Não era do seu feitio escutar atrás de portas. Nunca fora. Não que ela não tivesse tido, uma vez ou outra, vontade de fazer isso; mas ela não achava correto. E tudo o que era certo e errado incomodava Botan, incomodava demais, porque fazia parte da sua 'profissão' - por assim dizer - ser correta. Algumas vezes, sentia raiva daquilo, e queria simplesmente quebrar as regras, dar asas a sua curiosidade. Mas aquela não era uma dessas vezes.

Se não era, porque ela estava ali? Uma guia espiritual não precisava ficar grudada numa porta. Principalmente quando se tratava da porta da sala de seu superior. Bom, Koenma era baixinho, mas continuava sendo seu superior. Irritou-se com aqueles pensamentos, sacudindo a cabeça com força para afastá-los. Não estava encostada naquela porta porque queria escutar alguma coisa proibida. A sua única vontade era entrar naquela sala; e, ao mesmo tempo, sair correndo dali. Por quê? As razões eram bem simples, de fato. Queria entrar apenas para poder cumprir em paz suas incubências, entregar relatórios, monologar sobre coisas que eram do interesse do Reikai - ou deveriam ser -, apenas isso. E, ao mesmo tempo, queria sair correndo pelo o que havia dentro daquela sala.

Não sabia dizer como aquilo havia ocorrido. Se alguém tivesse lhe perguntado, provavelmente Botan ainda estaria estática, pensando numa resposta adequada. Não havia resposta; simplesmente era. Desde que o vira pela primeira vez, não fazia muito tempo, sentira um medo horrível dele. Ele. Antes, quando pronunciava o nome dele sem conhecê-lo, apenas sabendo que se tratava de um bandido do Makai, não sentia tanto medo. Os nomes não lhe davam medo. Quando teve oportunidade de encontrá-lo, porém, as coisas mudaram. Na sua mente, Jangashi Hiei - era esse o nome do ladrão do Makai, pelo o que ela sabia - deveria ser um youkai monstruoso e cruel, sem escrúpulos e sem coração também. Deveria ter qualquer coisa de monstruoso, como cuspir fogo, soltar os braços, ou qualquer coisa a mais que a imaginação fértil de Botan pudesse arquitetar. Bom, não era assim. Quando viu aquele garoto de cabelos negros e revoltos, com olhos rubros que emitiam uma frieza contrária a sua cor, não precisou de muito tempo para descobrir que ele era cruel, sem escrúpulos, e aparentemente sem coração também; mas não se podia chamá-lo de monstruoso. E foi exatamente esse detalhe que assustou Botan. Como alguém tão terrível poderia ser tão baixo e com aqueles cabelos bonitos? Botan gostara do jeito dos cabelos dele; eram engraçados. E, reunindo todos aqueles fatores, ela acreditava ter uma base sólida para provar que seu medo tinha uma razão de ser: Hiei era simplesmente assustador. Escondia-se por trás daquela aparência neutra, como um monstro esconde-se atrás de uma máscara. Aquilo fazia Botan crer que, a qualquer momento, ele podia fugir de sua máscara, e revelar o quão terrível ele era. E era exatamente isso que fazia com que ela o temesse.

E também era por isso que ela estava parada agora. Estaria lá dentro, na sala de Koenma, se não fosse pela voz de Hiei. Aquela voz fria e meio surda, que, mesmo tendo sido escutada apenas uma vez, fora o bastante para ser gravada nas memórias de Botan, tamanho era o seu medo. De início, assustara-se ao deduzir que Hiei estava ali, no Reikai, e a primeira coisa que deduziu foi que ele provavelmente estaria esganando Koenma ali. Depois, lembrou-se que Yusuke havia derrotado o outro. Pelo o que podia escutar, Koenma dizia algumas coisas sobre a pena que ele deveria cumprir, ao que Hiei respondia apenas com 'Hn'. Era uma resposta que combinava com ele, pensou Botan: era um som pequeno e frio, tal qual seu dono.

E era desde que escutara aquela voz que Botan encontrava-se agora onde estava, ainda sem coragem de se mover. Mesmo depois de derrotado por Yusuke, Hiei ainda inspirava um grande medo em Botan. A guia espiritual piscou, assustada, ao ouvir a deixa de Koenma mandando Hiei sair, enquanto a porta se abria com um clique abafado. Ela se endireitou, sem recuar, tentando parecer o mais firme possível, enquanto suas pernas hesitavam. A sua frente, podia distinguir, em segundo plano, Koenma, afundado na costumeira poltrona, os braços esticados como sempre, parecendo extremamente cansado pelo trabalho, enquanto soltava resmungos de descontentamento. Em primeiro plano, estava Hiei. A aparência estava idêntica a da primeira vez que Botan o vira, excetuando que ele parecia ter se curado dos ferimentos rendidos pela luta com Yusuke. Seus olhos de pupilas rubras, inicialmente, miravam o vazio com um tédio indescritível. Seus movimentos apresentavam-se lentos e calmos, muito diferentes do que realmente eram. E, ou por sentir o olhar da guia espiritual grudado em si, ou por mera distração, os olhos dele desviaram-se do nada e miraram Botan.

Não era um olhar cheio de significados submersos, tampouco expostos; não havia ódio, nem carinho, nem frieza, nem vida. Não havia nada. Os olhos vazios dele contrastavam violentamente com os olhos dela, tão coloridos e vivos, e que estampavam seus sentimentos na cara. E, por trazer esses sentimentos tão expostos, que na mesma hora ele percebeu o quanto aquela mulher o temia.

E Botan também pôde notar que ele descobrira o seu temor. Não notou nada em especial, de certa forma; se Hiei tivesse contido a si mesmo, e não demonstrasse nenhuma mudança na expressão morta que carregava, ela jamais teria percebido que o outro descobrira o seu medo. Mas Hiei não se conteve. Ele não era alguém que precisava se conter, porque nunca sentira algo forte o bastante que precisasse ser contido. Naquele momento, porém, ele se alegrou com o medo de Botan. Ele gostava de inspirar medo, nem que fosse em um cachorro. Aquilo lhe fazia bem, como se alimentasse sua vaidade. E, por nunca ter precisado se conter durante toda a sua vida, ele não o fez naquele momento. Ele sorriu, deixando transparecer na face seu contentamento sádico. Não fazia questão nenhuma de esconder. O sorriso produziu o efeito desejado; ele apenas assustou ainda mais Botan. Os olhos dela pareciam aumentados agora, arregalados de medo e hesitação. E tudo aquilo não durou mais que um segundo. Ele não precisou de mais de um segundo para descobrir o quanto aquela mulher lhe temia, e ela não precisou de tempo nenhum para perceber que seu medo crescera e avultava agora como um monstro. Um monstro sem máscara.

Não passou daquilo. Hiei seguiu em frente, os passos secos ecoando na mente de Botan, ainda assustada. Ele dobrou pelo corredor e desapareceu, sem olhar para trás. Os olhos dela, porém, ainda o miravam, como os olhos de uma caça miram desesperadamente seu predador, rezando para que ele suma. E ele realmente tinha sumido, agora.

- Ei, Botan, o que você está fazendo parada aí?

Era a voz de Koenma. Botan virou-se maquinalmente, sem perceber que apertava uma mão contra a outra. Koenma não olhava para a guia; continuava estirado na poltrona, de olhos fechados, num retrato perfeito de um chefe cansado. Botan caminhou silenciosamente até a mesa dele, o cérebro ainda tentando processar o que viera fazer ali; o medo afetava sua coordenação.

Agora, eles tinham um segredo. Um único segundo, que pertencera apenas a ambos, um momento de medo e satisfação pessoal. Ninguém reparara naquele segundo, ninguém repara no quanto ele passara lentamente: apenas Hiei e Botan. Era o segredo deles, um segredo que não havia como ser expresso em palavras. Botan pousou as mãos sobre a escrivaninha a sua frente; ambas tremiam. Seu rosto assustado mirou o espaço do tampo da mesa que repousava entre suas mãos, e sua boca abria-se num esgar trêmulo de susto. E a sua mente indagava se Hiei também guardaria aquele segredo.