Fire & Desires escrita por Pear Phone


Capítulo 26
You stole my Star


Notas iniciais do capítulo

Oi. Eu sei que demorei. Oi de novo. Eu sei que demorei de novo. Mas isso aqui, essa fanfic aqui, é a segunda coisa mais importante pra mim enquanto eu não conseguir concluir. A primeira é ler. Legenda: reli isso cinquenta vezes e editei mil. Eu não sei por que gosto de concluir as coisas quando começo, mas comecei o capítulo vinte e seis e jurei a mim mesma que dele continuaria até o último. Agora, quando escrevo essa nota, acabei de concluir o vinte e seis. Eu deveria postar, sim. Mas não tenho internet agora. E por isso aproveitarei pra escrever o restante. É certo que, se eu já tinha planejado as coisas todas do fim desde praticamente o capítulo um e depois no vinte e dois, e nele os leitores podem perceber uma prévia de como seria esse capítulo aqui, então enrolei porque quis. Mas não, não é certo. Não imaginem isso, quando eu fiz todo o possível pras palavras dizerem com precisão tudo que eu queria que não passasse por despercebido dos meus planejamentos. Estou agradecidíssima pela recomendação da minha doce Karla Monique. Esse capítulo é kinda Drunk in Love e lembrei logo dela. Te amo, Karla. A Karla me ajudou bastante. Não chamem ela de Karla. Aliás, isso me lembra que Jéssica me ajudou pra colocar Vênus dentro do enredo e eu achei que ficou bom demais. Obrigada, Jéssica. Ela escreve Hidden, que é uma fic Jathan aqui no Nyah, se vocês quiserem ler, mas não tô sendo paga então vão procurar o link caso achem conveniente. Enfim, boa leitura, amores. Eu amo vocês.



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Por quantas nuvens você já caminhou?

Por quantos oceanos você já flutuou?

Por quantas tempestades você já passou?

A última, uma frase propriamente dita pelo clone do pianista que me carregava até, qualquer um podia se aperceber antes, o piano. Instrumentos prateados, sim, a eles era concedida a permissão de existir aos milhões sem que a única alternativa de serem pouco variáveis fosse a trágica clonagem.

Cheiro de cemitério, ar de cemitério, som de cemitério, túmulos que não precisavam ser bem descritos para já demonstrarem instantaneamente sua relação com cemitérios.

Era o cemitério.

Aliás, uma observação útil: eu poderia simplesmente ter dito que "foi" o cemitério, mas isso representaria algo que começou e acabou. E os "eras" podem voltar a ser a qualquer instante, na verdade.

Sobre os três porquês momentaneamente indecisos, o que não faz referência a nada, precisamente, já que porquês sempre estão requerendo questionar algo ou explicar com alguma afirmação: não eram versos, eram perguntas que martelavam forte e indelicadamente. Que despertavam uma dor fenomenal pelos bons dois meses, eu acho, que passei dando atenção a coisas que não queria dar. A pensamentos sem vestígio algum de eficiência e sensatez. E era realmente como um velório, em que numerosos (na verdade, poucos) bons meses passavam sem um intervalo de segundos bem programado, bem na minha frente, bem em cima, ao redor, em todo o canto dos meus olhos... bem ali. Ali, onde eu e ele estávamos, e a coisa toda parecia estar sendo enterrada previamente quando o clone se precipitou para as grades contornando o portão semiaberto, automaticamente me inclinando na mesma direção.

— Dá pra você empurrar?

— Empurrar o quê?

— O portão, Sam... — o qual estava quase batendo na ponta do meu nariz, mas descartei essa observação. Havia muito a destacar.

Se ele dissesse algum sinônimo, algo como colidir... eu realmente não daria conta do recado. Mas houve silêncio, ao passo que ele pareceu assustado e talvez tivesse pensado brevemente no caso de um desmaio. Porque, sim, meus pés ficaram acima do chão durante quase o longo caminho todo.

— Você é cega.

Aquilo funcionou como um insulto ao meu estado lógico permanente, e não só ao fato de eu me apresentar bêbada em justa ocasião.

— Ah, mas... eu... e por que não pode abrir?

Ele hesitou, percebi que dei um fim a seu desespero, mostrando a indignação — quer dizer, a língua — com sua falta de paciência repentina.

— Acontece que minhas mãos estão ocupadas, garota. Percebe isso? Não, imagino que você pense que meus pés estão livres, e a solidariedade que se foda...

— É.

— É?

Ele começou com aquela coisa irritante de reproduzir todos os sons que eu fazia, acrescentando um tom de interrogação na voz.

Eu empurrei o portão e ri um pouco, porque não o persuadiria. Quem tinha se oferecido para me carregar? Ele. E pareceu meio estranho quando precisou me largar num canto daquele terreno escuro. Porque era estranho quando a gente meio que se abraçava, era desengonçado e pouco planejado. Mas era pior se fazíamos o oposto.

Porém, contudo, todavia, não obstante, apesar das evidências, ele simplesmente não se movimentou após eu abrir o portão, e não fazia sentido ter ordenado que eu abrisse se não seguiríamos a lógica menos difícil, decididamente, com a qual já tinha me deparado naquela noite alvoroçada. Estava parada, também, porque meus braços ainda seguravam desconfortavelmente seu pescoço e não surtia nenhum efeito ficar enterrada na camisa cheirosa dele, da qual eu já tinha suspeitado antes exalar essência de alguma coisa tropical e eu tinha certeza de que seria o último detalhe não-salvo importante que desejaria lembrar no dia seguinte, mesmo abandonando sequer raciocínio por aquelas horas, de forma que nada restava senão usar os meus próprios pés para me locomover rápida e precariamente de encontro a qualquer outra passagem ou saída daquele cemitério que, mesmo sem ser reconhecido por mim de momento, trazia memórias muito incômodas.

Eu fugiria, por fim. Maldito seja, havia algo obstruindo meus planos. E ainda era a silhueta-propensa-a-consequências-inconvenientes.

— Ei, eu preciso...

— O quê? Pensei que já tivesse dormido... quase não ouvi você respirar — ele disse tão baixo que pareceu normal estar parado por tanto tempo, tomado por inaudível o soar de qualquer ruído vindo dele.

Respirar pouco... isso poderia significar que eu tivesse morrido. Mas, caso fosse isso, nem sequer respiraria, porque meus pulmões estariam inviáveis.

— Tá, tá. Dá pra você... me deixar respirar, então? — indaguei, com a voz consideravelmente embargada.

— Vou pensar.

Não precisou pensar, porque comecei a me debater contra seu abdômen. Pareceu ser suficiente para que eu me soltasse dele, a princípio, e não houve outra manifestação de fúria ou violência em resposta.

— Se queria que eu te soltasse esse tempo todo, era só pedir. Agora, sabe que o céu não promete ficar muito aberto a uma manhã de sol exuberante no que podemos se referir a "amanhã" genericamente, porque já é de madrugada e as nuvens...

Eram nuvens cinzas, não brancas. Aquilo, a auto distração dele, era a oportunidade perfeita que encontrei para correr numa direção qualquer, a tal que infelizmente não colaborou com meus planos muito mal presumidos de fugir (se era impossível fugir quando eu corria exatamente pelo chão cercado pelas grades) para dentro daquele portão empurrado, o que garantia que ele me procurasse um tempinho depois do monólogo involuntário. E que, provavelmente, explodisse.

Eu tropecei em plantas com espinhos, com cheiro de produto. Hortênsias, margaridas, tulipas, bromélias... não era nada disso, não era um canteiro, não era colorido, nada estava espaçado nem precisamente cuidado. Além das protuberâncias espinhosas, arbustos e um monte de folhas surgiam balançando em volta do lugar para onde eu acabei desviando, tendo acontecido o "acidente" rápido demais, num ritmo em que eu tive uma leve impressão que aquelas flores nunca poderiam ser exterminadas. Lidava com elas como se fossem pragas, e isso não se devia à minha visão turva e moderada. Rosas, pois é, eram rosas que não cheiravam melhor que a camisa na qual eu me debruçava havia instantes, e uma delas estava lutando contra a morte dentro do vaso com água em cima da minha estante. Como poderia me esquecer!

Corrigindo, é evidente que a frase se aplicava num sentido contrário... Afinal, como poderia me lembrar!

Uma sequência de túmulos me encarava disposta lateralmente. Às minhas costas, um cômodo bastante familiar.

Não era possível se livrar dos espinhos com facilidade ali, e nem consegui ver com clareza o horizonte, por isso não me pus de pé. Foram quase quinze minutos, segundo meus cálculos inexatos, que esperei me encontrarem, acreditando ainda estar em qualquer bosque ou lugar que não fosse a definição de onde realmente estava. Milhas e milhas tinham sido percorridas, mas isso era uma conclusão que havia de ser refeita pela mente dali até estar finalmente sã.

Por alguns segundos, me imaginei no céu, sendo Vênus. Como um planeta, tinha capacidade de me observar ao longe e de dizer o que eu mesma sentia, pretendia, vivia e esperava. O que me veio em mente, contradizendo a esperança passada, foi quem tinha me levado até ali. Mas não adiantava. Estrelas, passarinhos e sons abafados ecoavam sem haver um rastro sequer deles no mundo real.

Era mais provável que eu continuasse estirada, sobrevoada por morcegos, e não que acordasse numa floresta e deparasse com centenas de animais me conduzindo até uma passagem sinistra entre as árvores que me levasse até a casa dos sete anões. Sem falar que, por culpa do fenômeno natural mais conhecido como várias-nuvens-cinzas-contornando-e-atrapalhando-o-resto-da-imensidão, a claridade externa não seria favorável.

Eu adormeceria ali, largada, se não tivesse toda uma certeza que enchia meu peito sobre ser encontrada. A procedência dela, por outro lado, tão obscura quanto o céu sob o qual eu observava a grama.

Não demorou muito, um braço me puxou com força, a qual exigia um quê de arrogância.

Era ele.

— Levanta logo, tem espinhos aí — ressaltou, mesmo que eu já me levantasse. Parei quando ajoelhei, porque alguma parte de mim doía. — O que foi, Sam? Você não se manca?

Cambaleei e fiquei de pé, ignorando a insinuação. Não só porque me permiti deixar passar sua entonação, mas sim porque meu braço foi agarrado outra vez.

— Eu... não... — Mas aquele início de embromação não era o bastante, as sobrancelhas se abaixaram e enrugaram acima dos olhos frios como nunca antes transpareceram na minha frente, e eu sentia a raiva dele fluir pelas minhas veias. Pouco justificável...

— Eu mandei você ficar perto de mim, Sam!

— Não mandou, não!

Ele me lançou um olhar muito feio de novo e largou meu braço. Eu não consegui me equilibrar o suficiente, então caí de joelhos perto das roseiras, ainda na direção de todas aquelas plantas e ao lado da fileira de túmulos. Uma luz vermelha se instalava pela região do meu braço, latejando como se piscasse... e eu entendi que era algo mais parecido com uma sombra.

— Você... olha, isso é uma mancha...

Ele estreitou o olhar com força, mas não com a mesma força que tinha me machucado.

— Eu...

— Isso tá doendo pra caralho!

O semblante dele parou de enrugar, estreitar e transparecer raiva e insatisfação. Seus castanhos quase perfuraram a mancha avermelhada que eu tinha no braço, já parando de latejar profundamente e se revelar com tanto exagero quanto antes. Estendeu a mão para que eu me levantasse, mas não agarrei.

— Por que você fez...

— Me desculpa.

— Não!

Dois segundos. Evitei olhá-lo e peguei um impulso com muita falta de sucesso.

— Eu vou embora e você vai ficar aqui sem mim — ameaçou.

— Sai logo.

E obedeceu, rumando para uma direção obscura que eu considerava ser destinada aos fundos. Mas girou nos calcanhares e suspirou, voltando aos pouquinhos.

A-r-r-e-p-e-n-d-i-m-e-n-t-o.

— Sam, segura a minha mão de uma-

— Não... — respondi.

— Cê tá falando sério?

— Não tô falando nada, eu só nego... — retruquei, mas não consegui forjar um sorriso. Um sorriso sincero já tinha se desenhado no meu rosto antes que eu mandasse meu cérebro providenciar isso.

Pelo tempinho que agarrei a mão dele, sua força pareceu bem mais... delicada do que antes.

O sorriso sumiu.

Soltei sua mão, que era meio que duas vezes a minha.

Ele me manteve equilibrada sobre os pés, mas isso não significa que aceitei rápido suas desculpas, ou aquilo que intitulava como desculpas... Talvez o babaca estivesse aguardando que eu armasse um barraco assistido pelo vento, começasse um escândalo, desse brecha para um drama atenuado pela dor... e não vinha do braço, exatamente... era mais fundo, mais forte, mais atenuado ainda.

Silêncio de cemitério, o pior. Sempre vinha acompanhado de mágoa, não desempenhava o papel de uma simples hesitação.

Ouvi algo se quebrar, e era exatamente o silêncio, mas não veio acompanhado de vidro estraçalhado no piso ou qualquer outro som semelhante. Mais desculpas. E me irritavam tanto! Se um mosquito ficasse zumbindo no seu ouvido durante a noite toda, a raiva ainda não se aproximaria nem um pouco da minha sensação de que o mataria. E que haveria sangue por todo o lado, minhas digitais reconhecíveis o bastante na estaca.

— Te desculpar, é? Então é tão fácil assim pra você?

Eu tive vontade de tirar a blusa naquela hora, porque o ódio nunca foi frio, olhando por esse lado. O ódio é quente, ele ferve. O ódio é o fogo.

Uma fração de segundo.

— Me perdoa — ele repetiu de novo, olhando de esguelha para o meu braço sem esconder a culpa devidamente. Tentei experimentar a arte de ver através de pessoas naquela hora.

Ele se curvou ligeiramente.

Estive imaginando uma andorinha no horizonte, bem perto do vulto pálido e turvo lá no alto, e aquilo, com certeza, foi uma chance.

A boca dele estava muito perto, depois que segundos multiplicaram-se em minutos. Foi bem naquela fraçãozinha mínima de segundo, tão pequena, tão minúscula, tão moderada, tão limitada, tão diminuta... enfim, ali não restaram dúvidas de que pianistas nunca seriam facilmente clonados. E nunca, por sinal, parecia ser uma palavra tão forte quanto nós dois.

— Chega aqui, Sam.

— Eu já tô aqui.

— Mais... perto. — Ele afastou uma mecha do meu cabelo e depois disse, certo de que estava perto o suficiente: — Pode fazer tudo que quiser comigo agora, meu amor.

— Não... tá... mais... doendo... — O intervalo entre essas palavras era realmente bem maior do que aquele espaço que observei entre os arbustos no entorno do terreno, usando uma porcentagem reduzida da minha visão periférica aturdida.

— Eu ia dizer outra coisa, mas deixa pra lá — o pianista concluiu. Afinal, que outra pessoa me levaria até um cemitério e me chamaria de amor? Quem além dele, O Pianista? É certo que o inglês das pessoas poderia ser coerente assim, mas o tom daquela voz ao pronunciar os pronomes possessivos seguidos de substantivos, particularmente, era algo que a bebida não podia apagar dos meus ouvidos se eles tornassem a escutar.

E tornaram a escutar. Isso, sim, podia se justificar com uma precisão eficaz.

Andei em círculos numa habilidade estranhamente maior. Apesar disso, ainda estava andando em círculos.

— Para. Com. Isso.

— Você não manda em mim.

— Ah, Sam... esperava mais de alguém tão livre.

Como se falar de espermatozoides vencendo a batalha e responder uma pergunta de "o que aconteceu" com "aconteceu você" não fosse mais clichê do que o Universo. E o pianista seguia intervindo para que as voltas não completassem todos os trezentos e sessenta graus. Aquilo me tirou do sério, de novo.

— Pera, Sam, você quer mesmo ver tudo girando? — ele interrompeu minha tonteira.

— Eu não era o seu amor?

— Não. Você é — respondeu, sorrindo em seguida. O tipo de sorriso que tinha sido formado conforme as intenções dele, no mínimo.

Pisquei os olhos, quer dizer, pestanejei.

Meu semblante ficou impassível.

Não sorri de volta.

Não podia sorrir.

Não dava...

Não, Vênus não estava mais ali como estivera.

Não, eu não era Vênus.

Não, eu não sabia se era hora de Vênus brilhar ou não, do alvorecer, do crepúsculo...

Definitivamente não, se sentia algo nos meus lábios, algo que me impedia de afastá-los e fazer um simples sorriso exprimir minha satisfação.

Não sabia de onde tinha vindo aquela satisfação.

Não, não parecia relevante.

Era a boca dele... continuando a contrariar colisões letais... não era um beijo, não chegou a ser.

Foi só a boca dele. E depois foi ele, me abraçando, se afastando e deixando que o estimado ódio correndo pelas minhas veias se esvaísse e outra coisa passasse a administrar e monopolizar o líquido vermelho condutor da força vital dos meus oceanos, meu coração sendo completamente dele.

O pianista me abraçou e em seu olhar não havia nenhum vestígio, por menor que fosse, de desejo.

Ainda não.

— Eu preciso deixar claro antes que você pergunte, Sam: eu te trouxe aqui porque é seguro — mas interrompeu o próprio esclarecimento para acrescentar que isso só seria possível caso eu me mantivesse ao lado dele, porque várias coisas ali podiam me fazer mal mesmo que ninguém carregasse uma foice e andasse mecanicamente pelo cemitério, buscando cheiro de carne humana; que a vida não era nada muito fantástico ou relacionado com vampiros e programas de TV banais. Como se eu fosse a filha dele prestes a enfrentar o primeiro dia de aula... do primário.

— E você, por acaso, confia em mim? — perguntei, erguendo as sobrancelhas.
— Claro.

É impossível chegar a uma conclusão sobre a forma que ele se permitiu soltar um "claro" tão afirmativo. A palavra "claro" tinha um efeito tão forte quanto "nunca", resplandecia quão iluminada era a ideia de seu fenômeno, mesmo que outrora se encaixesse apenas numa afirmação. Se algum fulano discordar disso, então mande acordar de manhã, às seis, e acender uma lâmpada muito, muito clara. A mais clara que tiver, após escancarar as cortinas. Mande dizer se não vai ser quase flamejante, se não vai ser forte, se não vai pesar sua visão monstruosamente. Se não vai tornar ela mais turva ainda, se não vai atrasar seu raciocínio, porque toda a claridade possível já passeia pela atmosfera além da sua mente.

Fazia um sentido tão óbvio.

E mais, sem dúvida, muito mais coisas além de lâmpadas resplandecem.

Eu realmente não sabia quem era, de verdade, o homem responsável por me arrastar até o cemitério naquele dia. Não sabia se era o mesmo que tinha se assustado tanto com a possibilidade de uma alma viva ter consciência do lugar onde se encontrava fisicamente, mas que parecia ter uma história bem mais recheada do que a minha psicologicamente. Se ele pudesse sentar ali, em frente ao piano, e contar sua história do início ao fim como eu tinha feito tempos atrás, quando omiti o bastante para poupá-lo de ler cada milímetro do meu passado conturbado, seria extremo para ele. Eu sabia. Hoje tenho toda a certeza de que ele estava prestes a fazer isso àquela noite, visto que eu não lembraria de quase nada no dia seguinte.

Porque, de fato, eu não deveria lembrar, segundo minha suposição de que o olhar de culpa antes lançado para o meu braço não estava abrangendo apenas a mancha avermelhada.

O Universo já podia ter uma noção de qual foi o propósito.

Se eu, Samantha Puckett, queria ouvir acordes e lamentos? Não. Não precisava de respostas, e sim de mais perguntas. Aquela adrenalina incontrolável persistia em despertar em mim algo não experimentado desde horas antecedentes.

Provocação.

— Tem uma coisa que eu sei sobre você.

Andávamos a passos lentos, meus sapatos afundando na grama. Estive (e por muito tempo reprimi esse sentimento) sentindo vontade de tirá-los.

— E o que é que você não sabe? — perguntei.

— Não tinha certeza se você tinha bebido tanto a ponto de não lembrar meu nome, mas depois tive certeza. E agora eu sei uma coisa sobre você que quer dizer que você sabe o suficiente sobre mim pra saber quem eu sou.

— Sim — concordei, mas só fiquei olhando os lábios dele mexendo, quase alcançando uma velocidade relâmpago. Ele falou tudo como se estivesse lendo um papel comprido, me estudando como se eu fosse uma análise de laboratório, gesticulando como se o vento fosse um quadro negro. — Mas, shh, eu tô pensando.

As três analogias não se interligavam.

Mesmo estando completamente transtornada e risonha, pensei em momento real o que aqui segue: talvez o Derick tivesse razão. Talvez ele fosse um fugitivo imundo, não custava nada perguntar...

— Pianista — eu parei de súbito. — Você é... um f-fugitivo?

Franziu a testa.

— Fugitivo?

— Não, é que ele disse... ele... pensei que você fosse ele, sabe, antes de...

Foi só aí que ficou estático, e segurou meus pulsos.

— O quê... — a voz dele soava num tom grave. — Com quem você passou a noite ontem, Sam?

— Você ouviu o que você ouviu, porra! — gritei, soltando meu pulso dos dedos dele sem quebrar o contato visual arriscado. — Mas é verdade que é um f-fugitivo ou...

— Me diz. Com quem. Você passou. A noite.

Nego que tenha negado, só fiquei de costas por um instante, observando o mato.

 

Ele enfiou a mão dentro da minha blusa como se adivinhasse que eu queria tirá-la um tempinho antes.

Ele soltou meus fios de cabelo e ergueu minha cabeça, o polegar no meu queixo, a outra mão enfiada no meu sutiã. Um vento cortante passou ali; todos os oceanos tem correntes que oscilam de temperatura cruzando trópicos, linhas, meridianos... e o nosso estava tão abundante de águas ferventes que houve vapor por todos os cantos, vapor mais espesso que nuvens.

"...você nem consegue..."

Fechei os olhos. A mão ia se abrindo e fechando, os dedos iam se apertando e afastando.

"...lembrar o que aconteceu naquele dia..."

Tão. Lento.

"...ou consegue, Sam?"

Não, não conseguia.

E indicou com a cabeça o lugar onde estava o piano, os dedos ainda em movimento.

Eu podia falar, ele podia finalmente saber o que tinha acontecido... mas não conseguia pronunciar uma interjeição, menor que fosse ela... porque ele começou a chupar meu pescoço... e minha mão arrastou a dele pela minha barriga até abaixo da cintura...

Não saberia nem com que intenção tinha sido sequestrada, nem por que céus, infernos, purgatórios e paraísos o pianista tinha apertado tanto as cordas... aquilo soava mais pervertido do que tudo que ele jamais tinha contado... mas aquilo nunca me impediria de se desvencilhar dele, mesmo desenfreadamente louco... mesmo a mão dele estando enfiada na minha calça agora...

"...você não vai a lugar nenhum, não..."

Ele disse aquilo quase encostando os lábios no meu pescoço, depois chupou de novo, com mais força, e tirou minha jaqueta — a qual parecia estar atrapalhando havia muito tempo — do caminho, amarrando as mangas nos meus pulsos, de forma que se apoiassem nas minhas costas.

"...você é minha, fica aqui..."

Ouvindo isso, eu o chamei de volta. Sem medo que aquilo atrapalhasse o erotismo. Enquanto desatava o nó que ele tinha feito com as mangas não muito longas da jaqueta, deixando-a cair na grama. E depois, subindo os braços devagar, enterrei minhas unhas nele.

"...onde você mandou ele te chupar ontem, Sam?"

Ele repetiu as perguntas com a voz rouca, mordendo meu pescoço, garantindo que ia fazer melhor (melhor do que "ele") e que ia fazer tudo que eu pedisse, esforçando-se para não ser agressivo.

Mas acabou sendo, felizmente, na parte que beneficiava nós dois.

Desconsiderando meus planos, o trouxe para mais perto, segurando-o pela nuca e inspirando.

Não queria gozar igual uma idiota antes de ser tocada. Isso era uma maldita e crítica possibilidade. E, sim, foi só aí que estudei a ideia brilhante. Arrumei novamente nos ombros a jaqueta que ele tinha me ajudado a vestir no apartamento e o beijei. Um beijo meio difícil de detalhar, é complicado descrever como adensou à medida que as lápides brilhavam, bem, de uma forma legível. Foi violento, porque nós dois estávamos alterados por alguma razão. Álcool e ciúme, respectivamente. Criancice. Nos deixamos sucumbir. Forte, prolongado. E um pouco torturante, visto que era eu quem o arrastava para o fim.

Entrei no cômodo empoeirado e sombrio na velocidade da luz, pouco antes do pianista entrar, e com isso meus braços percorreram o instrumento prateado, meus cotovelos dobrados se desdobraram e o resto do meu corpo os acompanhou para que eu me equilibrasse estranhamente bem, assentada no piano. Os sapatos dançando para frente e para trás, mas decidi rápido e não fiquei olhando para eles como se todos os dias pudesse balançá-los daquele jeito em cima de um piano enorme.

Desamarrei os cadarços.

Quando vi a silhueta-propensa-a-consequências-inconvenientes surgir no vão da porta, houve um silêncio assustador, e só aí meus pés pareceram interessantes o suficiente para que meu olhar fosse desviado.

Mordi meus lábios inchados e absurdamente quentes, passei a língua por eles, joguei meus cabelos — alguns fios tragicamente embolados e a grande maioria esvoaçando — para trás. Sentia meu pescoço arder e meus tornozelos tremerem.
Os tênis pararam de dançar instintivamente, como se em mim houvesse um botão a ser acionado no objetivo de reverter os movimentos. E um tipo de nevoeiro que pareceu ter descido repentinamente do céu cobriu nossas cabeças, tornando o ambiente pesado. Pesado não significava ruim, não...

O par de tênis cairia por ali, junto com a minha blusa.

Uma exclamação, interrogação, indignação.

Olhei para os meus pés, mas ele, não.

Porque eu estava ali, vestindo uma calça jeans desabotoada, em cima da garota dele. Aquilo, sim, era provocar.

Falta de ar.

Quando o ar falta "despropositalmente", seus pulmões parecem se reduzir a pó e todo o resto comprime o seu ser. É como se cadeados trancassem suas circulações, seus músculos e todo o resto. Você não tem forças para fungar, soluçar ou sentir calafrios; tudo acaba e, certas vezes, suas veias diluem as sensações que alguém respirando normalmente teria.

Quando o ar falta propositalmente, não é bem uma falta. Acontece de repente. É bom. É algo que, de todo jeito, desacelera seus movimentos... desacelera seus átomos que formam moléculas que formam organelas que formam células que formam tecidos que formam órgãos que formam sistemas que formam organismos, algo assim. Ao infinito. Mas fica tudo bem, porque a última coisa que você quer é que acelere. Essa sensação diluída pelas suas veias, os calafrios... tudo continua, porque de certa forma alguém repõe toda essa energia em você. Suas partículas, das maiores às menores (e vice-versa), sobrevivem com as de outra pessoa. E você não se preocupa com respirar ou não, é algo que qualquer um pode fazer o tempo todo... é algo que você fez sem ter uma razão nos últimos dezessete anos. Finalmente tem uma para querer não fazer.

I-r-o-n-i-a.

E isso tudo, isso não importava com a gente. A gente: eu e o pianista. Foda-se isso tudo. Porque é horrível entender que, mesmo vencendo várias obstruções, você cedeu a uma vontade. Ceder é ruim, faz com que seu coração se fragilize. Cá entre nós, você tem de aprender a conviver com o fato de que tem um coração, e não uma placa de pedra. Que, coincidentemente, pedras sofrem erosão. Podem virar areia. Tenho certeza de que você não vai querer morrer com areia no seu peito, fazendo a falta de ar desproposital carregar, dilacerar sua existência... afastar sua alma. E que Vênus não está no céu o tempo todo, que Vênus pode estar na terra. Que alguém pode ter roubado sua estrela, que estrelas são metafóricas. Se alguém teve a audácia de roubar qualquer uma delas, provavelmente nunca vai devolvê-las.

Estrelas não são areia. Estrelas são estruturas astronômicas. Corpos em que, como no seu, há uma explosão de reações.

E daí que o pianista podia me tocar, se podia tocar o instrumento? Ela era música, e eu não. E tocava, pressionando suas teclas, mais ágil do que nunca. Daquele momento em diante, ele tinha as minhas teclas também.

Essa espécie de inveja da música sempre existiria... porque a música, com toda a certeza, era a única com a qual ele podia ser ele mesmo. Houvesse teclas ou não, houvesse vida ou não, houvesse morte ou não. Houvesse beijos ou não. Houvesse amor ou não. Houvesse um sentimento perdidamente, ridiculamente apaixonado ou não.

Houvesse sexo ou não.

Os beijos dele não eram encenados. Certo, qualquer beijo não é encenado se for praticado fora de um teatro. Mas os beijos dele, e eu falo por pura e insistente experiência, não faziam querer que a intensidade obedecesse um padrão encenado: nada que oscilasse como a temperatura de um oceano e as oitavas de um piano, mesmo isso aí soando tão bonito. A beleza e a magnitude ficavam para as câmeras registrarem, e eu duvido que tivesse alguma no mesmo lugar que nós.

Devo dizer a você que: nem seus abraços pareciam ser encenados. E, para mim, eram bem mais constrangedores.

Devo voltar a discordar com: estar perdidamente, ridiculamente apaixonada por ele. Era impossível. Ninguém se perdia nele por muito tempo. É certo que eu me perdi, mas a coisa que mais me seduzia nele não era bem isso, era quase isso — sua força de distração.

Por exemplo, se o oceano estivesse pintado de laranja escuro e o céu, de lilás, e as outras galáxias se unissem para uma pintura majestosa na imensidão, que só aconteceria uma vez na vida, e se meu pensamento estivesse totalmente ocupado por esse cenário primaveril tão longe do habitual fantasmagórico e deprimente... bem, eu não pararia para escutar ou entender o que o pianista estava dizendo, mas pararia para, naturalmente, admirar o que ele estava dizendo e sentir vontade de guardar suas palavras. Precisaria fazer isso antes do fenômeno se esvair.

A boca dele, claro, parecia bastante atraente enquanto proferia o nada que eu adorava escutar.

Talvez ele só me distraísse porque me amava; tinha certeza de que eu, pelo menos, não o amava só porque ele me distraía, e pude agravar ainda mais a minha certeza.

Voltou a estar escuro lá dentro. Parecia estar frio antes, lá fora. Mas esquentou do momento que segurou minhas pernas ao seu redor em diante. Por um momento eu abandonei meus planos, queria só poder dormir admirando as estrelas com ele, e foi quando deparei com seus castanhos outra vez. Alternativa idiota e pouco produtiva, essa. Nós ficamos só se olhando por muito tempo — de um jeito que lembrava terapia — numa distância de pelo menos meio centímetro. Muita coisa podia ter acontecido, sem preliminares. Não falávamos, aliás. E o meio centímetro restante desapareceu quando o pianista acabou com o que sobrava da minha roupa, enquanto me tirava do sério pela quadragésima vez, e meus pés ficaram uma boa distância acima do chão. Desabotoei seja lá o que era aquilo cheio de botões que ele estava usando, cheirando a camisa e depois esquecendo rapidamente dela. Meu corpo na superfície sólida e prateada, onde aquela falta de ar, perto de absolutamente proposital, seguiu preenchendo minha circulação deliciosamente.

Perigosamente.

O momento em que mais fiquei receosa de que ele se culpasse, e é óbvio, aconteceu quando lembrei de partículas desagregadas do meu passado. Quando senti queimar, com mais frequência e fervor, cada lugar onde a ponta de uma lâmina já tinha entrado e saído, num ato considerado corajoso por mim anos e anos atrás. Que, mesmo sendo oculto pelas sombras, parecia indescritivelmente vergonhoso.

Eu tinha todas aquelas marcas estúpidas, imprestáveis. E me faziam soar como uma vagabunda inconsequente. Meu corpo era feito delas, e todas significavam dor. Apenas dor. Não havia maquiagem cobrindo as cicatrizes de quando eu me mutilava, e podiam estar espalhadas dos lugares mais óbvios aos menos óbvios, sem exceção. Aquelas marcas cintilavam num ritmo frenético.

Depois daquela noite, uma certeza se evidenciou ainda mais perante outras certezas dispersas ao longo da atmosfera de cemitério, a que acabou desencadeando um aroma além do fúnebre pelas próximas eternidades, toda vez que cruzávamos o portão. Toda vez que empurrávamos o portão.

Ele finalmente descobriu que não podia fazer aquelas marcas sumirem dali, mas que podia substituí-las por outras. Outras que só ele sabia fazer. E havia um gosto. Não era como sentir um prazer finito, mesmo que fosse essa a intenção do prazer sexual.

E também não era infinito, é só que eu posso detalhar muito bem o que senti:

Café.

Na verdade, era mais forte, menos adocicado. Mais amargo, mais atenuado. Misterioso. Aquilo era realmente extasiante. E ficava ainda mais, trazendo consigo uma vertigem ameaçadoramente boa.

Bem diferente de quando você não consegue mais contar quantas doses engoliu em uma hora.

Bem diferente de quando alguém interrompe suas voltas antes de atingirem os trezentos e sessenta graus.


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Notas finais do capítulo

:)



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