Fire & Desires escrita por Pear Phone


Capítulo 19
Oceans


Notas iniciais do capítulo

Não diria que é um bônus, não se enganem.
Gostaria de agradecer por todos os reviews, de coração, e pelas recomendações e pelos favoritos, de coração.
Eu recomendo que ouçam Oceans do Coldplay se ainda não ouviram, e recomendam que ouçam For Elise também, mas só pra descontrair.
Lá vou eu.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/474729/chapter/19

Antes que pudesse me arrepender do que estava fazendo, minhas mãos escorregaram do portão e eu já estava andando em direção ao cômodo nos fundos do terreno. Aquele lugar que algum dia pareceu sombrio mas que, naquele momento, estava longe de ser.

Fúnebre, talvez. Mas sombrio nunca.

E For Elise tornaria qualquer ambiente fúnebre tocada naquela sintonia.

Eu conseguia senti-lo tocar de uma maneira que não conseguiria fazer, por exemplo, se fosse um pouco mais cedo. Se voltasse no tempo até o primeiro dia em que pisei naquele cenário aparentemente medonho e ouvi sua melodia tocar pela primeira vez, não entenderia o quanto havia sofrimento naquelas notas. Mas os sentimentos do pianista estavam audíveis como nunca antes, e soavam como jamais haviam soado também. Olhei para cima e dediquei minhas atenções ao céu estranhamente nublado.

O medo acabou convertendo-se em tristeza, pensei. E talvez fosse isso. Mas era provável que a tristeza, por sua vez, acabasse transformando-se em medo novamente.

Foi então que percebi o quanto era perigoso. A cada passo mais uma distância reaparecia bem na minha frente. Mas eu segui, de mesma forma que tinha seguido dentro da casa. E a distância ia sumindo quão rápido o pressentimento de que ficaria tudo bem aumentava.

Não era o luar como no tempo em que meus pensamentos limitavam-se a ignorância dos estudantes que me acompanhavam pela manhã nas aulas da Ridgeway, nem mesmo assemelhava-se ao medo que corroeu minhas veias quase tão repentinamente quanto uma queda d'água quando meus primeiros passos foram dados naquele caminho praticamente impossível de se notar ao longe. Mas éramos nós dois de um jeito tão diferente de qualquer outra coisa. Éramos eu e o pianista como jamais fomos, também. E eu não sei se já comentei alguma coisa parecida antes, mas, se já, realmente nunca se compararia ao que tive o prazer de viver nesta tarde. Não era a tempestade e nem mesmo a aurora, mas era o sol. O sol, mesmo que por trás das nuvens.

É sempre bom saber que o sol estava ali, ao meu lado, ao lado dele. E que talvez ainda esteja.

Dei várias voltas antes de abrir a porta — não sei se cheguei a mencionar alguma vez que, de alguma forma, naquela direção havia um tipo de porta — e notei que havia uma mistura de alguma outra melodia ou paródia. Ode to Joy. E uma contrastava com a outra de um jeito acelerado, mas ainda assim melancólico o bastante para que eu sentisse, e uma dor inspiradora surgiu. Lembro de ter entrado no cômodo um tanto apertado apenas quando For Elise voltou a soar. E, eu sei que o próprio nome diz para quem é, mas automaticamente pensei que aquilo tudo fosse destinado a mim, e não a Elise. O que é estranho, já que eu não costumava fazer comparações nesse sentido.

Ele nunca tinha parado de tocar alguma música por minha causa, mas parou. Parou quando o ritmo aceleraria. Parou desde o primeiro momento em que passei a estar lá dentro.

— Por que não toca mais um pouco?

Ele ficou calado.

— O que houve?

— Nada.

— Como nada? Por que parou de tocar? — Dei alguns passos e estava com as duas mãos nos bolsos.

— Seus olhos.

— O que têm meus olhos?

Ele se levantou e chegou perto de mim.

— Seus olhos são lindos.

Fiquei tentando assimilar o fato de ter parado de tocar For Elise só para dizer que meus olhos eram bonitos... do quanto aquilo não fazia sentido, porque vinha de um pianista.

De repente estávamos ainda mais próximos. O bastante para que eu fechasse meus olhos e indagasse, quase que num sussurro:

— Por que não volta a tocar pra mim? Você sabe que eu gosto de te ouvir tocar, não sabe?

— Sei — podia ouvir sua resposta no mesmo tom, o que me arrepiou de um jeito que eu realmente não queria que acontecesse. E ele percebeu. — Mas eu prefiro ficar aqui olhando seus olhos.

Então eu tornei a abri-los. E passamos um longo tempo fazendo apenas contato visual, até que nos beijamos. Meus olhos continuaram abertos.

Enquanto os lábios dele estavam massageando os meus, eu fiz uma coisa que não fazia havia dias.

Eu sorri.

E o pianista também sorriu.

Então estávamos nós dois beijando e sorrindo ao mesmo tempo.

— Como alguém pode não te amar? Como alguém pode te rejeitar — ele dizia, as mãos apoiadas no meu rosto — e pode não desejar mergulhar nesse mar que você tem nesses olhos?

Pensei que fosse um tipo de pergunta retórica, então não respondi. Só senti minha pele esquentar.

— Como alguém pode não querer tanto você? Eu realmente não deixaria, mas como alguém pode...

— Acho que eles não são loucos. Você é. — E sorri.

— Como nem você mesma pode se achar fantástica? — tornou a falar, como se aquilo fosse uma verdade universal que eu simplesmente não fazia ideia.

— Freddie, eu tenho problemas.

— Todo mundo tem problemas. Você, ao contrário de uma boa parte das pessoas, soube enfrentá-los e ainda sabe. Você sobreviveu àquele incêndio, sobreviveu até mesmo à morte de seus pais e está sobrevivendo a muita coisa todos os dias. Sabia que algumas pessoas devem estar orgulhosas de si mesmas apenas por sobreviverem? — E olhou fixamente para mim.

— Sei, acho que sei o que quer dizer. Eu sempre estive agradecida por sobreviver com você. — Mas eu corei mais do que pretendia. E nem sequer pretendia.

— Repetindo: como alguém pode não te amar?

Foi só ao término da frase que ocorreu-me que talvez aquele fosse um jeito próprio de dizer que me amava. E que eu ainda queria saber o que ele tinha visto na mansão, mas mal conseguia fazer uma pergunta do gênero.

Então eu não sabia o que respondê-lo. Não sabia se era realmente uma pergunta retórica, se podíamos voltar a beijar a partir dali... mas sempre soube que havia algo a ser feito. Algo que eu não fiz e que gostaria de fazer.

— Está tudo bem, não é?

De repente estava no colo dele e estávamos abraçados, eu olhando para as paredes sujas, de uma tonalidade estranha. Suas mãos sobre o piano tocavam meu soneto favorito: o do luar.

O sol atrás das nuvens.

[...]

Horas depois, Freddie estava me explicando pela milésima vez o que tinha acontecido quando estávamos na mansão. Eu, sentada de pernas cruzadas em cima da mesa, e ele, enquanto falava, estalando os dedos das mãos ou coisa parecida. Suas palavras eram sempre as mesmas:

— E você não era... você. E nem seu corpo. E nem mesmo sua mente. Era tudo tão independente que eu jamais conseguiria ficar ali assistindo, por isso saí correndo. E por isso disse que ninguém veria o que você viu. Entende?

— Sim, eu disse que sim. Eu disse que entendo. Não precisa explicar mais uma vez, porque eu realmente não gostaria de ouvir as mesmas coisas pelo resto da minha vida.

— Vamos tentar esquecer o que aconteceu, o que acha?

— Está bem assim.

— Então está.

Silêncio.

— Sabe por que não continuei me cortando? Por que parei de ver o fantasma da minha tia-avó?

Ele ficou em silêncio, mas começou a tocar alguma melodia desconhecida por mim.

— Foi porque eu estava preocupada com você. Porque você me chamou. Não fui eu quem te salvou, Freddie. Você me salvou.

Não ouvia-se nada exceto algumas notas tocando num grande intervalo de tempo e ritmo, o que chegava a ser constrangedor demais para mim.

— Estou dizendo que você me salvou, Freddie. Não só por causa disso. Me salvou desde o dia em que nos conhecemos.

— Será que fui eu? Não pode ter sido você mesma?

— Não. Foi você. Você me salvou. Você esteve comigo. A Carly se foi, eu não sabia o que fazer quando ela foi estuprada. Mas você...

— Eu sempre vou estar aqui.

Aquela com certeza era mais uma forma dele de dizer que me amava.

Olhei pela janela e finalmente podia ver as estrelas cintilarem. Bonitas, sim. Tinha me acostumado com aquela imensidão de nuvens de tanto ver o céu naquele dia, e me perguntei o que faria em seguida. Sempre que olhava para o céu o peso parecia bem menor, quer dizer, o peso de ser uma órfã.

— Lembra de quando conversamos sobre os formatos da Terra? Foi aqui, não foi? — ele perguntou, tentando me tirar da imensidão lá em cima.

— Sim. Pouco depois de você me perguntar se queria ser sua namorada... Pouco depois de namorarmos.

— Você não me deixou te pedir.

— Mas o que quer dizer com tudo isso?

— Lembra de quando nos conhecemos?

— Não faz muito tempo assim para que eu não lembre — respondi, como se eu não fosse lembrar pelo resto da minha vida.

— O amor é infinito.

— Enquanto dura.

— Sabe por quê? — Claro que eu sabia. Ele sempre soube que eu sabia, mas perguntou.

— A Carly costumava dizer... que o amor é maior que qualquer coisa. Ela lia livros desse tipo com muita frequência. Eu não gostava de ouvi-la e muitas vezes não dava atenção, mas agora sei. Involuntariamente, mas sei.

— Você entende isso de um jeito próprio, não entende?

— Não gosto que exista um limite para amar alguém. Tem de ser um grande amor. — Olhei para o chão. Em seguida hesitei um pouco. — E você... o quanto você me ama?

— Todo amor é um grande amor.

— Mas nosso amor não é um todo. Não é o mesmo todo dos outros, ou é?

Ele se calou. Eu tinha gostado daquilo, já que a palavra final era sempre a dele.

— Lembra do que te disse sobre Moonlight Sonata? — mudou de assunto. Eu ri sarcasticamente e ele desviou o olhar por algum tempo.

— O que isso tem a ver com o que eu disse, Fredward?

Eu desconfiei que ele revidaria me chamando de Samantha, mas não o fez.

— Só me deixe lembrar: disse que a música terminava quase exatamente como no início, não foi? E é isso.

— Mas o quê... — Então ele estendeu uma das mãos e nela estava um pedaço de papel com uma linha traçada. — O que é isso?

— Os dois extremos da reta são o início e o fim. O início, do lado esquerdo, o fim, do lado direito. O que sobra é o meio. — Parou para traçar outra linha ao lado e depois viu se eu estava mesmo prestando atenção, e estava. — Agora, os extremos dessa outra linha apresentam o início e o fim também. — Em seguida eu o interrompi para perguntar de que eram o início e o fim. — O início e o fim de qualquer coisa. Isso não vem ao caso agora, mas agora preste atenção...

"Quando você traça duas retas lado a lado em que os extremos representam, respectivamente, o início e o fim, você pode perceber que o fim da primeira reta e o início da segunda se encontram. Quando pensamos de um jeito óbvio, chegamos a uma conclusão superficial de que o meio está entre os dois extremos de ambas as retas, mas logo percebemos que os mais próximos entre si são os próprios extremos. Eu sei que repeti muitas vezes a palavra extremos, mas foi o melhor jeito de esclarecer. Funciona assim na vida, Sam. Funciona assim em Moonlight Sonata. Funciona assim em qualquer coisa. Eu já cheguei a mergulhar nessa reflexão de modo que o meio pareceu não existir. Mas não é inútil. Isso tudo quis dizer que inícios geram fins e fins geram inícios. Todo fim acaba com o propósito de dar origem a um outro início. Os inícios, ironicamente, aproximam-se mais dos fins que os meios."

Então pestanejei por alguns bons e longos segundos, até que entendi o que o pianista estava querendo dizer. Estava querendo dizer que até mesmo o que acabou é infinito e que em hipótese alguma deixaria de haver algo depois. Estava tentando dizer, de maneira indireta, que o que realmente tinha começado nunca acabaria. Então eu clamei ao Universo que me desse uma boa resposta para todos aqueles dizeres.

Não sei se me deu, na verdade, então usei meu próprio cérebro:

— Não me importa se você é o pianista que entende dos inícios, dos fins ou dos meios; da matemática ou de qualquer outra coisa complexa. Você sabe que não me importa. Você sabe que também me comove sem que eu necessariamente entenda o que você diz. — Respirei um pouco, ele estava olhando nos meus olhos. — Por que não para de dizer coisas bonitas, então? Não vai fazer diferença.

Aquilo tudo tinha muito a ver com nós dois.

Estávamos próximos outra vez, e ele respondeu:

— Eu pararia com todo o prazer se você me beijasse como estava beijando lá no seu antigo quarto. Desde que você me beije, eu paro. — Seus braços enlaçaram minha cintura.

— Você já não precisa da minha permissão.

Eu torci meus lábios e olhei para o chão, depois senti braços apertarem minha cintura com mais leveza do que antes. Então senti, também, meus lábios serem comprimidos e beijados numa suavidade que alguém poderia facilmente comparar com o movimento vagaroso das marés, sensação na qual eu navegava. A venenosa cafeína havia dado lugar à pureza das águas que, ora repentinas, ora calmas, tomavam total controle sobre meu corpo. Aos poucos, saciavam minha sede.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Me desculpem mesmo pelos erros.
Me desculpem por qualquer coisa que tenham que me desculpar.

Beijos!