Nascidos da Noite - Livro Rigor Mortis escrita por Léo Silva


Capítulo 22
Capítulo 22 - Meu nome é Cachorro Louco




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Acordou com o barulho de água gotejando.

A cabeça ainda doía, e Cachorro Louco tentou se lembrar do que aconteceu na noite anterior, mas foi em vão. Sua memória parecia um grande borrão, e a última lembrança que tinha era de entrar em uma casa estranha.

Depois disso, nada.

Agora, estava em um lugar desconhecido. O ar tinha cheiro de mofo, e tudo parecia estar guardado ali há muito tempo. Ainda sentindo um pouco de tontura, Cachorro Louco olhou em torno de si mesmo. Muitas caixas empilhadas e canos enferrujados que pareciam gemer de dor de tempos em tempos.

Por mais ou menos dez minutos ele ficou parado, tentando entender o que aconteceu. Então, ouviu alguns passos arrastados. Alguém se aproximava lentamente.

A mulher abriu a porta, que respondeu com um rangido seco, e se aproximou do garoto. Portava uma arma presa à cintura – e provavelmente sabia muito bem como usá-la. A regra mais básica da vida é “não aponte uma arma para alguém se você não tiver intenção de atirar”.

A casa estranha. Ele estava dentro dela, era isso.

— Então, está gostando das acomodações, meu pequeno hóspede?

— Por quê... Eu não fiz nada... – gemeu Cachorro Louco.

— Mas certamente faria... Sei reconhecer quando alguém está mentindo para mim. Qual é o seu nome verdadeiro, pivete?

Cachorro Louco não se lembrava de nome algum – se dera um nome falso à mulher, também se esquecera dele. O interior da sua cabeça era o limbo.

— Do que a senhora está falando?

A mulher segurou Cachorro Louco pelos cabelos e puxou a cabeça dele para trás. Ele gritou, mas isso apenas a fez rir dele. Enquanto tinha os cabelos puxados e encarava o teto escuro, Cachorro Louco sentiu uma angústia que há muito não sentia – indefeso, machucado e abandonado. O tempo passava, mas as coisas não mudavam. Ele ainda era um saco de pancadas.

— Por favor, pare!

— Vou parar quando me disser o que eu quero saber! Qual o seu nome verdadeiro, pivete?

Então, era isso...

Chovia torrencialmente em São Paulo, e ele perambulava pelo Largo São Francisco, sem nada para comer. Nem se lembrava da última vez que teve uma refeição decente. Estava ensopado e sentia o estômago doer, e a chuva não parecia ter a intenção de parar tão cedo. Então, o garoto que um dia se chamaria Cachorro Louco, viu um carro de luxo parar próximo ao meio fio. A janela se abaixou discretamente, e uma voz masculina irrompeu:

— Ei, garoto, quer ganhar um trocado?

O garoto olhou para dentro do carro. O homem deveria ter uns sessenta anos, tinha cabelos grisalhos, barba por fazer e um sorriso aberto. Caras legais não sorriem assim, baby.

— O que eu tenho que fazer?

— Nada muito difícil, só quero mudar uns móveis de lugar.

Cachorro Louco pensou em todas as piores possibilidades, até mesmo de ser assassinado, mas nenhuma delas pareceu pior do que a realidade que ele vivia. Nada poderia ser.

Entrou no carro do estranho.

O homem dirigiu em silêncio por um tempo, mantendo aquele sorriso estranho no rosto. De vez em quando olhava para Cachorro Louco, parecia estudá-lo de cima a baixo. Quantos garotos ele havia pego nas ruas antes de Cachorro Louco?

— Não se preocupe, não lhe farei mal algum – disse o homem, quebrando o silêncio.

— Eu acredito em você.

E era verdade, ele acreditava mesmo.

Chegaram ao Jardim Paulista meia hora depois. O homem morava em um apartamento espaçoso, com uma enorme televisão de plasma na sala. Havia várias estantes abarrotadas de livros, e Cachorro Louco passou os olhos por eles.

— Gosta de televisão? – perguntou o homem, fechando a porta atrás de si.

— Sim.

— Do que você gosta... Qual é mesmo o seu nome?

— Eu... Eu não me lembro...

— Como as pessoas te chamam?

O garoto silenciou-se. Ninguém o chamava de nada. Era apenas um garoto de rua sem nome, e ele pensou que morrer assim poderia não ser a pior coisa que aconteceria em sua triste vida. Talvez até quisesse isso.

— Bem, isso não importa muito. Por que não toma um banho enquanto eu preparo as coisas? – perguntou o homem, apontando para um corredor. – O banheiro fica no final. Tem toalhas secas e um roupão que você pode usar.

Cachorro Louco olhou para o corredor, e depois para o homem, que pareceu entender tudo.

— Não acreditou mesmo naquela história de mudar os móveis de lugar, acreditou?

Cachorro Louco negou com a cabeça. Claro que não.

— Escute, garoto, eu te dou uma grana. E comida, se quiser. Tudo o que eu quero é filmar a nossa trepada. Você enfia seu pinto em mim, eu gravo e depois acabou. Cada um para o seu lado.

Cachorro Louco pensou na comida, e na grana que ele prometeu. Estava faminto, e precisava de dinheiro se queria deixar São Paulo, procurar por sua mãe. Faria tudo o que fosse preciso para alcançar seus objetivos.

Depois, cada um para o seu lado.

Ele assentiu com um movimento da cabeça. Caminhou pelo corredor até o fim, onde encontrou o banheiro, com as toalhas e o roupão, exatamente como o homem tinha dito. Tomou um banho, pensando no que viria a seguir. Tudo o que eu quero é filmar a nossa trepada.

Saindo do banheiro, Cachorro Louco voltou para a sala. O homem havia posicionado algumas filmadoras em tripés, e iluminado o ambiente. Ele ligou a televisão, e Cachorro Louco viu a si mesmo na tela de plasma.

— Agora, eu vou tomar um banho. Deixei um sanduíche na mesa da cozinha. Volto já – disse o homem, deixando-o sozinho na sala. Cachorro Louco aproveitou para olhar os livros que cobriam as estantes. Gostaria de lê-los, todos eles – até mesmo aqueles que pareciam chatos. Mas não havia espaço para eles em sua vida. Estava tão solitário e desesperado que não havia espaço para mais nada.

Depois de largar os livros ele comeu o sanduíche. E passou os olhos pela sala. Havia dezenas de porta-retratos espalhados, fora do foco das câmeras, claro. Cachorro Louco agarrou um deles e olhou mais de perto. O homem estava acompanhado de uma mulher, e os dois sorriam mutuamente. E lá estava a aliança no dedo do homem – a qual ele não portava mais.

— Ela morreu há muitos anos – disse o homem.

Assustado, Cachorro Louco deixou o porta-retratos cair. O som do vidro se espatifando ficou em sua mente por muito tempo, se misturando com outro som ainda mais perturbador: o de um osso se partindo.

(Cada um para o seu lado).

— Desculpa, eu não queria fazer isso.

— Tudo bem, eu tenho outros. Depois eu limpo isso. Precisamos ir agora...

O homem puxou Cachorro Louco pelo braço. Estavam parados diante das câmeras. O homem abriu o roupão, e ele estava completamente nu. Uma barriga proeminente se destacava, e o sexo murcho pendurado na virilha. Abrindo o roupão de Cachorro Louco, o homem apalpou o sexo dele.

— Isso, mostra o que você tem aqui – disse, acariciando o pênis flácido do jovem.

Cachorro Louco se afastou. O homem encarou-o, irritado.

— O que está havendo?

— Eu não consigo... Sinto muito...

O homem se levantou. Agarrou-o pelo braço, puxando-o para junto de si.

— Escuta aqui garoto, eu não gosto de ser feito de trouxa, ouviu? Você vai me dar esse boquete querendo ou não!

— Me solta! Me solta!

Cachorro Louco começou a se debater, tentando se livrar do homem. Cada vez mais irritado, o homem o puxava para junto de si. Cachorro Louco agarrou o primeiro objeto que encontrou, e acertou o homem na cabeça.

(Cada um para o seu lado).

O homem cambaleou, e levou a mão à testa. Sangrava. Então, ele caiu sobre uma mesa de centro, que espatifou por causa de seu peso. O chão ficou coberto de cacos de vidro. Nos instantes que se seguiram, Cachorro Louco permaneceu paralisado, olhando para o homem. A mancha de sangue aumentava no chão, e ele não sabia o que fazer. Ele estava morto?

Na janela um pássaro crocitou, parecendo dizer “venha”.

Cachorro Louco olhou para o homem, e novamente para o pássaro. Venha. Venha. Venha. Não pensou duas vezes. Vestiu suas roupas e saiu pela janela, seguindo o pássaro pelas ruas de São Paulo.

***

O Ibirapuera anoitecia e agora caía uma garoa fina e estúpida.

Seguindo o pássaro, Cachorro Louco chegou até o parque e, atravessando o portão 7, avançou até uma área com muitas árvores frondosas, à margem de um lago. Estava cansado demais, desesperado demais. Cachorro Louco ajoelhou-se à margem do lago, e bebeu água suja.

— Mata a sede do mesmo jeito, não é mesmo?

A mendiga estava parada debaixo de uma das árvores, e Cachorro Louco viu o pássaro voar sobre a cabeça dela, e pousar docemente em seu ombro. Mesmo com a fuga da luz (como ele não viu isso antes?) ele percebeu que o pássaro era azul, e tinha a cabeça preta. Venha-venha-venha!

— Por favor, não me machuque – sussurrou Cachorro Louco.

A mendiga sorriu, e foi como se falasse dentro da cabeça dele, em um idioma que somente os dois pudessem entender. Jamais. Jamais. Jamais. E o pássaro repetiu. Jamais. Jamais. Jamais. Ela é uma gralha muito boazinha, não é mesmo? Nem todas as gralhas são boas, algumas são como os homens, mas não esta. Não. Não. Não. Esta é boazinha.

Lentamente, ela se aproximou de Cachorro Louco. A chuva recomeçou, mais forte do que antes, mas em torno deles não havia chuva alguma, e quando Cachorro Louco olhou para o céu ele viu um sol brilhante incrustado em uma tela azul.

— Quem é você?

A mulher vestida de trapos, com a gralha azul no ombro, segurou a mão dele. Quando o garoto olhou dentro dos olhos dela, eles eram brancos feito leite coalhado. A gralha o encarou mais uma vez. Você. Você. Você.

— Eu sou Aisha, o último oráculo do Novo Mundo. Você veio até mim porque precisa de uma direção.

Cachorro Louco assentiu.

— Sua mãe o deixou há muito tempo... Você esqueceu o seu nome... Mas não deve recuperá-lo agora... Deve se manter oculto pelas sombras, sem ser tragado por elas. Você saiu para conhecer o mundo, não é essa a verdade que você vai contar para si mesmo a partir de agora? Vai perdoá-la, ela merece seu perdão, não merece?

Ele assentiu com um movimento da cabeça.

— Por ora, você deve seguir seu caminho pelas ruas de São Paulo, mas seu destino é muito maior do que isso. É o destino mais importante de todos os destinos. Você deve encontrar a princesa gelada, e ela te levará para casa. Seu nome é... Cachorro Louco...

Cachorro Louco. Cachorro Louco. Cachorro Louco.

— É Cachorro Louco. Meu nome é Cachorro Louco.

A mulher pareceu surpresa. Seus olhos se estreitaram e a boca se abriu demasiadamente para alguém que pretendia apenas falar – como se ela quisesse engoli-lo inteiro.

— Ninguém se chama Cachorro Louco, pivete.

— Então, eu não sou ninguém, porque meu nome é Cachorro Louco, e serei Cachorro Louco até morrer – disse o garoto.

— Pois que assim seja, Cachorro Louco – disse Dorotéia, puxando-o pelo braço. – Eu ia guardar você para mais tarde, por isso te trouxe pra cá, mas os planos mudaram. Meu filho acordou, e ele está com fome. Sangue sintético não mata a fome dele.

Os olhos da velha Dorotéia se estreitaram sobre Cachorro Louco.

— Então, talvez você não seja “Cachorro Louco” por muito mais tempo. Ninguém costuma durar muito nas mãos do meu filho.

Assim, Cachorro Louco foi puxado escadas acima, com as mãos amarradas às costas e uma arma apontada para sua cabeça.


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