Entre Segredos e Bonecas escrita por Lize Parili


Capítulo 14
Pai e filho - parte 1/2


Notas iniciais do capítulo

Este capítulo foi o mais difícil que escrevi até agora. Por alguns motivos em especial.
Além de ter que incorporar 3 personagens (pai, mãe e filho), tive que encontrar o Kentin dentro do Ken. Mas o mais difícil mesmo foi incorporar o pai do Kentin. Um militar que viveu as atrocidades dos confrontos no Oriente Médio.
Foram mais de 15 horas escrevendo sem parar. Mas acredito que valeu a pena.

Ao todo ouvi 203 músicas inteiras, e cada uma me despertou alguma emoção, ora ajudando a escrever, ora atrapalhando, ao ponto de eu levantar e trocar (se eu contasse estas seriam bem mais que 203...rs).
Como o capítulo ficou grande, dividi em duas partes, para não cansar, mas se puder, leia a outra parte em seguida desta, para não quebrar a emoção.

REVISADO e EDITADO - 03/08/2017



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#07/03#

O relógio despertou até parar de soar e o sol entrou pela janela, iluminando todo o quarto do rapaz, que se jazia jogado sobre a cama, deprimido, solitário, temeroso.

— Ken! Acorde, filho! Você perdeu o horário da escola de novo. — disse a mãe do rapaz, entrando no quarto, sem acender a luz. — Você já faltou dois dias. Tem que ir hoje! — referiu, sentando ao seu lado, na cama. — Vamos, levante. Eu te levo e converso com a Sra. Cameron para te deixar entrar!

— Por favor, mãe. Não quero ir para a escola. Todos estão falando de mim! — pediu ele, contando a mãe que ele e a escola militar eram o assunto do momento. — Todos acham que eu vou ser trucidado na escola militar. Eles dizem que vão fazer pano de chão com as minhas roupas, comigo dentro. — contou, amuado, triste.

Ver o filho daquele jeito fez o coração daquela mãe doer, pois mesmo ela acreditava que ele não havia nascido para ser um soldado. Ela iria até a escola e bateria em cada um daqueles alunos se pudesse. Mas não havia o que fazer a não ser incentivar o filho a superar aquilo.

— Tudo bem, Kenzinho. Não precisa ir a escola hoje. — consentiu, fazendo a vontade do rapaz, como sempre fazia. — Vou ligar para a Sra. Cameron e avisar que você está indisposto. — disse, pedindo que ele levantasse e comesse alguma coisa, pois o pai logo estaria na casa deles.

— Seu pai virá aqui hoje. Não quero que ele te pegue deitado e tristonho deste jeito. — avisou, pois sabia que isso pesaria na decisão do Major, e ela queria ficar com o filho. — Mas não se preocupe, eu não vou deixar ele te lavar! — afirmou.

A mãe do Ken era uma mulher carinhosa, dedicada a ele, mas também, muito protetora. Ela sempre o tratou como se fosse frágil, não o deixando fazer nada que considerasse perigoso, como acampar com os colegas no verão, andar de skate, praticar esportes onde houvesse contato físico, como futebol, basquete, entre outros.

O pai dele, um oficial treinado em situações de guerra, estava sempre viajando em missões, a mando do Exército. Motivo que levou a mãe do rapaz a mimá-lo. Ela não queria que ele sentisse falta do pai, que na visão dela, escolheu a carreira militar à família, motivo que levou o casal ao divórcio. Mas apesar do Major ser totalmente dedicado ao Exército, sempre esteve presente na vida do filho, ausentando-se apenas por ter sido enviado para o Oriente Médio uma semana depois do Ken completar 10 anos.

Durante os 5 longos anos que ficaram sem se ver, Ken e o pai se falaram por cartas e, raramente, pelo rádio ou internet. O contato era muito difícil, pois na maior parte do tempo o Major estava em locais de forte confronto. Por muitas vezes o rapaz buscou conforto com as amigas, chorando nos braços da Emília, com medo de que o pai estivesse em alguma zona de ataque.

O Major sempre foi um homem altivo e autoritário, que botava medo até mesmo nos soldados mais valentes do quartel. Com Ken não era diferente. Sempre que os dois se falavam o pai fazia referência ao tipo de rapaz que imaginava que ele havia se tornado, inteligente e popular com as garotas, levando como base ele estar sempre "rodeado" de meninas, as notas do colégio e os elogios da diretora, pois esta, constantemente, recebia ligações do quartel para saber sobre o Ken. Como ela sabia que o Major estava no Oriente Médio, poupava-lhe dos problemas que o garoto enfrentava com os bad boys, levando ao seu conhecimento apenas as coisas boas.

Ken tinha medo que o pai descobrisse a verdade e se envergonhas dele, então alimentava a mentira, mas não se fazia de conquistador. Ele sempre disse ao pai que era apaixonado pela Sol, garota que o Major conhecia desde criança e que ficaria muito feliz de ter como nora.

Quando o Major retornou para a França e descobriu que Ken era o oposto do que pensou, sentiu-se enganado. Saber que ele havia se tornado um adolescente franzino, medroso, inseguro, visto pelas garotas como um boboca e pelos garotos como mariquinhas foi o suficiente para ele decidir assumir a educação do rapaz. Ken iria morar com ele no quartel e iria para o colégio militar, decisão que gerou conflito na família, já que o filho morava com a mãe e esta era muito apegada a ele.

— Coma o cereal, filho. — pediu a mãe do garoto, que só conseguia pensar em ter que ir para um colégio militar, contra sua vontade, longe das pessoas que conhecia, em meio a garotos iguais aos que o atormentavam na escola. — Não quero que você fique doente. — preocupada, passando a mão sobre a cabeça dele.

— É por isso que ele é assim! — bradou o Major, da porta da cozinha, entrando na casa. — Você o trata como uma garotinha!

— NÃO FALE ASSIM DO MEU FILHO! — alterou-se, pois só a voz do ex-marido já a estressava. — VOCÊ NÃO VÊ QUE ELE ESTÁ TRISTE! Ele nem quer comer! — ponderando-se ao olhar para o filho com ar de "coitadinho", deixando o Major mais nervoso. Ken nem se mexia na cadeira. A presença do pai o amedrontava.

— Triste por quê? Por ter uma mesa farta no café da manhã? — questionou o Major, sem precisar levantar a voz para se fazer entender, — Escuta aqui, garoto. Já vi muita gente comendo restos de lixo e alimentos podres para sobreviver. Eles matariam pelo seu cereal com leite e frutas picadas. — lembrando dos soldados e civis que dia-a-dia enfrentavam a destruição que a guerra gerava. — Então, coma! — ordenou, olhando para o filho, altivo, fazendo-o levar a boca colheradas cheias do cereal, que naquele dia teve um sabor amargo. Não por ser obrigado a comer sem ter vontade, mas por não ter vontade de comer, enquanto muitos passavam fome. O pai havia conseguido deixá-lo desconfortável.

— Não fale assim com ele, Jean! — pediu a mãe do rapaz, querendo poupá-lo das tristes histórias da guerra no Oriente Médio. — Ele não tem culpa do que acontece pelo mundo!

— Vamos conversar na sala, Madeleine! — chamou-a, indo na frente. — Deixe o Kentin refletir enquanto come!

Madeleine o seguiu até a sala, questionando, sem parar, a forma autoritária que ele havia se dirigido ao filho, fazendo o ex-marido ficar mais irritado.

— Até quando você vai tratar o nosso filho como um garotinho de pré-escola, Madeleine? O Kentin cresceu! — virou-se, parando no meio da sala de visitas, entre a ex-esposa e o sofá.

— Eu sei que o Ken cresceu. Eu o vi crescer! — alfinetou o ex-marido, que por estar sempre envolvido em alguma missão militar não pode acompanhar o crescimento do filho de perto. — Ao contrário de você, Major!

— Você sabe muito bem que um soldado não escolhe as suas missões. Ele vai onde tem que ir, por um bem maior! — retrucou, justificando-se. — E eu nunca abandonei o meu filho! — afirmou, cerrando o punho, tentando controlar o estresse.

Por mais de uma hora o casal discutiu sobre o destino do filho. O pai queria levá-lo para morar com ele, na vila militar em que vivia, em outra cidade, onde o rapaz passaria a estudar numa escola militar. A mãe por sua vez queria que ele continuasse com ela, naquela cidade, e que ele continuasse na mesma escola em que estava desde pequenino. Ambos não abriam mão de suas escolhas e a tensão foi aumentando, e como era de se esperar da conversa entre um Major do Exército e uma mãe que mais parecia uma leoa protegendo seu filhote, a discussão ganhou brados e choros.

— EU SÓ QUERO O MELHOR PARA O NOSSO FILHO! E NESTE MOMENTO, O MELHOR PARA ELE É VIR COMIGO!

— E DESDE QUANDO VOCÊ SABE O QUE É MELHOR PARA O KEN? — questionou Madeleine, também aos brados; desde que o filho tinha 10 anos ela o criava sem o auxílio de ninguém, a não ser pela pensão que Jean nunca atrasou um dia sequer e sempre enviou mais do que o estipulado pelo juiz. — NOS ÚLTIMOS CINCO ANOS ELE SÓ TEVE A MIM! EU SIM SEI O QUE ELE PRECISA! VOCÊ SÓ ENTENDE DOS SEUS SOLDADOS E DAS SUAS GUERRAS MALDITAS!

— Madeleine! Eu juro que qualquer hora... — ralhou ele, medindo as palavras. Madeleine nunca respeitou sua profissão, vendo os militares apenas como homens que queriam reafirmar sua posição de machos dominantes no mundo, motivo esse que o levou a passar cada vez mais tempo no quartel e menos em casa, distanciando-se da família, até que o casamento se tornou apenas um pedaço de papel.

— Se você soubesse o que é a guerra não abriria a sua boca para falar dos meus soldados! — repreendeu-a. Seus olhos ganharam um brilho diferente, úmido. As lembranças da guerra não eram agradáveis. — Soldados estes que voltaram para suas mães em caixões lacrados porque escolheram arriscar suas vidas para que outras pessoas tenham o direito de viver! Então, meça suas palavras ou cale a boca! — ordenou, fazendo-a se calar por uns instantes.

Madeleine nunca havia visto os militares como filhos de alguém. Para ela todos eram apenas homens com excesso de testosterona, que no máximo, haviam trocado suas esposas e filhos pela farda. Pela primeira vez ela pensou nos jovens soldados como garotos que um dia brincaram pelas ruas, com os amigos, em meio a risos; que se apaixonaram pela garota mais bonita da sala; que treinaram escondido alguns passos de dança porque a garota dos seus sonhos havia aceitado ser seu par no baile da escola; que sentiram num simples selinho o corpo inteiro formigar e que tiveram vergonha de contar aos pais sobre sua primeira ereção. Pela primeira vez ela se deu conta que muitos deles nunca tiveram a chance de viver o amor verdadeiro, muito menos de dizer adeus as pessoas que amavam.

O silencio se fez presente entre os dois, pela primeira vez desde que o Major retornou do Afeganistão. Silencio que foi quebrado por Madeleine, ao se dar conta que aqueles jovens soldados, um dia, foram como seu filho.

— É-É isso que você quer para o nosso filho? Uma caixa de madeira com uma bandeira em cima? — indagou, aos prantos, deduzindo, erroneamente, as intenções do ex-marido.

— VOCÊ ENLOUQUECEU, MADELEINE! — exaltou-se ao ouvir tal insanidade. Por mais que ele tentasse explicar, a ex-esposa não conseguia entender. Ele sempre seria visto por ela como um homem frio e insensível, e depois daquela conversa, como um monstro dos contos de fadas, cuja única função era levar os jovens cavaleiros de armadura dourada para a morte na gruta do dragão, feroz e carniceiro.

— Quem está louco é você ao pensar que eu vou deixar que transforme o meu bebê num soldado! — retrucou, caminhando pela sala, inquieta, decidida a evitar a todo custo que Jean levasse Ken para viver com ele.

Ouvir Madeleine se referir ao filho como “o seu bebê” foi a gota d’água para o Major, que não aguentava mais ver o filho sendo tratado como um garotinho indefeso e frágil. Pra ele, Ken, ou melhor, Kentin era quase um homem e tinha que ser tratado como tal.

— PARE DE TRATAR O KENTIN COMO SE FOSSE UM GAROTINHO DE FRALDAS! — vociferou. — ELE TEM 15 ANOS! É PRATICAMENTE UM HOMEM!

Da cozinha, Ken ouvia a discussão dos pais, sentado no chão, encostado na parede, perto da porta que ligava o cômodo à sala de jantar. Seus olhos ardiam como se tivessem lhe passado pimenta. Ele nunca tinha chorado tanto. Ver seus pais disputando sua “posse” como se ele fosse um cãozinho o estava matando por dentro. Por que ele, o motivo daquela discussão, não era ouvido?

— Não me interessa o que você pensa, Jean! O que você sabe de garotos como o Ken? — questionou ela, sem desejar uma resposta. — Você só entende de soldados!

— E-E o que a senhora sabe sobre garotos como eu, mãe? — perguntou o rapaz, entrando na sala de visitas, com os olhos marejados e inchados. — A senhora acha mesmo que eu gosto de ser tratado como um garotinho indefeso que precisa ser protegido pela mãe o tempo todo?

Madeleine não soube o que responder. Ken nunca havia lhe falado daquela forma. Embora estivesse chorando, de soluçar, ele estava seguro de suas palavras, segurança que ela nunca havia sentido nele antes.

— E-E o senhor, pai? O que sabe sobre garotos como eu? — questionou, buscando coragem na sua dor. O pai não o aceitava como ele era e isso lhe feria, principalmente porque a única coisa que ele queria, era ser motivo de orgulho para o Major, seu herói. — 5 anos é muito tempo, não acha?

— Querido. Não fique assim! — pediu Madeleine, preocupada. Ela não gostava de vê-lo sofrer. — Nós só queremos o que é melhor para você!

O Major preferiu apenas observar a postura do filho.

— E-Eu não sou um cachorrinho que precise de coleira, — disse ele, olhando para o pai — nem de bolsinha! — e para a mãe, chocando-os com a comparação. — Então, por que vocês não me perguntam o que eu quero? — questionou, aguardando uma resposta, sem obtê-la.

— Então é isso mesmo. V-Vocês não acreditam que eu seja capaz de escolher o que é melhor para mim, então resolveram brigar para ver quem vai passar a decidir por mim! — concluiu com o silêncio dos pais, que o feriu mais do que se tivessem brigado com ele. Ele saiu da sala em direção a cozinha, arrasado, com vontade de sumir, mas sem saber para onde ir.

— I-Isso tudo é culpa sua, Jean! — acusou Madeleine, que não queria admitir sua parcela de culpa. — Volte para o seu quartel e nos deixe em paz! — ordenou, chorando. Mas o Major não sairia dali sem antes conversar com o filho, que pela primeira vez teve coragem de dizer para eles o que realmente estava pensando.

— Aonde você pensa que vai? — questionou ela, ao ver o ex-marido indo atrás do filho. — Isso não é hora dele ouvir os seus sermões autoritários! — reclamou, indo atrás dele, que se virou e a repreendeu.

— Pela última vez, Madeleine. Cala – essa – boca! Eu vou conversar com o meu filho, e se você ousar interferir, eu juro que não respondo por mim!

Madeleine parou no meio da cozinha, com o coração apertado, não por medo do ex-marido, pois este nunca foi capaz de lhe agredir, fosse verbalmente ou fisicamente, mas sim, por não saber como acabaria aquela conversa de pai e filho. A última vez que os dois conversaram, Ken tinha acabado de completar 10 anos e o pai estava indo para o Oriente Médio. Ambos eram diferentes agora; eles não se conheciam mais.

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Notas finais do capítulo

"O que você vai comer hoje?"

OBS. O Ken tem 14 anos, mas como está pertinho de completar 15, o pai já o considera com 15 anos.



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