O Portal dos Mundos escrita por Thiago Luis RPinho


Capítulo 1
Prólogo — Recrutamento Involuntário




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Após ler apressadamente o documento em suas mãos, o homem de terno tirou seus óculos de leitura e depositou as páginas sobre a mesa. Indagou à mulher do outro lado da mesa ligeiramente ofendido com o que havia lido:

— Senhora…

— Pode me chamar de Manchu.

— Senhora Manchu, você quer mesmo que eu acredite no que acabo de ler?

A morena já esperava uma reação como aquela e respondeu com calma.

— Sim e eu ficaria agradecida se puder seguir os protocolos listados na página oito, inciso terceiro.

O médico-chefe fitou a mulher por mais alguns instantes, estava um tanto sem reação. Aquilo devia ser um daqueles casos inusitados que poderia rir depois com seus ilustres colegas jogando golfe, mas ali ele não riu. Sentia-se quase falando com uma lunática, só que dessa vez não era um paciente de seu instituto, mas uma indicada por uns figurões do governo.

— A senhora quer me convencer de que uma organização sobrenatural… — Essa última palavra tinha um tom carregado de escárnio — Quer um dos meus pacientes porque acha que ele tem poderes? É isso? Ainda mais esse paciente em especial?

Manchu concordou com a cabeça. Ela não gostava de ter que passar por aquilo todas as vezes, mas era procedimento padrão. Em si, ela achava aquilo desnecessário, pois o guardião legal teria suas memórias apagadas da mesma forma, porém ordens eram ordens e tradições eram melhores do que surpresas.

— Olha, senhora, não sei o motivo do senador a ter indicado para nossa instituição, mas aqui não aceitamos esse tipo de pseudociência. Por favor, avise que fiquei lisonjeado pelos presentes, mas devo pedir que se retire.

Ele dizia aquilo se pondo de pé e, junto dele, a mulher também ficou. Ele começava a dar a volta na mesa de seu escritório quando se sentiu estranhamente confuso. Apoiou-se na mesa para não cair.

— Doutor, eu não quero convencê-lo. Você já foi convencido.

Manchu se aproximou lentamente e suas palavras chegavam aos ouvidos do médico como se fossem sussurros. Seus pensamentos estavam ficando lentos, mas onde a mulher mencionava, eles ficavam claros.

— Sim — Fez uma pausa como se aquelas palavras fossem clareando sua mente — Eu fui.

Disse ele percebendo que a história da mulher talvez não fosse tão absurda assim. Parecia, nesse momento, muito verossímil e ele se sentia tolo por ter dito aquelas coisas.
— Doutor, você vai agora cooperar e me dizer o que eu quiser saber. Não vai?

Sua primeira reação foi negar com um gesto de mãos, não podia falar sobre informação confidencial com pessoal não autorizado, mas logo percebeu que não teria problema se ele dissesse só para ela. Ela parecia muito confiável e com certeza seus superiores entenderiam. Ele voltou para sua cadeira e fitou a mulher.
— É, sim, eu vou. Eu vou dizer… O que?

Manchu se sentou satisfeita, ela sentia um prazer secreto em fazer aquilo. Hipnose de ondas, uma coisa fascinante. Ela sorriu educadamente enquanto sugeria ao doutor o que ele devia dizer, voltavam ao procedimento padrão.

— O que você quer me contar. Você quer me responder o porquê dele está aqui e não em casa.

O que ela falava fazia sentido, ele queria mesmo, mas faria melhor do que contar. Girou em sua cadeira e foi procurar a pasta em um arquivo no canto da sala, ainda usavam dados físicos para guardar aquelas informações. Não era bom confiar em máquinas. Ele se surpreendeu como foi fácil encontrar o que buscava, era como se o resto em sua mente fosse afastado e somente as memórias relacionadas à pergunta importassem. Pegou o arquivo amarelado, passou os olhos por ele e entregou a pasta à mulher. Nos poucos minutos que ela leu todo o documento, ele permaneceu de pé esperando.

— Interessante, não tinha amizades na escola, tirava notas medianas e era frenquentemente suspenso por desobediência. Os professores reclamavam de sua irreverência e passava boa parte do tempo em salas de correção de comportamento, mas aqui não diz como isso aconteceu com a família dele. Isso tem a ver com ele?

O médico assentiu com a cabeça e Manchu continuou:

— É contra as normas da minha organização manter um indivíduo com esse potencial aqui. Independente do que o seu governo pense, eles não podem o esconder de nós. Além do mais, você mesmo quer me dizer se ele cooperaria conosco.

O homem parecia surpreso em como ela entendia o que ele queria. Suas palavras sempre pareciam fazer sentido. Contente e um pouco confuso, explicou:

— Esse paciente tem problemas sérios para se relacionar com outros internos. Sua expressão é fechada, fala pouco e é mal-educado. Tem pouca empatia por animais ou por pessoas. Seus temas de conversas não são lúcidos, tem dificuldade de discernir o que lê como ficção e como fato. Não obedece regras, os funcionários constantemente precisam dopá-lo ou o arrastar pelos corredores. Não tem respeito algum por autoridades ou por qualquer coisa que se possa considerar como boa, ética ou honesta. Ele é uma ameaça para qualquer um que tente limpar a bagunça que faz em seu quarto, precisamos o dopar antes com drogas em sua comida, mas, ainda assim, existem pontos que nenhum enfermeiro toca por medo — Ele fez uma pausa e sussurrou — Eu nunca acreditei, mas alguns do turno da noite dizem que ele é possuído. Há relatos de que alguns que viram coisas voando pelos corredores ou dentro da cela dele. Outros já o viram perambular pela noite e quando vão checar as trancas, não há danos.

O médico mudou o tom e sorriu como se conversasse com uma velha amiga:

— É claro que não dou ouvidos para esse tipo de boato.

Manchu ouviu aquilo como se já esperasse uma descrição como aquela. Nem sempre ter poderes era algo bem-visto na sociedade, explicavam como podiam e comumente como uma força maligna. Ela demorara quase quatro anos para encontrar aquele sujeito após ele ter usado seus poderes em público. A demora talvez tivesse custado a sanidade do indivíduo. Drogas e reclusão não ajudavam ninguém, ainda mais já fosse alguém com problemas antes mesmo de ter poderes. Mesmo assim, ela não estava ali para redimir ninguém, o procedimento correto era recrutar ou, caso não fosse possível, neutralizar qualquer manifestação sobrenatural do indivíduo. Naquele caso, seria o segundo.

— Sendo assim, você deveria me levar até o paciente.

Ambos saíram da sala em silêncio, atravessaram os longos corredores da instituição. Os funcionários que passavam saudavam polidamente o médico-chefe e ignoravam a morena. Depois de uns instantes caminhando, Manchu quebrou o silêncio.

—Não te dá vontade às vezes de contar para alguém? Sabe, contar o que seu governo quer com essas instalações. Prometo guardar segredo.

— É, realmente, eu sempre quis contar, mas não sei o que eles pretendem, senhora. Tenho ordens de cuidar dos jovens. Alguns deles são trazidos após notícias curiosas em jornais, mas logo são esquecidas. Já os rapazes ficam aqui, às vezes, um grupo com autorização vem e os leva para uma bateria de teste por alguns dias. No mais, temos verba e instruções para lhes dar uma vida bem distinta dos demais sanatórios. Acho que alguns desses marginais não devia ter metade disso.

A recrutadora analisava o médico enquanto ele falava, alguns ficavam tagarelas sob o efeito da hipnose. Cada um reagia diferente, mas o principal era o mesmo: Completa obediência. Era assim que a organização que ela trabalhava gostava de ver o mundo: Obediente. Homens e mulheres viveriam suas vidas e nunca saberiam que o que tanto sonharam era verdade. O que era triste, mas era necessário, pois não eram só os sonhos que existiam, mas os pesadelos também e, na maioria das vezes, esses eram mais comuns do que os primeiros.

— Senhora, chegamos.

O médico tinha um molho de chaves em suas mãos, procurou pacientemente naquela coisa arcaica. Como eram primitivos, refletia a mulher. A organização estava tantos anos na frente do resto da humanidade que sair de dentro dela era como viajar para o passado. Finalmente, o homem de terno encontrou a chave correta. A porta se abriu sem ranger, estava bem lubrificada. A luz do quarto ofuscou os olhos dos visitantes enquanto eles entravam. Quando ela pode ver com maior nitidez, questionou em voz alta.

— Certeza de que estamos no quarto certo?

— Estamos sim, mas… Ele mudou algumas coisas desde a última vez que eu vim aqui.

O cômodo cheirava a hortelã, uma estante de livros estava disposta próxima à entrada do banheiro. Havia uma escrivaninha com vários cadernos e material de estudo. A cama estava organizada, o chão estava limpo e ela não conseguia notar poeira em lugar algum. Seus olhos passaram rapidamente pelos livros. A maioria era de didáticos, alguns poucos mais disfarçados eram de auto-ajuda. Ela se aproximou para ver com mais atenção, notou que por trás dos livros havia outros. Não conseguia ler sobre o que falavam. Ela sentiu mais uma presença naquele quarto, vinha do banheiro. O trinco se moveu e um jovem saiu de dentro, tinhas as roupas de algodão branco da instituição de internamento mental. Elas deviam ter amarelado pelo uso, mas ele conseguira a manter quase como nova.

— Olá, doutor. Exame de rotina?

Mas quem respondeu foi Manchu.

— Pode se dizer que é um exame. Prazer, meu nome é Manchu e venho representando uma organização que está interessada no seu bem-estar. Para sua segurança, você precisa tomar esse coquetel de drogas. Aqui está o documento, assine embaixo.

— O prazer é meu. Não é todo dia que uma bela moça entra em meu quarto. Eu queria estar mais arrumado, mas… Bem, deixe-me ler isso — O jovem abriu o envelope e leu com atenção — Aqui diz que eu tenho escolha, isso é verdade?

— Sim.

— Então não vou tomar, moça.

Ainda que negando o pedido dela, o sorriso carismático do rapaz fez despertar a simpatia da recrutadora, mas ela não tinha tempo para aquilo. O tempo de exposição ao campo de hipnose já devia ter bastado, o documento era voluntário, mas não dizia nada sobre você ter controle da sua própria vontade.

— Mas você quer tomar.

— Quero? — Disse o jovem tomado por uma ligeira confusão.

— Sim, você quer.

Concluiu ela esticando o frasco para frente. O jovem se aproximou, pegou o pote e o destampou. Manchu sentia aquela satisfação secreta que sempre tinha quando controlava alguém daquela forma, mas a expressão na face do rapaz interrompeu seu contentamento. Com o coquetel sob sua palma aberta, o jovem sorriu.

— Não, Manchu, eu não quero.

O frasco lentamente se desfez no ar junto das pílulas dentro dele. Ele completou:

— Na folha que você me deu diz que tenho o direito de ser levado por você, caso eu prove que posso fazer algo sobrenatural — Ele sorriu e moveu sua mão nua na frente da recrutadora — Aqui está. Devo arrumar minhas malas?

O procedimento padrão incluía deixar o aviso por escrito de quais eram os requisitos para o recrutamento. Ela não precisava daquilo para saber que ele tinha poderes era só sentir a energia que ele emanava. Todo o quarto estava impregnado, principalmente uma mesinha no canto dele. Uma com um telefone antigo e uma cadeira posta ao lado. Aquilo chamou sua atenção, desconfiava qual era o motivo de ter tanta energia naquele ponto. Como se fosse algo escondido ali. Ela deu um passo naquela direção, mas o jovem foi mais rápido e se colocou na frente.

— Então? Devo arrumar as malas?

Ela o fitou por um instante. Não tinha tempo para aquilo. Ela daria uma chance ao rapaz. Pelo visto, o médico-chefe não sabia nada dele. Ele era sorridente, extrovertido e já tinha suas habilidades desenvolvidas. Por algum motivo, não fora afetado pelo transe, talvez fosse parte de seus poderes. Só precisava do treinamento adequado e daria um ótimo e obediente servo da organização.

— Arrume suas coisas, você vai sair desse lugar.

“Se ela tivesse dito não, talvez as coisas não tivessem sido como foram. Muita gente poderia ter continuado viva, mas talvez mais ainda tivesse perecido no que viria.”


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