Tomoeda High escrita por Uma Qualquer
Na mensagem da caixa postal, uma voz masculina e grave se identificava como Kinomoto Fujitaka e pedia que deixassem um recado após o sinal. O rapaz alto e moreno aguardou o bipe, enquanto consultava o relógio de pulso.
– Too-san– disse. –Aqui é o Touya. Então, o senhor tinha pedido pra avisar se acontecesse algo fora do normal. Tá tudo bem por aqui, é só que eu cheguei em casa e encontrei a Sakura dormindo. Ela ainda estava usando o uniforme, então acho que já tinha chegado da escola. Mas eu já estou aqui a mais de uma hora e nada de ela acordar... Bom, acho que não é nada de mais. Deve ser só o cansaço. Bom, eu tenho que ir pra faculdade agora. Me retorna a ligação quando puder.
Ela se remexeu no futon, a coberta que o irmão pôs sobre ela escondendo seu rosto. Touya se abaixou perto dela, descobrindo o rosto da garota para que ela não sufocasse.
Estranho, pensou ele, tentando não se alarmar. Sakura não estava pálida nem fria; não aparentava estar doente ou prestes a adoecer. Mas o ritmo regular de sua respiração, além do aspecto distante de sua expressão, faziam parecer que ela estava num sono mais profundo que o normal. Quase um coma.
– Acorda, monstrenga– ele acariciou o rosto da irmã, a testa franzida de preocupação.
O bilhete que deixou na mesa ao sair dizia a Sakura para que ligasse para ele assim que acordasse, e que fosse comer alguma coisa. Ela ignorou ambas as recomendações.
Algo importante aconteceria naquela noite. Algo mais importante para Sakura do que qualquer outra coisa.
A poucas quadras de distância da Tomoeda, os Li olhavam para o teto do prédio adiante. Era muito antigo, e sua arquitetura em estilo gótico destoava das construções simples e modernas que lhe faziam vizinhança. Da varanda do sétimo andar, podiam ver uma luz acesa no interior da residência.
– É lá– Meiling disse, o vento soprando forte em seus cabelos, presos em marias-chiquinhas novamente.
– Meio alto– observou Syaoran. –A gente devia bater ou algo assim?
– Considerando que é a casa do nosso sensei... Sair invadindo não seria uma atitude amigável. Mas de qualquer forma, não viemos aqui pra ser amigos de ninguém.
Tsubasa liderou os outros, descendo a escada de serviço do prédio onde estavam. Na metade do caminho, a dois andares do chão, segurou no corrimão de ferro e se jogou no vazio, caindo em um contêiner cheio de bolsas de lixo. O irmão e a prima o seguiram. Assim que se viram no chão, atravessaram a rua correndo.
– Ei, vocês– uma voz juvenil alertou-os.
Eles pararam e olharam para cima; a silhueta de um garoto alto se destacava contra o luar. Estava de pé sobre a murada da varanda, as mãos às costas.
– Se querem visitar o jovem mestre... claro que devem bater antes, certo?
Ele balançou o corpo para frente, devagar. Quando os jovens deram por si, ele já estava caindo.
– Nesse caso,– exclamou, cada vez mais perto em sua queda livre– podem deixar que eu bato pra vocês!!
Os garotos recuaram no mesmo instante. Pularam para a outra calçada, onde havia um carro estacionado. Porém, algo em seus instintos aguçados os fez se afastarem correndo. No mesmo instante, o carro explodiu.
– Que descuidado– Tsubasa protegeu o rosto de um estilhaço, que veio voando em sua direção. – Chamando tanta atenção sem necessidade.
Syaoran e Meiling estavam ao lado dele, agachados junto à parede da esquina. Escondidos ali podiam ver um homem louro andando por trás das chamas. Usava um uniforme branco de cozinheiro, e carregava uma enorme bazuca num dos ombros.
– Sério– ouviram ele dizer num resmungo impaciente. –É melhor aparecerem logo, se não quiserem que eu detone o resto da rua. Quer dizer... Claro, o jovem mestre e o senhor Sebastian não querem, mas tenho ordens de manter vocês longe daqui hoje.
– Acha que eles querem machucar nosso mestre, Bard? –indagou a voz mais jovem.
– Deixa eu lhe dizer uma coisa, Finny: se um dia alguém for lhe visitar e estiver armado até os dentes, fique à vontade pra socar esse alguém até a morte.
– Certo!
Ele se aproximou de onde os garotos estavam. Havia acendido um cigarro nas chamas do carro e passava a mão pela barba por fazer, um tanto frustrado.
– Se bem que, com toda essa bagunça, é provável que tenham ido pra bem longe...
– Acho que não, Bard.
A voz era feminina e vinha de um ponto sobre suas cabeças. Quando os Li já erguiam o olhar, uma rajada de balas os fez pularem. Havia vindo de cima.
– Uma atiradora– Meiling sussurrou. –No prédio sobre nós.
– Eu cuido dela– disse Tsubasa. – Syaoran, pegue o Bard.
– Espera– a garota exclamou– eu fico com aquele guri? Eu nem sei qual é a dele!
– Descubra– o mais velho lhe piscou. –Sei que você gosta de surpresas.
O chamado de Sakura aconteceu quando ela chegou da escola. Animada, ansiosa, nervosa, mil emoções a flor da pele. Mas a ansiedade era mesmo maior que tudo.
Havia recebido todo tipo de conselho das amigas, desde qual roupa usar, até o que fazer caso ele não aparecesse novamente (ligar para Chiharu, que ia pôr todo o clube de artes marciais atrás do desgraçado). Talvez o que lhe deixasse realmente nervosa era ter que explicar a Touya que tinha um encontro naquela noite, que ia sair na companhia de um garoto. E que estava muito a fim daquele garoto.
Sem chance, ela pensou, se jogando no futon. Antes de zoar com a cara dela, ele poria grades e correntes na casa toda. Aquele jeito impulsivo do irmão era tão parecido com o de Syaoran... Por algum motivo, Sakura achava que Touya não ia gostar dele quando o conhecesse.
“Porque, alguma hora, eles vão ter que se conhecer.”
A ideia fez ela esconder a cara no travesseiro. Não queria pensar em mais nada daquilo. Só queria esquecer, relaxar, adormecer. E confiar que, no final, tudo ficaria bem.
Despertou no início da noite, quando ouviu o chamado que deixou sua mente em branco. Só havia uma coisa ali agora.
Alguém chamava por ela. Uma voz que ela não podia ignorar. Ela levantou-se, calçou os sapatos do uniforme e saiu.
A cidade inteira lhe parecia estranha, em algum canto de sua mente. Nunca saíra à noite, então não conhecia o barulho e as luzes. Mas na verdade, estava alheia a tudo isso. Só queria seguir em frente, para o local de onde vinha o chamado. Brilhava como um radar dentro de sua cabeça, tão forte que fazia doer, e ela só queria que aquela dor acabasse.
Afinal o prédio assomou diante dela, e a dor diminuiu. Estava perto. Só precisava cuidar para não ser vista, muito embora o local estivesse deserto. Mas havia o som de tiros, explosões, metal batendo. Parecia que a coisa ali estava bastante agitada.
– O mestre diz que devo ser gentil com senhoritas– o garoto chamado Finny se defendia das adagas de Meiling, atirando continuamente pedaços de concreto na direção delas. –Mas ele também não deseja que ninguém entre na residência sem a permissão dele!
– Pelo jeito, você está em cima do muro agora– ela sorriu desafiadora, encurralando-o contra a fachada do prédio. – O que vai fazer então?
– Meu mestre vai entender.
Por um instante, Meiling se viu frente a uma parede vazia. Confusa, virou-se para trás, a tempo de dilacerar o bloco de cerca de dois metros de espessura que vinha em sua direção.
– Cuidado, Meiling! –Tsubasa exclamou.
Não teve tempo de olhar muito. Tinha um dos braços sangrando por um tiro de raspão, e continuava a ser afastado continuamente pelas balas da mulher. Era ruiva e jovem, usava um uniforme de doméstica de alta classe, com uma fivela a suspender um lado da saia, de modo a facilitar seus movimentos. Estava na sacada do prédio adiante, escondida atrás da saída de serviço. Quando ouviu Tsubasa, ela pôs a cabeça para fora, por reflexo.
– Hein?
Um tiro a fez recuar. Mas ela insistiu.
– Por que está me dizendo pra ter cuidado?
Tsubasa parou confuso.
– Você? Eu não...
Uma explosão o fez se debruçar sobre a murada do prédio outra vez. Agora havia sido Syaoran, que cortara em dois um artefato explosivo que viera em sua direção, conseguindo se afastar a tempo de se proteger dos estilhaços. Mas ele falhou em acertar Bard com a espada, pois o cozinheiro havia sumido na fumaça.
– Obrigada por se preocupar– a empregada surgiu ao lado dele do nada, uma pistola encostada em sua têmpora. – Mas não vai ser mais necessário.
Num milésimo de segundo, pôde distinguir a silhueta de Finny agarrando uma Meiling esperneante pelo pescoço, enquanto um destroço do carro explodido mais cedo voava na direção de Syaoran, sem que o rapaz se desse conta.
Sem acreditar em como foram derrotados tão facilmente, Tsubasa se revoltou. Quis continuar a lutar. Mas uma forte sonolência o derrubou no chão, e ele desmaiou antes que pudesse fazer qualquer coisa.
– Sente-se melhor, Sr. Li?
A visão embaçada do rapaz recuperou o foco lentamente. Flutuando acima de seu rosto, um sorriso de lábios finos – gentil, mas não acolhedor, e muito menos confiável.
O sorriso de um predador diante de sua presa.
Syaoran ergueu-se assustado. Estava sem camisa, o torso coberto por ataduras na altura do peito.
– Caso não esteja se sentindo bem, fique tranquilo. Amanhã será como se não tivesse acontecido nada.
A voz era grave e ressonante, com um acento britânico inconfundível. Não havia muito mistério naquilo.
Finalmente conseguiram entrar na residência Phantomhive.
– Fizeram uma bagunça dos diabos, para variar– a arrogância na voz jovem e pueril também não deixava dúvidas. – Felizmente, os vizinhos não perceberam nada.
– Pois é... –Syaoran se apoiou nos cotovelos com dificuldade. – Queria saber como eles não perceberam.
– Vai saber– Sebastian disse, em seu meio sorriso.
Com o foco de visão recuperado, Syaoran pôde distinguir o homem ao lado de uma poltrona, na qual Ciel estava sentado, as pernas cruzadas. A manga do roupão de cetim que usava não escondia o pulso fino, enfaixado com gaze e ponteado por duas gotas vermelhas minúsculas. O homem e o garoto observavam Syaoran e as pessoas ao lado dele – Tsubasa e Meiling, assim como ele, deitados sobre camas. Ambos estavam desacordados e com os corpos cheios de ataduras. Debruçados sobre eles, Bard e a empregada ruiva, agora usando óculos de lentes enormes, cuidavam de seus ferimentos.
– Melhor se encostar aqui – Finny ajeitou um travesseiro na cabeceira da cama. Puxou o corpo do rapaz para trás com cuidado, tão facilmente como se segurasse um boneco. Não tinha ferimento algum, apesar do rosto jovem manchado de fuligem. E também não havia mais nenhum ar de psicopata em seu olhar. Seus olhos azuis pareciam até preocupados. – Não tá doendo muito, tá?
O tom culpado e sincero fez Syaoran esquecer por um momento que aquele garoto estava atirando blocos de concreto em sua prima.
– Estou bem– murmurou, olhando para os companheiros. – E quanto ao aniki e a Meiling?
A empregada, que cuidava da jovem desacordada, ergueu o olhar numa súbita expressão de compreensão.
– Oh, sim, ela está bem– disse num tom gentil, bastante diferente da atiradora de elite que ele viu antes. – Agora entendo... Meu nome é Mei Rin, quase como o dela.
– Cuide bem de sua xará então– Bard lhe sorriu energicamente, e voltou a atenção para os raspões nos braços e no rosto de Tsubasa. – O cara aqui é durão, vai se recuperar rápido.
Syaoran olhava para eles sem entender. Por que as mesmas pessoas que tentavam matá-los momentos atrás agora cuidavam deles com tanto zelo?
– Eles são boas pessoas, como pode ver– disse Ciel. –Mas também, criados muito obedientes. E bastante... incomuns.
– Percebi– Syaoran resmungou. –Por que não parou eles antes?
– Achei que eles não causariam tanto estrago– Sebastian suspirou. –Mas estava enganado, como sempre. Além do mais, percebi a determinação de vocês em entrar aqui. Estavam mesmo dispostos a arriscar suas vidas. Então, meu mestre achou que era mais sensato apagar todos por enquanto.
– “Apagar”? –Syaoran indagou, confuso.
– Como ele fez comigo naquele dia, na fábrica– Ciel explicou em seu tom entediado. – Você sabe, criaturas da estirpe do Sebastian possuem algumas habilidades próprias. Ele pode emitir uma onda que apaga a consciência do cérebro humano, por alguns minutos. Também pode reanimá-lo, o que foi preciso no caso dos meus criados, agora há pouco, para que eles pudessem cuidar de vocês.
– Certo...
Syaoran observou o irmão e a prima, lado a lado. Realmente, estiveram dispostos a tudo para entrar naquele lugar.
– A curiosidade de vocês guardiões é mesmo intrigante– o menino apoio o cotovelo no braço da poltrona. Pousou o queixo sobre a palma da mão, e o movimento fez a franja longa revelar um tapa-olho no lado esquerdo do rosto. – Pelo jeito, aquele nosso duelo não foi o bastante para que me deixassem em paz. Agora, com boa parte do quarteirão destruído e a minha noite de paz perturbada, acho que tenho o direito de saber o que diabos vocês querem aqui.
Parecia aborrecido, o que no fundo deixou Syaoran satisfeito. Afinal, aquele pirralho não foi o único a ter a noite arruinada.
– Você vai saber– disse. –Assim que me explicar o que é essa coisa em seu pulso.
Sebastian e Ciel se entreolharam. O garoto deu de ombros, sem se mover de sua posição. Apenas estendeu o braço, para que Sebastian desenrolasse a gaze cuidadosamente.
A essa altura, Tsubasa e Meiling já haviam despertado. A camisa negra estava em farrapos e o vestido sujo precisou ser trocado por uma camisola, que ficou muito grande em Meiling e escorregava pelo ombro. Ambos, porém, faziam silêncio, apenas ouvindo tudo o que Ciel tinha a dizer.
– Foi isso o que os trouxe aqui? –o garoto estendeu a eles o bracinho pálido, erguendo a manga do roupão para que se visse as duas marcas feitas no pulso. Estavam posicionadas de modo a atingir as artérias sob a pele, que estava inchada e rosada ao redor das circunferências. – Num lugar como Tokyo, onde esse tipo de coisa é estritamente proibido, é normal que os guardiões do território sagrado percebam quando algo profano acontece.
– Mas não foi só isso que nos trouxe aqui– Tsubasa tomou a palavra, numa voz cansada mas incisiva. – Há algo de errado entre vocês. Algo que os guardiões precisam saber, em nome da paz do nosso território.
– Oh sim– Sebastian murmurou, olhando para a janela, de onde se via subir a fumaça do carro queimado. – Vejo o quanto prezam essa dita paz. Jovem mestre, deve concordar comigo que não há mais o que esconder.
O garoto voltou o rosto na direção dele e então desviou, emburrado.
– Vá em frente.
Sebastian saiu do recinto, voltando com uma bandeja de prata. Nela havia um cálice transparente, uma seringa e um cooler em tamanho mínimo. Ele pousou a bandeja sobre uma mesinha diante da poltrona de Ciel. Mudos de surpresa, os garotos o viram tirar uma bolsa hospitalar cheia de sangue de dentro do cooler. A agulha grossa da seringa perfurou a bolsa, extraindo boa parte do líquido. Sebastian então empurrou o êmbolo dentro do cálice, que foi preenchido até a metade.
– Isso é... –Syaoran murmurou assombrado.
Sebastian apanhou o cálice, fazendo uma leve mesura a Ciel antes de entregar o objeto.
– Tomai e bebei, jovem mestre– disse calmamente. –Este é o meu sangue.
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Obrigada a quem leu, se puder comentar agradeço... é isso. Té maisinho