Nascidos da Noite - Livro Rigor Mortis escrita por Léo Silva


Capítulo 20
Capítulo 20 - Feito um bom garoto




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São Paulo, 2020

As ruas eram demasiadamente assustadoras à noite – mesmo antes dos semi-vivos se mostrarem. Agora, sair de casa sem proteção era praticamente um suicídio.

Samanta ia um pouco à frente, como se guiasse Cachorro Louco pelas ruas de São Paulo. Antes de saírem ela disse algo do qual ele se lembraria para sempre. Ainda estavam diante da fogueira, onde brasas crepitavam. Feito estrelas no chão.

Eu não sei o que determina de que lado estamos. Não sei que força é essa que nos impulsiona. Só sei que é assim, que sempre foi assim. Não consigo imaginar, por mais que me esforce, uma única explicação lógica para alguns serem considerados bons e outros maus. Heróis e vilões. Anjos e demônios. Humanos e vampiros. Mas posso te garantir que eu não escolhi ser isso que eu sou. Eu me tornei isso. Sabe, eu queria ser feliz, queria mesmo. Ser normal, como toda garota da minha idade. Então, uma noite, aconteceu. Mas não foi uma fatalidade, não, não foi. Certamente o vento me disse que eu deveria estar ali, e deveria passar por isso. E eu estava lá, e agora tenho que lidar com isso. Não sei o que está acontecendo, a sociedade mudou um pouco, mas acho que não mudou o bastante. Ainda somos olhados de lado, como se fôssemos os (únicos) monstros. Talvez eu tenha um pouco de culpa, não sei, mas também sei que há outras pessoas nisso, tão culpadas quanto eu. E são essas pessoas que nós visitaremos hoje à noite. Eu não garanto que será agradável, mas sei que será necessário. E eu vou precisar da sua ajuda, assim como você da minha.

A senhora que toma seu chá. O padre. O vendedor de caixões. Todos terão que me encarar antes desta noite terminar.

Dito isso, começaram a caminhar por São Paulo. 

Primeiro, Samanta pensou em roubar um carro. Depois desistiu da ideia, se esgueirar pelas sombras pareceu mais sensato. Dois garotos dirigindo poderia chamar muito a atenção de alguma autoridade. Dois garotos de rua, por outro lado, não chamam a atenção de ninguém.

Trinta minutos de caminhada e chegaram ao endereço que ela já conhecia da outra vida: um sobrado mal iluminado, cujo enorme portão de ferro ostentava diversas cruzes de carvalho. Samanta parou a alguns metros, protegida pela sombra. A moradia era rodeada por altos muros cobertos de musgo, e parecia abandonada.

— Preciso que abra o portão, entre na casa e me convide – disse ela, mostrando a ele uma chave enferrujada. – Eu só tenho a chave do portão.

— Não pode simplesmente voar por cima do muro? – perguntou Cachorro Louco.

Samanta sorriu. Sob a parca luz que a atingia ela parecia uma estátua ornamentada por dois rubis, que eram seus olhos brilhando no escuro.

— Meu querido, e não se valem os mortos dos caminhos dos vivos? A magia que me impede de entrar está em todos os lugares.

Ele entendeu. Deu dois passos na direção do portão. Enfiou a chave no velho cadeado e girou-a. Empurrou o portão, ele gemeu e começou a se movimentar. Cachorro Louco entrou, Samanta seguiu-o e foi esconder-se nas sombras do quintal.

O garoto caminhou até a porta do sobrado. Tudo estava coberto por teias de aranha. Ela garantia que alguém ainda morava ali, aparentemente alguém que não se preocupava nem um pouco com higiene. Apertou o botão da campainha, ele afundou e desapareceu. Claro que não está funcionando. Deu duas batidinhas na porta. Se queria poder convidar Samanta para entrar não poderia simplesmente invadir, mas teria ele mesmo de ser convidado pelo dono. Ela não resiste a garotos, jovens, disse Samanta. Vai querê-lo, acredite em mim. Deu mais duas batidas, e não obteve resposta alguma.

Cachorro Louco olhou para as sombras e viu um braço apontando para o outro lado da casa. Ele começou a dar a volta pelo prédio. Havia muito mato, e árvores mortas com galhos e raízes retorcidas que pareciam mãos prestes a agarrá-lo. Alguém deveria limpar aquele lugar. Havia, também, um poço coberto por tábuas de madeira, parcamente iluminado por um pequeno poste. Do outro lado, ele encontrou uma porta. Pregado a ela havia um enorme crucifixo. Jesus com os olhos caídos, e uma expressão de total desalento. Não estariam todos eles assim?

Cachorro Louco levou a mão na direção da maçaneta, então a porta se abriu e ele foi atingido por um spray que o fez cair de costas sobre uma das raízes retorcidas. Ainda se recuperando do susto e do ataque, olhou para a porta aberta.

A mulher que o atingira era uma senhora, talvez rondasse os cinquenta anos. Usava óculos que pareciam pára-brisas de caminhão e vestia uma camisola de renda preta. Os cabelos começavam a embranquecer, e ela parecia prestes a atacá-lo.

— Por que não está derretendo? – perguntou ela.

— Não sou um vampiro.

Cachorro Louco se levantou. Os olhos da senhora não o largavam nem por um segundo. Ela ainda segurava o spray de água benta apontado para ele, talvez duvidando que o tivesse acertado e esperando por uma segunda chance.

— Então deve ser um ladrão... É, hoje em dia quem não é vampiro, é ladrão.

— Não sou nenhuma das duas coisas, senhora – disse ele, finalmente de pé.

As costas doíam um pouco por ter caído de mau jeito, e Cachorro Louco gemeu ao tentar acertar a postura.

— Então, por que tentou invadir minha casa? O que quer aqui?

Cachorro Louco encarou-a. Enquanto caminhavam, Samanta explicou seu plano. A mulher não resistia a um garotinho, essa era sua fraqueza. Sim, vergonhosa fraqueza. Depois de fazer o que queria ela costumava jogá-los no poço. Então ela continuava. Sempre queria mais.

— Eu não tenho família... Nem casa. Achei que esta casa estava abandonada...

Por um instante ele achou que os olhos dela brilharam de uma forma estranha. Talvez caísse no conto do vigário. Talvez não fosse tão fácil assim.

— Mas não está, como deve ter percebido. Agora, vá embora! – gritou a mulher.

— Eu posso trabalhar por comida... Limpar o quintal – insistiu ele.

Por um instante a mulher ponderou entre mandá-lo embora mais uma vez, ou entrar, pegar a espingarda do marido e atirar nele. Depois, pensou melhor. Por ora não precisava dele, mas as coisas não estavam muito boas no Brasil. Poderia ficar mais difícil conseguir o que ela precisava. E ele não era um vampiro.

A mulher abaixou o spray.

— Tudo bem... Você pode trabalhar... Como é mesmo o seu nome?

— Eu me chamo Adam.

— Meu nome é Dorotéia. Adam, você começa amanhã. Por ora, entre e vamos conversar.

O garoto, que não se chamava Adam, entrou no sobrado, observado por dois olhos vermelhos imersos na escuridão.

***

O interior da casa parecia ainda mais abandonado e perturbador do que o lado de fora.

A sala estava abarrotada de livros – pilhas e pilhas deles, jogados sobre cadeiras e ocupando o sofá por inteiro. Havia uma fraca luz proporcionada por velas espalhadas por todos os cantos, o que só tornava a atmosfera ainda mais fúnebre. Em um dos cantos, um velho relógio de pêndulo matraqueava de hora em hora, como que lembrando aos presentes que o tempo estava passando – estamos ficando sem tempo, baby.

A passos lentos, os dois cruzaram a sala. Escadas davam acesso ao segundo andar e, quando Cachorro Louco olhou para o alto, ele não viu nada, a não ser escuridão. Talvez ir até ali não tenha sido a melhor das ideias.

Dorotéia ia à frente, segurando o spray com uma mão e uma chaleira com a outra. Em certo ponto ela parou e olhou para trás, o rosto ocultado pela escuridão parcial que parecia preencher todos os espaços.

— Não me disse como conseguiu passar pelo portão – falou ela.

Cachorro Louco cerrou os lábios.

— Estava destrancado... Parece que alguém tentou invadir... Partiram a corrente.

A mulher pareceu ponderar, os olhos voltados para cima.

— Sim, há muitos vândalos por aí, esperando uma oportunidade para fazer mal a uma velhinha indefesa. Ainda bem que você não é um deles, não é mesmo, Adam?

— Sim senhora.

— Amanhã daremos um jeito no portão. Por hora, você deve ficar no quarto, trancado, só por precaução.

Cachorro Louco prendeu a respiração. Não era esse o plano. Deveria ser um convidado de Dorotéia, e não um prisioneiro. Se não compartilhassem da casa, jamais poderia convidar Samanta para entrar. Nesse caso, teria que fugir ou levar Dorotéia para fora.

— O que houve? Parece preocupado – disse a mulher, subindo as escadas que davam ao segundo andar.

— Não é nada... Só estou com um pouco de fome – mentiu.

— Pois bem, levarei algo para você comer no quarto. Gosta de bife?

— Sim senhora.

Terminaram de subir as escadas. Cachorro louco olhou uma última vez para Dorotéia, que o indicou um quarto.

— Daqui a pouco eu trago seu jantar. Por que não descansa e me espera feito um bom garoto?

Porque eu não sou um bom garoto.

— E se eu precisar ir ao banheiro?

Dorotéia não se abalou. Apontou a janela e disse:

— Tenho certeza absoluta de que você consegue dar um jeito.

Disse isso, trancou a porta e foi embora.

Assim que ela saiu, Cachorro Louco correu para a janela. Do jardim, Samanta viu-o, e levitou até ficar frente a frente com ele. Ele abriu a janela, e sentiu o ar frio invadir suas narinas feito um spray de água.

— Não sou um convidado, sou um prisioneiro – sussurrou o garoto.

— Se não posso entrar, então, ela terá que sair.

— E como eu posso fazer isso?

— Escute... Você precisa pegar uma coisa dela, algo que ela não possa ficar sem. Certamente ela saíra da casa...

Passos de alguém se aproximando. Samanta se aproximou da janela e saiu da visão, escondendo-se um pouco abaixo. Imediatamente Cachorro Louco subiu em uma cadeira, abriu o zíper e fingiu que urinava.

A porta se abriu em seguida.

Dorotéia entrou com a arma empunhada e algumas roupas.

— Aqui está, acho que ficarão bem em você – disse ela. – Ah, e seu sabia que daria um jeito.

Cachorro Louco fechou a roupa e sorriu.

— A senhora tinha razão.

Desceu da cadeira.

— Vamos, o banheiro é no final do corredor.

Cachorro Louco pegou as roupas e seguiu Dorotéia pelo estreito corredor. No final, ela trancou-o no banheiro e disse que voltaria em meia hora. Ele deveria estar de banho tomado e apresentável.

Cachorro Louco nem se lembrava da última vez que tomou um banho.


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