Diário de um Assassinato escrita por Matheus Pereira


Capítulo 2
Inesperado


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura!

NOTAS:
Coconut Grove (ou apenas "The Grove" era um vilarejo que, no início do século XX, passou a ser parte de Miami). É aqui que a história se passa.

Para ler ouvindo:
Whisper to a Scream, na versão do Icicle Works



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CAPÍTULO 1

(Dos Relatos Pessoais de Anthony Reed)

Sexta-feira 29 de junho de 1923

23h40

Infelizmente ou não, a vida nos prega peças de tempo em tempo. O inesperado sempre me fascinou. Pois agora, veja bem, eu era o inesperado. Bem, foi mais ou menos assim que aquela cadeia de fatos surpreendentes começou.

A chuva forte que caíra repentinamente não dava brechas à lua. A escuridão só era cortada por alguns relâmpagos seguidos de trovões ensurdecedores. Com as roupas ensopadas, eu tentei acelerar o Cadillac luxuoso que eu havia alugado, mas as rodas apenas patinaram na lama e pareciam ter afundado ainda mais. Eu já estava ali há mais de quinze minutos.

– Droga! – gritei, atingindo o volante com um soco. Acendi a fraca luz amarela dos faróis do carro. Abri a porta e o vento logo me golpeou no rosto.

Eu estava me sentindo miserável. A lama chegava até ao meu tornozelo e, com muito sufoco, eu cheguei até a parte traseira do carro. Minhas roupas já estavam todas ensopadas. Não havia como piorar, porém mais uma vez o destino me mostrou o quanto se pode estar errado ao fazer algumas presunções. Inclinado e usando toda a minha força para tentar empurrar o carro, acabei escorregando na lama e caí no chão.

"Ótimo", eu pensei, com a vista tomada pelo brilho do farol. Agarrei-me ao carro e me levantei. Num primeiro momento, eu achei que tinha visto uma assombração e tive que me conter para não gritar. Bem à minha frente, estava uma mulher que mais parecia um fantasma. Era difícil ver qualquer coisa com muitos detalhes. O que eu conseguia perceber era uma moça jovem muito branca, de longos cabelos claros. Ela era baixa e parecia tão frágil que a ventania poderia derrubá-la a qualquer segundo.

– O senhor precisa de ajuda? – ela perguntou, em uma voz exaltada.

– Meu Deus, senhorita, o que uma moça como você está fazendo por aqui? – eu perguntei, tentando a me beliscar para ter certeza de que eu não estava tendo alucinações. A jovem parecia um fantasma, um nada atraente, por sinal.

– Mas que diabo! – ela esbravejou, num tom exasperado que me assustou, por causa da aparência delicada que ela tinha. – Quer ajuda ou não?

Olhei discretamente para os braços finos dela, cobertos por uma roupa já toda molhada e logo me desanimei. O carro estava muito atolado na lama para ser retirado apenas com a ajuda daquela moça estranha.

– Eu sei no que você está pensando. Eu poderia acelerar o carro enquanto você o empurra – ela sugeriu.

– E mesmo assim não será suficiente. Os pneus irão apenas espalhar mais lama sobre mim. Sem contar que acelerar o automóvel só vai piorar tudo. – eu retruquei, muito embora fosse claro que, diante do meu estado crítico, eu não tinha razões para me importar muito com aquilo. Porém, eu não conseguia conter meu pessimismo.

– Bom, eu poderia pedir ajuda. Papai deve estar acordado e certamente não verá mal em ajudar o senhor. E também há Rupert e Dewey. – ela disse afobada, como se eu soubesse quem eram aquelas pessoas.

– Não é necessário. – eu falei, rejeitando a idéia prontamente. E então, abri um sorriso solícito: – Seria muito mais ajuda se você me arranjasse uma corda forte, ou algum cabo de aço e também uma pá, senhorita.

– Ouça, eu nem mesmo sei onde eu poderia encontrar isso. Já estou molhada, corro risco de pegar pneumonia e olhe para meus sapatos! – ela cuspia as palavras numa incrível rapidez, gesticulando muito. – O senhor está exigindo muito da minha paciência. Venha comigo logo!

Antes que eu pudesse recusar, ela me agarrou com sua mão macia como veludo. Eu me deixei guiar por aqueles dedos finos e delicados. Seguimos por um caminho curto e tortuoso que cortava um grande jardim e as gramíneas que cresciam ao redor.

Não demorou muito tempo para eu conseguir perceber o casarão imponente que ficava a poucos metros da estrada, antes invisível por causa da escuridão em que eu estava. Era uma casa moderna, toda de madeira pintada de branco. Uma escada de madeira de apenas alguns degraus levava a uma extensa varanda. Era possível ver quase todo o interior a partir dali a partir dos janelões, sem cortina alguma. Com rapidez, a jovem extravagante que me havia oferecido ajuda abriu a porta envidraçada.

A casa repousava num silêncio profundo, que era quase assustador. O corpo esguio da jovem pálida não fazia nenhum som ao tocar o assoalho. Eu estava numa sala de estar ampla, iluminada por algumas lamparinas. Tudo parecia tão limpo que era quase um pecado que eu andasse por ali com os sapatos todos sujos de lama.

– É melhor que eu fique aqui. Não há motivo para eu entrar, senhorita. – eu disse, insistindo mais uma vez. Olhei para a expressão fantasmagórica dela e tenho certeza que deixei meu medo transparecer. Ela tinha, agora eu podia ver, olhos azuis sem brilho algum.

– Por Deus! Eu devo acreditar que o senhor prefere passar a madrugada inteira nessa trovoada tentando desatolar o carro sem receber ajuda alguma?

Com essas palavras, eu a segui sem pensar duas vezes. Apesar de enigmática, ao menos nas circunstâncias em que nos encontrávamos, ela tinha um encanto singular. Eu não tinha escolha a não ser acompanhá-la. Assim que chegou ao primeiro degrau da escadaria de pedra, ela se virou para mim. Seguiu-se um longo silêncio.

– Preciso pegar uma lamparina – ela disse, voltando-se para a sala de estar. Tudo que meus olhos enxergavam era a treva que envolvia o segundo andar da casa. Eu dei um longo suspiro e me virei para a figura alva, que já tinha uma lamparina em mãos. As vidraças tremiam com o bramar dos ventos e o bater da insistente chuva.

E, depois, fez-se ouvir claramente um som angustiante. Era um grito horrível, masculino, de profundo terror, como o de uma alma no inferno. O berro se arrastou por não mais que um segundo e, então, subitamente, foi sufocado.

A jovem fantasmagórica arregalou os olhos azuis e ficou paralisada. Eu tinha menos reação ainda. Não conseguia entender o que havia acontecido.

– Que diabos?! O som está vindo do quarto do papai! – ela correu pela sala de estar, em direção a escadaria.

Ela subiu os degraus tão rapidamente que foi difícil acompanhá-la. Sob a luz da lamparina, a jovem iluminou um corredor amplo, com portas dos dois lados. Ela alcançou, sem pensar duas vezes, a maçaneta de uma porta no lado esquerdo. Contudo, a porta não se abria.

– Papai! Papai! Abra a porta! – ela gritou. E então, ajoelhou-se e olhou pela fechadura, com a lamparina por perto.

Virou-se para mim, com os olhos azuis repletos de temor. – A porta está trancada... Por dentro. A chave está na fechadura. Mas... Meu Deus! Deve haver alguém lá dentro com ele!

Eu abri espaço e sacudi a maçaneta mais uma vez, sem sucesso.

– Mas o que está acontecendo aqui, Emily? – uma voz feminina surgiu atrás de mim, e uma porta se bateu. – Meu Deus, quem é esse sujeito?

Eu nem mesmo dei atenção para as perguntas que aquela mulher fazia. Eu agora precisava saber o que havia acontecido.

– Vivian! Papai está lá dentro! Ele gritou! Há algo de errado! – falou a jovem de pele branca; ou Emily, como agora eu sabia; cuspindo as palavras em seu jeito característico.

– Precisamos arrombar a porta. – eu disse, com firmeza. Posicionei-me de lado e joguei contra ela todo o peso do meu corpo. A porta era muito sólida e resistiu ao impacto. Tentei mais uma vez e ela apenas rangeu.

A porta que estava atrás de mim, do lado direito do corredor, se bateu mais uma vez. Sem perder tempo para questionamentos, um rapaz muito jovem, de pele escura, com um corpanzil que impunha sua presença, posicionou-se ao meu lado. Ele tinha um olhar de quem estava dormindo há muito pouco tempo, mas que tinha sido acordado de súbito, em um susto. Juntos, nós nos atiramos sobre a porta.

As dobradiças saltaram e a porta cedeu num estrondo, seguindo de um profundo silêncio. A luz das lamparinas de Emily e da outra moça, Vivian, revelou um corpo de um homem que devia ter uns 50 anos, distendido no chão, em volta de uma poça de sangue.

– Oh, meu Deus! Papai! – Emily sussurrou numa voz trêmula, com os olhos apavorados e levando as mãos até a boca. A impressão que eu tive era de que a garganta daquela jovem, que antes era tão enérgica, havia se fechado. Eu observei quando seus olhos se fecharam, e, então, seu corpo desfaleceu. Vivian, que tinha uma aparência latina, com a pele fustigada pelo sol, segurou Emily e a posicionou cuidadosamente no chão. Sem saber o que fazer, começou a abanar-lhe o rosto, que parecia ainda mais pálido.

O rapaz moreno pegou a lamparina das mãos desvanecidas de Emily e entrou no quarto. Era uma cena quase teatral, agora que era possível ver com mais nitidez. O homem assassinado jazia em volta de uma pequena poça de sangue, com um pequeno buraco no meio da testa. Ele estava deitado em frente a uma lareira, que não estava em uso.

– Foi morto há não mais que minutos. O corpo está quente! E sem pulso... Meu pai está morto – disse Rupert, engolindo em seco. Sua voz era carregada por um profundo pesar. Eu me surpreendi muito quando ele disse aquilo. O senhor Pemberton tinha a pele muito clara. Como aquele homem, que era negro como o diabo, seria filho dele?

Ao fundo, a cama estava um pouco bagunçada com lençóis e roupas. Fora isso, porém, toda a mobília estava organizada, livros estavam enfileirados na estante e alguns objetos, incluindo uma garrafa, estavam sobre a escrivaninha. Tudo em ordem naquele ambiente, menos o fato de que seu ocupante havia sido assassinado há alguns dois minutos. Meu olhar vasculhou todo o cômodo, mas eu não encontrei nenhuma arma de fogo. E, o que era ainda mais surpreendente, se o homem não poderia ter se suicidado, onde estava, então, seu assassino?

Minha curiosidade era tamanha que eu fiz menção de entrar no cômodo, mas fui impedido.

– Não! O que o senhor está pensando? Não entre e não toque em nada. Não chegue perto do meu pai! Nada deve ser mexido até a chegada da polícia! – ele esbravejou com profunda rispidez, como se a culpa daquela situação inesperada fosse minha. Contudo, eu não me ofendi. Na realidade, fora o choque do qual eu ainda me recuperava, eu apenas sentia certo constrangimento. Afinal, eu nem devia estar naquela casa.

Eu era um completo estranho para aquelas pessoas. Eu era o elemento inesperado. Não que aquelas cenas que eu acabara de presenciar tivessem sido previsíveis para mim. Contudo, se havia alguém em profunda desvantagem, entendendo os fatos muito menos que eu, eles eram Vivian e o rapaz negro. Não tinha sido minha escolha estar ali, mas, agora, eu já estava envolvido.


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Notas finais do capítulo

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