Facilis Densensus Averno escrita por Heosphoros


Capítulo 12
Lábios Gélidos


Notas iniciais do capítulo

"Oh, noite abençoada! Temo que, por ser noite, seja apenas um sonho"

William Shakespeare



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Clary abriu os olhos. Esperava ver uma escuridão esmagadora de uma alta madrugada, mas foi surpreendida por uma luz dourada que banhava o quarto numa manhã azul. Fazia tempos que dormia por uma noite inteira, e certamente não esperou que fosse conseguir dormir depois de fazer o que fez.

Mas ela conseguiu. Teve uma noite longa, tranquila.

Isso fez com que se arrepiasse, mesmo sem estar frio.

Esfregou os olhos e ficou com a visão mais nítida, fazendo-a enxergar um pedaço de papel em cima da mesinha que, até então, permanecera despercebido.

Tremeu antes de pegá-lo. Talvez fossem mais instruções de Sebastian. Será que ela teria que matar novamente? Tentou espantar o pensamento. Ele não iria querer repetir o desastre da noite anterior... Iria?

O bilhete dizia, numa caligrafia perfeita, porém um pouco rude:

Vou te dar um descanso. Você merece.

Faça o que quiser o resto do dia; coma o que quiser, vista o que quiser, beba o que quiser. Não há Valentim para você hoje, nem irmãos mais velhos.

Do seu irmão,

Sebastian F. Morgestern.

Ela releu, e releu, e releu e seus olhos deveriam estar doloridos de tanto moverem-se por aquelas palavras maravilhosamente confusas. O que ela quisesse? Seria verdade? Poderia tirar a roupa e sair andando por aí sem se preocupar com a voz altiva e controladora do pai, ou os comentários sarcásticos de Jace, ou o olhar desaprovador de Sebastian.

Estava livre?

Na décima vez que leu o bilhete – atropelando as palavras que pareciam brilhar – seus olhos resolveram parar em uma delas. Uma única palavra. Linda. Estranha.

Era estranho ler aquilo pela caligrafia de Sebastian. Era estranho receber esse tipo de conselho de um filho de Valentim, mas ela o aceitou. Ignorando todos os tormentos que seu irmão a fez passar, ela resolveu fazer o que ele pediu e viver aquele dia como jamais viveria noventa anos.

Pulou para fora da cama e saiu correndo na direção do guarda-roupa.

Nenhuma criada foi até lá e, como sempre, ela não pediu ajuda de ninguém. Ignorou o espartilho, as calçolas e todos os artifícios de tecido que tinha que colocar em camadas. Apenas vestiu um simples vestido cor de vinho – que até estava um pouco transparente, mas ela mal se importou.

Depois disso, deixou os cabelos soltos. Os cachos escarlates estavam livres e desciam por suas costas como uma cachoeira de sangue. Ela não sentia dores de cabeça feita por presilhas, nem falta de ar que o espartilho lhe causava.

Correu, por todos os corredores da casa. Não encontrou Sebastian e presumiu que ele estivesse em seu quarto, deixando-a em paz. Clary apenas deixou seus pés passearem como pássaros que voam, chegando a deixa-los doloridos.

Então teve uma ideia.

Correu mais rápido, para fora, para o jardim.

Foi banhada por uma luz dourada pálida e pelo verde vivo. Rodou, sentiu os pés descalços na grama úmida. Então correu mais. Foi para os fundos da mansão, onde havia um pequeno lago que ela sempre sonhou em mergulhar.

"Damas não tomam banho em água corrente", Valentim dizia com o queixo erguido para o céu.

"Para o Inferno com o que as damas devem fazer", Clary respondeu em pensamento.

Tirou o vestido e entrou na água fria.

Estava congelante, o contato fazendo seus dentes baterem, mas ela riu. Gargalhou. Gritou. Mergulhou até o fundo e abriu os olhos embaixo d'água, vendo pequenos peixes dourados atravessando sua visão como moedas compridas.

Ali, não existia sangue.

Não existia Hodge Starkweather.

Não existia Valentim.

Nem mesmo Jace.

Era só ela.

Submergiu e levou um susto.

Sebastian estava sentado na borda do lago, os cabelos brancos bagunçados e um sorriso atravessado no rosto. Um sorriso? Sebastian nunca sorria. Nunca. Ela ficou ali, fitando-o, sem saber se era mesmo verdade o que estava acontecendo. Até então, tudo estava tão perfeito que só podia ser sonho.

Seria real mesmo?

Ele tinha covinhas, foi só o que sua mente conseguiu responder.

– Imaginei que viria para cá - ele disse, olhando nos olhos dela - não sabia que te conhecia tanto.

Ela não sabia bem o que dizer.

– Bom... nunca imaginei que me daria um dia de folga - admitiu - gostaria de te conhecer assim.

Sebastian deu de ombros.

– Sou um merda! - disse, simplesmente - pessoas como eu tem o costume de não deixar ninguém conhecê-las.

Clary olhou para baixo, onde só a água transparente escondia seu corpo. Depois olhou para Sebastian, cujo sorriso desaparecia e os olhos negros brilhavam com uma tristeza desesperadora. Era o dia de folga dela. Deles. Não custava nada agir como agiam quando eram pequenos, quando Jace e ela tomaram banho de macarrão pelados, quando Sebastian teve que dar um banho de verdade nela depois disso.

Depois de milhões de pensamentos confusos, ela disse:

– Entra aqui - chamou - a água está congelante, mas acho que Valentim te deve um banho de rio. Concorda?

Ele olhou para ela. O brilho nos olhos mudou, passando para divertimento. Ele tirou a camisa (só a camisa) e mergulhou como uma bomba dentro d'água, abraçando os próprios joelhos e fechando os olhos com força.

Sebastian surgiu ao lado dela.

– Congelante é um eufemismo, suponho - falou, e sorria tanto que mal parecia Sebastian Morgestern.

Ela riu.

– Sim, foi um eufemismo!

Ele parou um momento.

– Você não está com frio, não? - perguntou.

– Depende... Se eu fizer isso aqui - e jogou um jato de água no rosto do irmão - aí fica tudo pior.

Ele piscou o olho várias vezes, gargalhando como nunca havia feito, e ela não conseguia controlar as próprias bochechas que doíam. Ela nunca havia notado, mas ele parecia um anjo. Talvez tanto quanto Jace parecia, com aqueles cabelos dourados. Mas, de certa forma, era um anjo mais belo, o de Sebastian. Pois era raro.

– Vai ter revanche, Clarissa! - ele disse.

Ela riu alto.

– Então vem me pegar!

Clary mergulhou e foi nadando embaixo da água como se fosse uma sereia dos livros que Jocelyn lia para ela. Foi nadando rápido para longe do irmão, quando ao mesmo tempo queria que ele a alcançasse. Era estranho, voltar a ser criança de um jeito tão diferente. Tão feliz.

Ela submergiu, pois precisava de ar. Quando não viu Sebastian franziu o cenho e se preocupou de tudo aquilo ter sido de fato sonho, que ele nunca havia sorrido para ela. Nunca havia brincado com ela.

Então por trás, alguém a abraçou, envolvendo sua cintura. Ela girou e viu os olhos do irmão e seus lábios sorrindo. Eles estavam abraçados fortemente, os corpos colados, e os braços dela em torno do pescoço dele. A água não parecia gelada.

– Te peguei - ele sussurrou.

Ela sorriu.

– Que droga - sussurrou de volta.

A respiração dele estava próxima, gelada. Os narizes dos dois quase se tocavam e ela sentia o coração dele batendo tão forte e tão rápido, mas ao mesmo tempo em sintonia com o dela. Naquele momento, algo totalmente estranho ocorreu. Ela olhou para ele, para suas covinhas, seus olhos negros, seus cabelos brancos e não conseguiu ver um irmão. Tudo parou de existir. Como antes.

Sem Valentim, sem Jocelyn, sem Jace.

Só os dois.

Nem precisaram se mover muito, para fazer o que o destino os empurrava para fazer. Os corpos estavam febris um no outro, a sensação ardia dentro dela. Os lábios dele alcançaram os dela, gélidos e macios. Ela não conseguiu recuar. Não havia nada que lhe dissesse para recuar. Os dedos dela agarraram a raiz dos cabelos dele e a língua dela se entrelaçou na dele.

Não conseguia parar. Nem deveria. Todos os movimentos dos dois, cada toque das mãos dele sobre a cintura dela, pareciam conectados. Ela se sentiu parte dele, e seus olhos fechados quase que enxergavam os dois. Abraçados no lago, colados.

E finalmente pertenciam a algum lugar.

Então ela parou. Uma imagem surgiu na sua mente. O rosto do pai, o rosto de Jace. O mesmo erro que se repetia, pior, maior. Não havia justificativa para o quão errado era o que estavam fazendo.

E, mesmo contra a vontade, os corpos dos dois se descolaram. Ela sentiu-se fria, vazia, mas inclinou-se para colar os lábios nos de Sebastian uma última vez antes de fugir. Nadou o mais rápido que conseguia, pegou o vestido e correu para casa.

Mesmo quando trancou-se no quarto e ficou sozinha, o corpo de Clary tremia.

Seus lábios formigavam.


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Notas finais do capítulo

Vocês pediram Clastian, então eu lhes dei Clastian!!! É um presente depois desse tempo que o site ficou off.

Gostaria de agradecer muuuuuuuuito a recomendação da Letícia! Brigada lindaaaa, suas palavras ficam perfeitas do lado da capa.