Tomoeda High escrita por Uma Qualquer


Capítulo 6
Entidade




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A noite encontrava aquela estranha cena no templo – de um lado da mesa baixa, Tsubasa comia seu udon em silêncio, do outro, Kurogane bebia sake, um olhar enviesado para Syaoran, que tentava terminar sua refeição. Mas era difícil, quando se tinha uma garota pendurada nele como um bicho-preguiça.

– Quando você vai embora mesmo? –o monge indagou.

Meiling fez uma careta. – Não é assim que se recebe uma visita, Kuro-kun.

– É Kurogane pra você– ele replicou azedamente. –E você não é uma visita. Visitas avisam que estão pra chegar. Você é só um inconveniente. Um inconveniente que não tem onde passar a noite.

– Mas esse templo é enorme. Além do mais, eu posso simplesmente dormir com meu marido.

– Haha, muito engraçado– Syaoran tentou se desvencilhar dela, sem sucesso. –Pra sua informação, eu não sou seu marido. Quantas vezes vou ter que repetir?

– Quantas quiser. Você sabe que está errado. Não me importo com o quanto você me rejeite, ou com quantas garotas saia. Eu sou seu porto. É em mim que você tem que atracar.

– Acho que é você quem está atracada nele agora – Tsubasa opinou.

A garota revirou os olhos e finalmente soltou Syaoran, sentando ao lado dele. – Tudo bem, cunhado. Se você não se importa, eu gostaria que você desocupasse o quarto de Syaoran. Sabe, um casal precisa de privacidade.

– Por mim tá tranquilo. Kurogane-sensei, se importa de eu desocupar o quarto pra que meus sobrinhos possam ser gerados em paz?

– Voltando ao assunto, Meiling-san– Kurogane encheu o copo com mais sake. –Quando é que você vai embora mesmo?

Acabou que Meiling conseguiu permissão de Kurogane para ficar no templo. Desde que dividisse as tarefas com os gêmeos, e dormisse num quarto nos fundos, bem longe deles. E nem pensasse em atravessar o local para encontrar o ‘marido’, sob pena de voltar para a China no primeiro voo da manhã seguinte.

Enquanto o irmão ressonava pesadamente, Tsubasa pegou o bloquinho dentro da maleta, mais uma lanterna e um lápis. Se enfiou debaixo da coberta, acendeu a lanterna e jogou o pequeno facho de luz em cima do objeto.

Ele poderia ter devolvido a Sakura, se não já tivesse ouvido falar deles. Feiticeiras de antigamente usavam algo parecido, quando queriam se comunicar com entidades sobrenaturais. Sempre tinha uma raposa na frente, simbolizando uma alma penada. Tudo o que o usuário precisava fazer era invocar uma certa entidade.

Pelo menos era o que Kurogane-sensei contava em suas histórias. Syaoran dormia durante a maioria delas, mas Tsubasa escutava tudo atentamente. De algumas coisas ele realmente duvidava por serem absurdas demais. Mas era preciso serem muito absurdas, porque, no mundo que Tsubasa conhecia, um caderno como aquele era perfeitamente possível de existir.

Apanhou o lápis e escreveu, numa página em branco.

“Quem diabos é você?”

Esperou um momento, e nada aconteceu. Então adivinhou que talvez fosse necessário um pouco de privacidade. Ele fechou o bloco, e então voltou a abrir na mesma página.

Olha a língua, senhor espectador.

Ele sorriu. A tal entidade estava parecendo ser uma mulher. Uma mulher velha, por sinal.

“Me desculpe. Quem seria você?”

Fechou e abriu o bloco novamente.

Sou quem você nem imagina que exista.

Alguém que o tempo esqueceu.

Alguém que não esqueceu o tempo.

Sou um ser feito de tédio, e você é minha distração.

Aquilo foi complicado. Ele pensou por um momento, antes de pegar no lápis novamente.

“Você não me respondeu nada.”

Vai ver é porque você não me perguntou nada.

Ele reprimiu um riso – agora a entidade parecia mais irritante que a Meiling.

“Vou te fazer uma pergunta mais objetiva, então. Acha que eu devia ir até a casa da Sakura? Devia tentar me aproximar dela, agora que meu irmão está ocupado?”

O que te mata é essa sua objetividade, pequeno garoto.

E não, não vou dar conselhos amorosos a um moleque que cresceu demais.

Trate de cuidar de sua vida, porque eu é que não vou cuidar.

Acho que irritei a entidade, ele pensou.

Aquilo era mesmo divertido. Afinal ele decidiu arrancar a página que escreveu e adotar uma nova tática. A mesma que Sakura usou, sem perceber. Tratar o bloco como um diário.

“Desculpe pela página arrancada. Mas tem tantas em você, que acho que não vai ligar.

Tem uma menina que eu gosto. E tem um cara que gosta dela. E esse cara é meu irmão.

Acho que eu gostei dessa menina ao mesmo tempo que ele. Não sei se é possível, mas aconteceu.

Eu queria que meu irmão não existisse. Gosto dele, mas se fosse possível escolher... “

A resposta demorou um pouco. Quando chegou, apenas duas linhas estampavam a página.

Quando a vida se resume a um eterno “se”

É melhor pensar se vale a pena viver.

Ele refletiu por um momento, e então decidiu fechar o bloquinho. Hora de dormir.


Duas coisas aconteceram naquela noite. A primeira delas, Tsubasa não guardou o bloquinho dentro da maleta. A segunda foi que, de algum modo, o objeto foi parar no futon de Syaoran.

O mais novo, que costumava acordar primeiro, deu de cara com a capa de raposa sobre o lençol. Achou que fosse uma brincadeira de Tsubasa, mas reconhecia a letra de Sakura. E também reconhecia a letra do irmão.

Foi assim que ele soube que Sakura gostava dele, o que o deixou feliz pra caramba. E também soube dessa maneira que estava dormindo ao lado de seu rival.

Tsubasa acordou com um único chute nas costelas. Ele se encolheu instintivamente, apertando os olhos para ver na claridade do quarto.

– Ficou doido?! – ele rugiu exasperado.

– Seu babaca. Fica longe de mim, senão eu parto a tua cara.

Antes que ele dissesse qualquer coisa, sentiu um objeto leve ganhar peso ao se chocar contra o seu rosto. Ele o pegou, torcendo para que não fosse o bloquinho, mas sabendo que ia se decepcionar.

“Merda.”

A frustração o fez querer ficar em casa. Teria que ver o resultado das provas naquela semana, mas ir para a Tomoeda significava ter que encarar a fúria de Syaoran, cada vez que ele ousasse sequer olhar para Sakura. Era melhor deixar a poeira baixar.

Teve uma surpresa ao chegar à cozinha. Meiling preparava uma omelete, enquanto Kurogane lia um jornal no balcão. Pareciam até uma família, e uma família normal, o que era mais estranho.

– Por que a surpresa? – Meiling indagou, de mau humor. –Eu falei que ia ajudar nas tarefas do templo.

Estava até usando um avental sobre a calça preta e a blusa cheongsam vermelha, os cabelos arrumados num rabo de cavalo. Tsubasa se juntou ao mestre, dando de ombros.

– Tá– disse. – Só não achei que você fosse mesmo obedecer.

– Eu não tenho mais cinco anos, idiota.

– Por que não foi com seu irmão? –Kurogane indagou, sem tirar os olhos do jornal. – A Tomoeda não pode ficar desguarnecida.

– Ele tá estressado. Depois eu falo com ele.

– Falar o quê? –Meiling se aproximou e despejou a omelete numa travessa. – Que você inventou aquele bloquinho só pra chatear ele? Não vai colar, viu.

– A mesma bisbilhoteira de sempre– Tsubasa apoiou o queixo sobre a mão, emburrado. – Achei que você ia dar um chilique. Afinal, meu irmão tá gostando de uma garota que não é você. Isso não te incomoda nem um pouco?

Ela e Kurogane se entreolharam. Meiling sorriu e levou a frigideira para a pia.

– Lamento primo, mas não vou poder te ajudar. Se quiser ficar com a Sakura-chan, vai ter que brigar com seu irmão por ela. E torcer pra que ela não fique de saco cheio de vocês e dê um chute nos dois.

– Hein? –Tsubasa olhou para a garota, sem entender. – E toda aquela conversa de ele ter que atracar no seu porto e tudo mais?

– Sério que você caiu naquele teatrinho? Você não mudou nada mesmo, né.

Ele olhou para Kurogane, que apenas ergueu uma sobrancelha em sua direção.

– Não acredite em tudo que vê e ouve– alertou o monge. –Achei que eu já tinha lhe ensinado.

– Pois é, vivendo e aprendendo– o rapazinho murmurou, tentando assimilar as novas informações. –Então, Meiling-chan não veio atrás do Syaoran?

– Claro que não. Não tenho mais cinco anos, eu já disse. Sei que os Li podem escolher com quem vão passar o resto de suas vidas. E é claro que eu não ia escolher alguém do clã. Já temos problemas demais, não acha não?

– Mas então, porque todo o teatro? E pra que você veio afinal?

– Seus instintos estão mesmo preguiçosos, Li-kun– Kurogane baixou o jornal e olhou para o garoto. – Essa história de namoros parece estar ocupando demais a sua mente. Será que não notou como está a atmosfera desse lugar? Não percebe que, ultimamente, algumas presenças que não deveriam estar aqui acabaram entrando em Tokyo?

Não, ele refletiu. Não percebeu nada. Mesmo agora, tudo o que podia sentir eram as presenças às quais já havia se acostumado. Seu mestre. Seu irmão, a quilômetros dali. A presença de Meiling, um pouco diferente, mas praticamente a mesma de que se lembrava.

Não era possível, disse a si mesmo. Era como se houvesse um ponto cego, algum tipo de interferência. Esforçando-se um pouco mais, pôde até sentir Sebastian em algum lugar da Tomoeda. Mas não havia mais nada além disso.

Kurogane fez um sinal a Meiling, que saiu do aposento. Quando voltou, trazia o bloquinho dentro de uma bolsa plástica. Kurogane apanhou um lápis na gaveta do balcão e entregou a Tsubasa.

– Só os que já escreveram no caderno devem fazê-lo novamente– disse a ele. –Agora, escreva essas palavras: “como faço para matar você?”

Meiling despejou o bloquinho em cima do balcão e saiu de perto, como se ele fosse tóxico. Tsubasa obedeceu ao monge. Fechou o caderno, e então leu o que estava escrito.

Não se mata o que já está morto.

Minhas cordiais saudações.

Meiling tinha agora um punhal afiado na mão. Mandou Tsubasa se afastar, fechou o bloquinho com a ponta do objeto e marcou o centro exato da capa, no coração da gravura de raposa.

– É só um palpite– disse. –Mas se funcionar, também será uma precaução. De todo jeito, a entidade invocada já sabe como chegar a Tokyo. Só nos resta esperar.

Entregou o punhal a Tsubasa, que fitou o bloquinho. Então entendeu do que Kurogane havia falado. A presença indesejada emanava muito fracamente, mas vinha daquele objeto.

– Por isso eu a chamei– disse Kurogane. – Precisava de mais um Li aqui, já que os dois que tenho estão com as mentes ocupadas demais.

– Eu também não quis que vocês se preocupassem de cara– ela deu um sorrisinho culpado. –Por isso mantive as aparências com o Syao-kun. Só não pensei que isso também fosse causar problemas...

– Você nem imagina – Tsubasa sacudiu a cabeça.

Concentrou-se na capa do bloquinho. A marca que Meiling fez na raposa começava a ganhar uma coloração avermelhada. Sem pensar mais, ele cravou a lâmina no local designado.

O golpe fez jorrar em borbotões um líquido grosso, vermelho, de cheiro ferroso e nauseante. Ele engoliu em seco. Enterro o punhal mais fundo, e então girou a lâmina. Sentiu o objeto estremecer, fazendo o cabo do punhal vibrar levemente em sua mão.

Então, o bloco se desmanchou no líquido. Foi derretendo até se misturar completamente a ele. Logo depois o liquido também evaporou, deixando para trás uma lembrança leve do seu cheiro detestável.

Tsubasa ainda olhava atônito para o balcão vazio, onde antes estivera o estranho bloco de papel. Enquanto isso, Kurogane ia com o jornal numa das mãos e a omelete na outra, em direção à sala.

– Vou jogar um pouco de água purificadora aqui– disse Meiling, tomando o punhal da mão dele. – É melhor tomar seu café longe daqui. E lembre-se de ficar atento daqui pra frente. Aquela coisa pode, e vai voltar.


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