado. - A única pessoa que me diminui aqui é você seu idiota, junto com a piriguete da sua amiguinha!! Como ousa me chamar de maluca, de paranóica? Já se olhou no espelho alguma vez, senhor Devil?! O homem mais afetado, melindroso, perfeccionista, surtado e cheio de não-me-toques que eu já conheci! Eu não sou sua cadelinha Cruello, eu não farei o que você quer...não mais! - ela despejou sobre ele, fazendo Cruello ficar lívido.
— ...está dizendo que não quer mais nada...é isso?
— SIM! Cansei! Eu amo você mas você não acha isso nada de mais! Só se importa  em ser Cruello Devil!  - ela abriu os braços. – Esse é o seu mundo, o mundo que eu não gosto, não aceito, não quero para mim! E vejo que é impossível voe abandonar isso nem que seja um mínimo! Acostumou-se tanto em ganhar e ter tudo desde sempre que acha que pode moldar os outros! Só quer me mostrar ao seu lado depois de me transformar em alguém que os outros possam olhar e dizer que “é digna de estar ao lado de Cruello Devil”. NEGA ISSO SE FOR CAPAZ!

  Ele não respondeu e aquilo foi resposta o suficiente.

— Idiota...idiota eu fui por me deixar amar você. E idiota você é por não conseguir enxergar que perdeu a si próprio em prol da ganância! Acho que, no fundo, você nem sabe quem realmente é! Quando começar a perder as coisas importantes, quem sabe vai aprender.
— ...quando eu começar a perder coisas importantes...? – Cruello murmurou . – Quer saber...se é assim que pensa, cansei.

  Ele tirou do bolso uma pequena caixa, jogando-a aos pés de Igraine como se fosse lixo.   
— Isso era para o fim da noite quando a festa acabasse. Eu pensei muito antes de decidir, realmente nem acreditei que iria fazer, mas quando vi já tinha decidido.  Mas  acabou mesmo agora. Pelo visto fiz a besteira de me importar. Se vire para ir embora. Afinal, eu já perdi tanta coisa mesmo que perder mais uma não deve ser nada de mais!

   Em silêncio, ele saiu da sala, fechando a porta atrás de si. Igraine limpou as lágrimas e pegou a pequena caixa e, ao abri-la, encontrando um par de alianças em seu interior.  -

“ O..o que...eu fiz...?”

~*~

 
  Assim que fechou a porta, Cruello encostou-se na mesa, fechando os olhos.
  As palavras podem ferir muito mais do que uma lâmina, afinal. Ele já deveria ter aprendido isso. Afinal, todos sempre acabam indo embora no momento que admite para si mesmo o que sente. E de novo e de novo isso se repete.
Talvez esse fosse seu destino de vida, afinal.

Era um idiota, um estúpido, um fraco. Repetiu para si mesmo que não iria demonstrar, continuaria parecendo ter tudo sob controle. Sim, isso mesmo. Ele era melhor do que isso, poderia lidar.

  Com um suspiro, Cruello se recompôs, ajeitou os cabelos e seguiu de volta ao trabalho. Era assim que deveria se portar. Fraqueza não era algo que um Devil deveria demonstrar. Não diante dos outros.
 Tratou então de colocar bem fundo de sua alma, o peso, a raiva e a dor que sentia.
Pelo menos por enquanto.

~*~