Fire & Desires escrita por Pear Phone


Capítulo 18
Breathe me


Notas iniciais do capítulo

Eu espero que gostem, amo muito vocês. Obrigada pelos elogios!



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As paredes do quarto, de estrutura frágil, quase não permaneceram erguidas na ventania que vinha das escadas que exalavam passado. Foi nesse momento que abri meus olhos e descansei meus lábios. Pior coisa que poderia ter feito.

E eu vi, primeiramente, um vulto. Um vulto que se aproximava de repente e fazia com que eu me assustasse. O mesmo tornava a aparecer, e só depois de certo tempo era possível identificá-lo. Uma mulher idosa que aparentava ter pouco mais de sessenta anos de idade, movimentando-se por entre as sombras, abrindo as portas e janelas da grande casa. Minha pele, que havia recentemente esquentado, passou a esfriar. Senti todo o meu corpo tremer. Não era de frio, e sim de medo.

O medo. Aquele que fez questão de dominar minha mente até o ápice.

A mulher pôs um pé dentro do cômodo, o outro para fora. Abria e fechava a porta várias vezes, em sequência. Com isso, a porta rangia. Os agasalhos que a cobriam pareciam formar um só. O vestido de estampa floral rasgado, manchado e surrado devia percorrer seu corpo até um pouco abaixo dos joelhos, as canelas estavam expostas e andava descalça.

Então a reconheci. A pele, provavelmente, era enrugada até mesmo vista de longe. Os olhos eram frios e mortos. Seriam mortos mesmo que ainda estivessem vivos. As grandes metáforas do Universo: a metáfora das cores, a metáfora dos tons, a metáfora do outro lado...

O outro lado era negro.

O outro pé foi de um piso para o outro. Agora estavam os dois dentro do quarto. A face escondida veio à tona e mal pude controlar o que veio em seguida.

Suas mãos ágeis procuraram por entre as gavetas e logo encontraram.

O tesouro.

O tesouro estava escondido ali.

E pegou um dos instrumentos cortantes. Não tive tempo para apreciá-lo ou sequer descrevê-lo, e mesmo se o fizesse não seria sensato. Em poucos segundos minha tia-avó — morta pela ingestão de um veneno que eu havia colocado em sua bebiba propositalmente — estava violentando minha pele num ritmo inquietante. E doía. Doía como sempre doeu. Doía como qualquer corte profundo.

Como uma taça de vinho que cai sobre o tapete, o vidro quebra e corta. O líquido avermelhado se espalha.

As lágrimas misturavam-se com o sangue que escorria continuamente.

E eu lembrava que era só uma criança. Uma criança traumatizada.

Fechei meus olhos com força, livrando-me da melodia fúnebre que tocava na minha consciência. A trilha sonora do sofrimento tornou-se inaudível e agora era possível ouvir uma voz exasperada chamar meu nome. Fitei minhas mãos ensanguentadas.

Grace havia sumido. Voltado para o outro lado, para o lado negro. Deixado a aurora e o alvorecer em paz.

Girei nos calcanhares, virando-me, enquanto meus olhos procuravam pelo pianista que estava li, naquela cama, beijando meus lábios antes que eu decidisse descansá-los e mantendo meus pensamentos saudáveis.

Abri as cortinas, olhei pela janela e respirei no vidro embaçado. Não conseguia vê-lo, mas ouvi passos nas escadas. Os degraus feitos de madeira gemiam. E, antes que parecesse tarde, o segui. Saí correndo por toda a estrutura que ameaçava desabar. Seriam só entulhos e dois corpos — um deles enganado pelos próprios medos, ou seja, pelo próprio trauma. Óbvio que o pianista era mais rápido que eu, já que era um pianista, qualquer um deve saber. E, claro, ele não era mentalmente perturbado.

Mas parecia estar embriagado. E eu estava embriagada como sempre estive, acompanhando-o.

Quando ele correu para atravessar a pequena estradinha de chão à frente da mansão, pensava que estava tudo bem. Pensava que não seria um erro atravessá-la correndo. Para mim também não era, mas pela primeira vez em todo o Universo uma estradinha de chão em frente à uma mansão abandonada — num lugar completamente isolado — poderia pôr em risco uma vida. Havia um caminhoneiro, provavelmente mais embriagado que nós dois juntos, dirigindo rapidamente.

E os dois viriam a colidir a qualquer instante, sem dúvidas. Antes que eu pudesse me despedir. Mas eu não estava pensando em despedidas. Era cedo demais.

Não me lembro de ter visto o caminhão dirigido pelo caminhoneiro embriagado passar rapidamente, mas me lembro de perceber que estávamos eu e Freddie jogados em alguma parte daquela estradinha de chão. E não saímos daquela posição.

E então olhei para o sangue que estava entre nós. O que ele poderia de ter feito enquanto assistia àquela cena no quarto? Correr era a única das opções, claro. Foi o que ele fez. Eu não estava com raiva. Mas ele não disse uma só palavra enquanto estivemos ali, jogados. Eu não tinha o que dizer. Tudo que conseguia fazer era vê-lo com seus olhos fechados, evitando olhar para o corte no meu braço por um longo tempo.

Fechei meus olhos, contei cinco segundos e depois os abri. Levantei-me e pensei que ele poderia dizer alguma coisa a mim depois de eu tê-lo salvado. Mas ficou quieto, parecia estar imerso em suas próprias reflexões. Nenhum de nós teve a coragem de pronunciar uma palavra sequer por um tempo incrivelmente extenso. Pareciam minutos que convertiam-se em horas, dias, semanas, meses, anos... Parecia muito mais do que era. Já nem sequer nos encarávamos.

Voltei a me deitar ao seu lado naquela estradinha.

— Eu a vi. Vi minha tia-avó ali, manuseando uma daquelas lâminas. Eu podia vê-la agredindo minha pele, Freddie. — Seus olhos castanhos pareciam doentios. Eu preferia morrer a vê-lo daquele jeito. — Não vai me contar o que viu? — disse, limpando as lágrimas.

— Eu não posso dizer o que vi, Sam.

— Por que não?

— Porque é cruel.

E ficou em silêncio, mas eu o quebrei:

— Eu tentei fazê-la parar, mas...

— Não havia ninguém, Sam — ele hesitou, mas não por muito tempo. — Não havia ninguém. Sua tia-avó não estava lá, nem seus pais, nem seus primos, nem quaisquer outras pessoas que você provavelmente vai dizer que via naquela casa. É só uma casa abandonada. Não tem uma só pessoa lá.

— Mas eu podia...

— Ninguém vê o que você vê, Sam.

Então ele não via. Mas é claro que não. Mas é claro que eu mesma tinha me cortado outra vez. É claro que eu sairia do controle se abrisse os olhos e olhasse para aquele quarto. Eu era uma órfã. Eu nunca seria forte o bastante.

Então olhei para o meu braço e vi que a ferida estava menor do que antes. Não estava exatamente do mesmo jeito.

— Eu não devia estar aqui.

— É, você não devia.

— Me perdoa.

— Eu não consigo.

— Não consegue?

— Não.

Ele não tinha que me perdoar. Não tinha que dizer coisas bonitas ou me confortar. Não tinha que ficar ali. Porque ele sempre esteve certo.

E daí que eu tinha acabado de salvá-lo? Antes disso eu havia quase o matado. A culpa vinha sendo minha desde muito tempo, e não dele.

Então me levantei e corri de novo para dentro daquela casa, sem que ele percebesse. Subi as escadas e atravessei o corredor estreito rapidamente, bati a porta daquele cômodo com toda a força que ainda me restava. Pensei em deitar naquele travesseiro um pouco manchado de sangue e chorar pelo resto dos dias. Ficaria ali para sempre, me isolaria do resto do mundo. E talvez o mundo se isolasse de mim.

Mas não o fiz.

— Aonde você vai? — Freddie perguntou quando eu já estava lá em baixo outra vez, passando por ele.

Mas eu não respondi. Apenas saí andando.

Ouvi um grito ao longe, depois vi o pianista caminhar ao meu lado. Arrependimento, talvez? Não queria que ele sentisse pena de mim, afinal estava certo.

— Aonde você vai? — perguntei. — Receio que não seja para o mesmo lugar que eu.

Agora era sua vez de ficar calado. Revezávamos o silêncio a cada frase.

O ritmo dos meus passos acelerou e o dos seus também, até que eu resolvi parar com aquela idiotice.

— Aonde estamos indo, Fredward? Aonde é que eu e você vamos com tudo isso? Aonde vamos? Me responde!

— A lugar nenhum. — Era a resposta que eu estava esperando ouvir. — Estamos praticamente perdidos, mas não é porque não sabemos qual o caminho de casa.

— Então é por quê? — arrisquei indagar. — Será que é porque eu sou uma doente mental e você acha que pode cuidar de mim até que eu morra?

Silêncio.

— Não é que você estava mesmo certo quando disse que ninguém vê o que eu vejo? Eu acho que, se minha mente realmente me engana o tempo todo, então você nunca foi do jeito que eu pensei.

— Sam...

— Você já disse o que disse.

— Meu Deus, Sam, eu só não consigo!

— Eu sei que não consegue me perdoar.

— O que eu não consigo não tem a ver com perdão.

— Então o que você não consegue?

— Não consigo acreditar.

— Acreditar no quê?

— No que eu vi.

Quando ele terminou de pronunciar a frase, eu entendi.

— O que você viu, Freddie?

— O que você não viu.

[...]

Quando estávamos eu e o pianista no lugar onde nos conhecemos, tudo parecia ter melhorado. Aquele cemitério era incrivelmente melhor do que minha antiga casa ou do que aquela estradinha deserta, falando a verdade. Suas mãos estavam cuidando do meu braço, como tinha feito em meu tornozelo algum tempo atrás.

Não preciso dizer o quanto gostava de ser tocada por ele.

— Obrigado — dizia, depois de muito constrangimento.

— Por quê?

— Por ter-me salvado.

— Não tem por que me agradecer.

Mas, em seguida, ele leu meus pensamentos de uma forma graciosa demais para ser esquecida.

— Eu devia ter dito isso antes, não é?

— Então você aceitou o meu perdão?

— Sam, você é que tem que me perdoar.

— Por dizer verdades? Eu realmente vejo coisas. — Desviei meu olhar. Ele tinha percebido.

E me abraçou como se voltasse a ser o pianista que eu tinha conhecido ali, naquele cemitério. Eu senti que ele estava me respirando de um jeito que nunca tinha respirado antes.

Dei a desculpa idiota de que iria tomar um ar, mas estava querendo falar com meus pais. Não me importava se ele fosse espiar e no meio do diálogo acabasse ouvindo parte das palavras que eu dirigia aos túmulos, porque naquela altura só queria dizer o quanto eram especiais para mim e o quanto sempre seriam.

Peguei uma rosa e coloquei em cima dali. Observei as lápides e depois comecei o discurso:

— Eu fui até nossa antiga casa hoje. Pensei que teria sido melhor se tivessem vendido, se não tivessem discutido tanto... Talvez ainda estivessem aqui. Eu sinto muito. Eu sinto muito por não poder vê-los. Sei que os perdi, mas podem apostar que nunca me perderão. Também refleti que o que estava entre vocês não se aproximava nem um pouco de perder ou encontrar, e sim de outros inúmeros fatores que talvez eu nunca entenda. Quero só que saibam que costumo me arrepender do que sinto e faço com frequência, mas nunca me arrependerei de amá-los.

Claro que pretendia dizer muito mais, pedir muito mais desculpas e clamar ao Universo que voltassem a me abraçar do jeito que algum dia já me abraçaram, mas pensei que tanto minha mãe quanto meu pai jamais gostariam de ter olhos para ver sua própria filha matar a pobre tia-avó com um veneno barato e depois simplesmente não aguentar as consequências, fraquejando sem ao menos conter a tristeza e o sofrimento.

Quando olhei para trás, vi o portão entreaberto. Caminhei até ele com relutância e estava pronta para voltar a meu apartamento. Ouvi notas soarem. Dessa vez não vinham da minha consciência, mas sim de um piano prateado. Poderia conhecer aquela melodia até mesmo de longe, e conheci.

Como não tinha o que perder, escutei For Elise pelos bons quase três ou quatro minutos em que tocou. Não senti vontade de chorar, saudade, nem sequer me incomodei. Apenas contemplei o vento como se fosse possível contemplá-lo e fechei meus olhos para imaginar como seria bom sentir aquele gosto de café gelado outra vez na minha boca.

Como seria bom respirar aquele aroma outra vez.


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Notas finais do capítulo

Gostaram? Achei que seria legal que a Sam imaginasse alguma coisa "cruel", sabem? Achei que teria muito a ver com tudo.
Digam a opinião de vocês. Sabem que sempre podem fazer isso, não é?