Gris escrita por Petit Ange


Capítulo 5
Capítulo 4: Laughter and Merriment


Notas iniciais do capítulo

( ...Ah, como eu amo a ironia desse título. 8D )



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GRIS
Petit Ange

Todas as famílias felizes são iguais. As infelizes o são cada uma à sua maneira.
~ Anna Karenina (Tolstói).

 

 

Capítulo 4: Laughter and Merriment. [14]

 

O cheiro de gasolina não era, exatamente, seu aroma predileto. Na verdade, parar num posto sempre era-lhe uma tortura.

Talvez, pensou, devesse ter comprado um carro elétrico.

Enquanto enchiam seu tanque quase vazio daquele líquido de cheiro enjoado, porém necessário, o rapaz tinha os olhos atentos em seu Palm.

De acordo com a informação que o mesmo acusava, Zexion encontrava-se a 140km ao norte de Tokyo, mais especificamente, nas montanhas de Tochigi. Também, ainda mais específico, a 35km de Utsunomiya. As elevações iam de 200 a 2000m. Se seguissem a direção oeste, percebeu, chegariam ao Nikko National Park. [15]

Suspirou pesadamente. Tão longe e, ao mesmo tempo, tão perto do fim...

Se fizesse um desvio, poderia chegar em algumas horas, talvez pouco mais de um dia, em Nagano. É claro, isso numa expectativa ininterrupta.

Mas, com Demyx ao seu lado, o tempo todo perturbando-o, seja para ir ao banheiro ou para comer (que espécie de estômago era aquele?), aquilo seria impossível sem contar as horas perdidas em paradas. Bem mais de um dia, sem nenhuma sombra de dúvida. E com os dois dias que perdera naquela viagem ridícula (ou melhor, “fuga às cegas” seria a melhor descrição possível) só tinha a perder ainda mais em matéria de tempo útil.

Devia ter me livrado dele quando tive chances...”, rosnou para si próprio.

Quem sabe, se fugisse dali (isso exigiria uma coordenação e velocidade boas, mas era o de menos) e o deixasse sozinho... Não era uma má idéia.

Ei, o que vamos fazer agora?

A voz relaxada do moreno fez seus olhos azuis faiscarem rapidamente, num misto de apreensão e instinto assassino.

Por enquanto, nada.

Como assim ‘nada’? Estamos em Nikko!”, respondeu, pondo as mãos na cintura. “Aqui é a cidade dos passeios!

...Por favor, não torne a situação ainda mais intragável.

Intragável”, ele riu. “Isso foi engraçado...

(Mas o olhar de Zexion nessa hora fez a palavra perder, subitamente, toda a graça que havia adquirido).

Ah, deixa eu ver esse Palm aqui! Tá conectado à internet, né? Podemos tirar umas informações!”, sorriu o rapaz de cabelo rebelde.

Não ouse”, disse simplesmente.

É claro, o idiota não escutou uma só palavra (bastante frisadas) do que dissera. Simplesmente tentou tocar em seu precioso meio de comunicação com o mundo exterior e são com aquelas mãos  infames.

Não seja mesquinho!~

Pare com isso!”, bradou um pouco mais alto do que pretendia.

E, mais uma vez, foi sumariamente ignorado.

Assim que Demyx conseguiu roubar das mãos habilidosas o Palm Tungsten T3 (e, por sinal, teve de correr enquanto pesquisava, para não ter seu objeto roubado re-roubado de si) e a “caneta-mouse”, como apelidou temporariamente até lembrar-se do nome da maldita, e assim que viu aquelas informações sobre a geografia e, claro, a quantidade de pontos turísticos possíveis naquela cidade, ele quis imediatamente ir ao NNP por primeiro.

Pense bem, Zexion!”, ele falava, ainda fugindo do outro que tentava reaver sua propriedade. “Podemos visitar os templos dos shoguns e as cataratas Ryuuzu!

Por outro lado, seu acompanhante parecia bem menos inspirado e dado a brincadeiras fora de hora.

Não me importa onde vamos. Devolva-me já esse Palm!

Ah, deixa eu brincar um pouco!~”, Demyx lembrou-se, com um sorriso divertido, que tentou apelar para a falas birra na hora.

Escute, este objeto vale muito mais do que você! Não ouse estragá-lo”, Zexion respondeu, aparentemente tentando comportar-se de novo, enquanto passava a mão pelos cabelos azuis, reavendo o auto-controle.

...Ora, isso foi muito rude da sua parte!”, resmungou.

E, enfim, quando Zexion enfim conseguiu recuperar sua propriedade, foi apenas sob a condição de visitarem o Tosho-Guu.

Não sei se percebeu, mas está quase noite”, ele disse.

Bom, mas ainda tá aberto, não?

É claro que está”, e antes que Demyx falasse algo, emendou rapidamente: “Mas fecharão ao público logo.

Então, vamos correr!

Suspirou.

Depois de viajar quase 48h com um homem que ousara tentar roubar seu carro na maior cara-de-pau, Zexion devia estar acostumado com aquelas frases, ditas o tempo inteiro, que fugiam à norma comum.

Mas o problema é que não estava. E aquele comportamento abusivo e irresponsável o exauria além da conta.

...Receio não ser assim tão simples.

Então não vamos hoje?

Ele pensou. Já que teria de agüentar a presença de Demyx e, sem nenhuma dúvida, teria de passear por Nikko com ele, então, que cortasse, ao menos, um pouco do mal naquela noite mesmo...

Por que não paramos em algum ryokan[16] por hoje e deixamos o turismo para amanhã?”, e aquele era o jeito mais diplomático de fazê-lo.

Um ryokan?

...Você prefere mesmo um hotel, uma pousada ou um minshuku[17]?”, suspirou.

Não, por mim está ótimo um ryokan, mas...”, o moreno continuava encarando o dos cabelos azuis, abismado demais para disfarçar. “É que é estranho ouvir você sugerir um. Tão... Anti-Zexion isso.

De fato. Zexion, infelizmente, não podia negar.

Sei que seria mais econômico pedir por um minshuku numa situação destas. Mas pensei que uma pousada cairia mais ao seu gosto”, explicou. “Afinal, elas têm onsen.” [18]

Demyx calou-se (enfim), pensativo.

Está certo...”, concordou, assentindo para si. “Mas então, amanhã, vamos passear o dia todo!

E Zexion suspirou de novo, prevendo mais enxaquecas.

 

~x~x~x~

 

Estava mesmo perdendo a cabeça. Talvez, o trauma do seqüestro tinha, finalmente, alcançado suas faculdades mentais. Afinal, ninguém entra no primeiro ryokan que encontra e pede uma noite. Isso é para idiotas (Demyx foi a primeira pessoa que passou por sua cabeça ao pensar na palavra).

Zexion, em situações normais, teria espremido daquela cidade cada ryokan conhecido. Teria comparado preços, visto qual valia mais a pena pelo preço mais econômico e, só então, ponderaria se devia pernoitar ali ou se não fosse mais fácil procurar um hotel ou semelhantes.

Mas, claro que isso não aconteceu. Apenas rodou por Nikko até achar o primeiro com termas e pararam por ali mesmo.

...Onde estava com a cabeça?

Quando entraram no quarto que iam dividir (parecia karma. Nunca podia ter um quarto particular, só seu, onde poderia fugir ou, ao menos, ficar livre da ameaça de algemas) ele soube que, afinal, seu inferno estava só começando. Tudo bem, aquele era um ryokan, então era inevitável, mas...

Mas por que os quartos tinham de ser tão pequenos?!

Com um suspiro resignado que não pôde esconder, jogou com mais força do que pretendia sua mala ao chão.

- Não faça isso, Zexy! Vai quebrá-la! – e recebeu uma recomendação de Demyx.

...E depois de alguns segundos silenciosos, nos quais o som da mochila do outro sendo depositada delicadamente ao chão, bem como o sitar, foram os únicos sons a preencherem o cômodo, Zexion pareceu receber um tapa no rosto.

- ...Do que você me chamou, Demyx?

- Hum? – perguntou, distraído.

- Aquele apelido. Repita.

- Ah, Zexy? – sorriu abertamente, como alguém a ser elogiado. – Achei que é melhor do que ficar falando seu nome o tempo todo.

- ...Zexy. – e acariciou cada sílaba, cada letra daquela infamidade. – Zexy...

Demyx sorriu...

- Por que a pergunta? Gostou?

- Se eu gostei...? – “Vou lhe mostrar o quanto”, completou para si.

...E, no momento seguinte, o moreno viu-se correndo pelos corredores do lugar, contendo-se para não gritar por sua vida, ameaçada por um maníaco de olhos azuis.

 

~x~x~x~

 

Muito provavelmente, olhar seu e-mail tornar-se-ia uma tarefa diária na qual ele dedicaria uma boa parte de sua pouca sanidade. No momento em que tocou em seu Palm, Zexion sentiu uma onda de paz invadi-lo. Era como um náufrago que encontra, enfim, uma outra alma viva com quem conversar; a sensação de ter uma tábua de salvação, algo para a plena manutenção de sua tensão permanente.

Afinal, após ter tentado matá-lo por ter sido chamado de “Zexy” (por todos os deuses! “Zexy”! Nem mesmo Ienzo chamou-o daquele jeito, nem quando era um bebê!), Demyx não conseguiu parar a tempo e foi discretamente repreendido pela okami do lugar (que, por sinal, assim como ele, não foi lá com a cara do rapaz de cabelos ‘de muito mal gosto‘, de acordo com a própria).

Você acha que meu cabelo é estranho, Zexy?

E o outro rosnou. “Pare de me chamar assim.

Hum...”, Demyx pareceu alheio àquele ódio óbvio. Na verdade, pareceu mesmo preocupado com seu cabelo ‘estranho’.

...Ora, vai ficar assim por causa disso?”, Zexion impacientou-se com aquele idiota parecendo uma flor murcha. “Ele é diferente, só isso. O meu também.

Obrigado...

Aparentemente, as palavras surtiram o efeito desejado. O moreno sorrira.

“...Zexy!

Talvez, com alguns efeitos colaterais.

E, antes que cedesse ao impulso de, mais uma vez, correr atrás dele para apertar aquele pescoço maldito, Zexion deu a sugestão de que Demyx fosse logo aproveitar o onsen no andar de baixo. O vapor d’água, de fato, preenchia de um calor morno e agradável a pousada.

Ao ser questionado se também ia-o acompanhar, o rapaz meneou a cabeça, dizendo que preferia simplesmente tomar banho e acomodar-se para ler um pouco. Descansar sua mente, melhor dizendo.

Demyx não fez-se de rogado. Sumiu pelo banho masculino e não foi mais visto por um bom tempo. Tempo este que foi bem aproveitado enquanto durou.

Zexion imaginou se não devesse arrumar-se depressa e ir embora dali. Não. Já havia pagado e, além disso, o corpo estava literalmente esmagado de cansaço. Não agüentaria muito tempo dirigindo naquelas condições. O melhor, para evitar acidentes e o Audi negro que, sem dúvidas, ainda estava atrás deles (e, desconfiava, sabendo a posição de ambos em Nikko), era permanecerem no ryokan.

Por isso, ao ver que não tinha lá maiores escolhas por conta da situação, banhou-se com vagar, aproveitando a sensação da água fria refrescando-o daquele calor que prometia incomodá-lo quando tentasse dormir. Vestiu o yukata e decidiu descer. É claro que, neste meio tempo, decidiu também levar seu Palm e navegar pela net.

E, então, estava ali, encarando sua caixa de e-mails.

...Nada muito preocupante. Uma mensagem de um colega que estranhou sua ausência. E propagandas. Respondeu o mais sucinto possível à preocupação dele e deletou sem dó nem piedade o resto.

Aproveitando ser um workaholic sem o mínimo de direção para fins pessoais na rede, fez uma rápida pesquisa sobre os meios mais rápidos de chegar à Nagano. Só pela maldita rodovia.

(Ah, e ainda tinha de contar à Demyx suas idéias... Maldição).

Zexion sabia que viria logo. O tédio. Ele estava sempre ali, sempre esperando sua deixa para que pudesse preencher de imagens, sons e cheiros a mente dele. Hospedar-se-ia ali e o encheria de horrores feitos de cinza e aroma delicado de incenso. E, em dado momento, um lenço branco voaria pelos céus, chamando-lhe a atenção. Uma cena singular e muito bonita.

Ou melhor, seria bonita se ele não estivesse completamente absorvido pelas mãos do cinza da morte de Ienzo. Era aquilo que sua mente mais evitava com a distração; lembrar-se da roupa que ele usava. Tão formal, tão branca, tão... Não era a cara dele. Não combinava com ele. Era como ver um boneco vestido de qualquer jeito. Um boneco com marcas escuras no pescoço. A marca da morte.

E era isso. Muito discretamente as lembranças iam aflorando sozinhas. Zexion sempre via-se indefeso contra elas. Por isso as evitava pela raiz.

O trabalho ajudava-o nisso. Uma distração necessária. Haviam muitas, mas aquela era a mais proveitosa delas. Só isso.

- Oi, Zexy!

...E, então, subitamente acordou.

Ao seu lado, sentou-se Demyx. Estava com o yukata da pousada também, e tinha os cabelos ainda um pouco úmidos.

- ...Já disse para parar de me chamar assim. – disse, desgostoso.

- Desculpa. – sorriu amarelo. – Acaba saindo sozinho...

Por um breve segundo, o rapaz de cabelos em nuances acinzentadas de azul-real pensou, ignorando aquela irritação que saia tão automaticamente quanto aquele apelido inventado pelo outro, em perguntar como fora no onsen.

Mas, suspirando brevemente, percebeu que aquilo não seria necessário. Demyx iria começar a falar sem sequer ser questionado.

- Sei. – disse, então, simplesmente.

E seguiu-se um silêncio distraído, onde ele procurava sites de forma randômica, sem nenhuma utilidade em mente. Apenas esperando.

- ...Você devia ter ido ao onsen! – e, como previu, Demyx falou.

- Ah, é? É tão bom assim? – como um adulto que, com uma comedida ironia, ouve uma criança falar de algo que já era óbvio, Zexion perguntou pacientemente.

- E como! – anuiu, subitamente animado. – É tão grande, você devia ter ido! Se bem que tinha um senhor que só ficava rindo, era meio chato... Mas foi legal, mesmo assim! Realmente devia ter ido!

- Creio que tenho meus próprios métodos de diversão. – concluiu.

- Amanhã você vem comigo, né?~

Zexion ergueu a sobrancelha. Perigosamente. Mas Demyx, com seu sorriso inabalável, parecia alheio aos possíveis significados de seu convite.

- Acho melhor eu manter-me longe do onsen. – concluiu ainda mais convicto.

- Ah, mas por quê~?!

- ...Sou um ardoroso amante do silêncio. – e, subitamente, enquanto falava, deu-se conta de que não trouxera seus óculos de leitura.

(Maldição, como iria ler o cardápio com aquelas letras miúdas?).

- Prometo que me comporto! – insistiu o moreno.

- Isso muito me folga, mas não é minha maior preocupação, Demyx. – ele suspirou. Ah, a enxaqueca iria vir impiedosamente hoje...

- Ah, mas é mais engraçado quando se vai acompanhado!~

Zexion suspirou. – ...Você é uma peste.

E o outro apenas sorriu, jovialmente maroto, como quem concorda plenamente com a afirmação em tom exausto.

Provavelmente, ficariam ali sentados, o rapaz sério agüentando os diálogos sem nenhum sentido do outro rapazinho, até a hora do jantar. Já previa a paciência extra que teria de empregar para ouvir milhares de vezes aquele apelido INFAME, REALMENTE INFAME sair automaticamente da boca de Demyx.

Estranhamente, porém, aquilo não aconteceu. Foi tão rápido que até o deixou chocado, de alguma forma.

Demyx levantou-se. Tinha o rosto livre de qualquer humor. Parecia mais alerta, como um animal acuado que sente alguma coisa. Em si ou em outrem.

- O que foi? – perguntou, então.

- Hum... Acho que vou dar uma volta pelo ryokan! – ele, obviamente, forçou um sorriso. – Nos vemos na janta, Zexy?

- Sim, claro. – assentiu. – E, Demyx...?

- Oi?

- Pare de me chamar disso, diabos!

 

~x~x~x~

 

Ele sabia que devia encontrar Demyx no grande salão onde todos sentavam-se e comiam sushis frescos.

Sabia. E até o fez, decidido a esperar pacientemente o colega de quarto fartar-se de comer como da outra vez.

Mas Demyx não apareceu.

Esperou-o um pouco sentado onde estava antes, vendo distraidamente os outros indo para seus quartos, passando pelas portas que levavam ao onsen, os vapores do mesmo escapando eventualmente, e esperava. A bateria de seu Palm acabou uma hora e ele suspirou, vendo-se sem nenhum meio de distração.

Continuou, porém, esperando. Mas o moreno não apareceu.

Desistindo (e perguntando-se porque foi tão tolo de ficar ali), ele imaginou se, com aquela cabeça distraída e maldita, o rapaz já não estivesse no quarto, assistindo TV e rindo de algum programa imbecil. Já até preparava-se para brigar muito com ele, caso o encontrasse lá.

...Mas Demyx também não estava no quarto.

Zexion sabia que ele não podia fugir. Ou melhor: tinha a ligeira impressão de que era o único ponto de apoio daquele pseudo-meliante estranho. Ele não iria fugir.

Mas estava sumido, a verdade era esta.

Ele teve uma estranha vontade de sair à sua procura, mas contentou-se em suspirar, passando a mão pelos cabelos. Iria dormir, deixando a porta aberta para quando o outro aparecesse, e amanhã conversaria sobre aquela ausência estranha. Precisava, no momento, de descanso.

Porém, não conseguiu dormir. Revirava-se no futon, mas o torpor relaxado do sono não aparecia.

Talvez, por morar na “Grande Mãe”, onde apenas carros e pessoas tinham vez, onde tudo que existia era o egoísmo e o céu sem nenhuma estrela, Zexion estivesse mal-acostumado com coisas mais simplistas – caipiras seria um termo mais adequado –, como, por exemplo, insetos.

De fato, só de ouvir aquela espécie de zunido incessante dos vaga-lumes martelando diretamente em seus tímpanos ele tinha vontade de atirar o travesseiro para longe e praguejar até o sol raiar.

Pensou enfim se, talvez, não fosse melhor levantar-se e ler um livro. Tinha trazido vários para a viagem, justamente porque sabia que ela estava fadada a ser um tedioso fracasso (isso, é claro, antes dela virar-se de pernas para o ar e se transformar num esboço mal-feito de seqüestro). Estava até mesmo relendo um (que não tocava desde Utsunomiya). Poderia distrair-se bastante fazendo isso.

Era apenas levantar-se e buscar seus óculos de leitura. Após isso, acendendo a luz o mais tênue que podia deixar, leria até sentir sono. Como fez na noite passada.

Uma estranha sensação de déjà-vu assaltou-lhe quando Zexion revirou-se em seu futon, buscando uma posição confortável para dormir.

Na noite passada, o quarto também estava silencioso. Assim, daquele jeito.

A noite também estava cheia de estrelas que nunca iriam aparecer no céu da cor do índigo. O céu das cidades estava fadado a ser uma nuvem de poluição solitária, egoísta o suficiente para privar os outros de observar qualquer espetáculo senão o da lua. Nenhuma luz a mais.

Talvez devesse mesmo erguer-se e procurar um livro. Zexion sabia que, se passasse mais uma noite mal-dormida naquela tensão, iria ter sérios problemas.

Estranho... Ele estava acostumado a noites mal-dormidas.

Mas havia um estresse indesejado, um cálculo mal-feito naquilo tudo.

E ele não sabia dizer se era por pensar em Nagano e sua mãe, que o esperava com um dia de atraso, ou se era por pensar em Demyx e todas as confusões que tivera em um pouco mais de um dia.

Desviar tanto assim de sua rota não era, propriamente, seu plano inicial.

Talvez o que o estivesse incomodando fosse aquilo: saber que estava adiando demais uma coisa que doeria muito. Doeria bem mais continuar fugindo.

Zexion sabia muito bem.

Precisava falar com Demyx (onde diabos ele estava?!), assim que tivesse chances (provavelmente, amanhã durante o café), e explicar a situação.

Aquela perseguição ridícula e fantasiosa, digna de filmes de ação – um carro negro, um típico ‘mocinho’ confusa e uma ‘loira fatal misteriosa’ (ok, no caso era um rapaz de cabelo castanho) – teria de esperar um ou dois dias, horas essas que seriam gastas com a total atenção à sua progenitora e ao túmulo do irmão com a alcunha injusta de ‘suicida ingrato’.

Nem que tivesse de levar aquele projeto de meliante consigo, precisava parar urgentemente em Nagano e tirar aquele peso de si próprio.

...Sabia. É impossível. Melhor ler alguma coisa”, suspirou silenciosamente.

Iria terminar Anna Karenina. Com toda aquela agitação, duvidava muito que conseguisse se concentrar de fato. Por isso, uma noite tão tranqüila não merecia pensamentos infames: merecia distração.

...Distração.

Agora que pensara nisso, Zexion percebera, com uma surpresa indisfarçável, que ele estava distraído.

Em nenhum momento havia pensado em sua empresa. Em seu trabalho.

Nas poucas vezes que pensara a respeito de Ienzo, foi com um torpor indiferente, como alguém que olha o passado pela visão borrada da janela de um trem. Era o efeito da distração.

Seria Demyx o responsável por aquele trabalho tão bem feito?...

O som dos vaga-lumes subitamente ficou mais alto. E, então, no próximo segundo foi abafado pelo barulho da porta de madeira sendo corrida delicadamente.

No silêncio sepulcral do quarto, Zexion retesou-se, fingindo dormir.

Ele sabia que seu colega de fuga obrigatória e, atualmente, quarto de hotel estava chegando, não sabia de onde (provavelmente de uma sessão de jogos lá embaixo ou de mais um banho nas fontes termais). O som de seus chinelos batendo muito devagar no chão foi tudo que avisou o rapaz dos olhos azuis de que a presença do outro ainda se fazia constante.

Sentiu que o suor frio brotava-lhe da testa, e ralhou-se mentalmente por estar tão tenso. Era só fingir que estava dormindo; o outro sequer viria conferir.
(Na verdade, temia também ser preso com um algema de novo).

Zexion ouviu Demyx sentar-se em seu futon, com um ruído abafado. Os vaga-lumes berraram outra vez, irritando seus sentidos.

O que este idiota está fazendo?...”, pensava, aguçando seus ouvidos ao máximo.

Não ouvia absolutamente nenhum movimento vindo do outro. Nenhum chinelo sendo tirado, nenhum farfalhar de tecido do kimono ou dos lençóis... Sequer conseguia ouvir sua respiração.

Estranho ele ser assim tão discreto. Zexion e Demyx estavam a poucos centímetros de distância um do outro.

Os futons estavam lado a lado, e por mais que o outro quisesse-os tirar daquele pouco espaço, foi impossível, sem incomodar a própria arquitetura do quarto.

Para seu azar, aquele cômodo foi construído especialmente para que aquelas camas ficassem pertíssimo uma da outra.

Por isso, não ouvir nada vindo dali, nenhuma prova de que o idiota iria virar-se e dormir ridiculamente como uma pedra... Isso foi bastante chocante.

Não. Zexion estava longe de saber o que era choque.

Foi o que pensou quando, em meio ao som dos vaga-lumes, ouviu uma respiração pronunciada. Um gemido de dor.

Não... Não foi um gemido.

Foi um soluçar. A dor estava ali. Apenas o jeito com que foi expresso foi mal-interpretado pelos ouvidos atentos em excesso.

- Ainda não é hora, Demyx... – sussurrava.

...Ele estava falando sozinho.

A escuridão daquele hotel solitário e morno dos vapores da água termal teria sido a única testemunha daquele lamento tão triste. Sim. Aquilo era um lamento. Tão verdadeiro e palpável que sequer parecia, de fato, real.

- Você está indo bem... Está indo muito bem...

Zexion ouviu o som de tecido do kimono.

Aquele rapazinho (ou não, pois era mais alto, verdade seja dita) estava... Chorando? Não. Talvez, contendo o choro que nunca viria.

Sentiu seu corpo se retesar ainda mais, se isso fosse possível.

- ...Ainda não é hora...

Fechando os olhos com mais força do que pretendia, Zexion tentou esquecer aquela voz.

Era tão diferente. Sequer parecia a voz do mesmo Demyx que estava sempre irritando-o e fazendo coisas desnecessárias. Não era a mesma voz.

E, ao mesmo tempo, ele tinha certeza de que era o mesmo idiota.

- ...Ainda não é hora de desistir...

Repetindo como se fosse um mantra, o moreno continuou tremendo. Continuou engolindo soluços de dor. Talvez tristeza.

Talvez porque não era um idiota. Talvez porque, simplesmente, fosse humano.
Encolheu os ombros.

E desejou jamais ter ouvido aquele lamento. Porque, naquela noite onde os vaga-lumes berravam tão irritantes, ele percebeu que Demyx, aquele idiota, existia.

Era só mais um humano como o próprio Zexion. Aquela descoberta acidental fora-lhe tão intrigante quanto assustadora.

E ele soube que não conseguiria mais dormir.

Cada vez que fechasse os olhos, lembrar-se-ia dos soluços que jamais foram externados. Que pensaram estarem sozinhos em sua dor.

...Que pareciam estar rasgando o corpo do outro.

De fato, não dormiu.

Apenas desejou a noite toda virar-se e ver que tipo de rosto Demyx tinha quando dormia. Seria o mesmo semblante tranqüilo e infame que exibia o dia inteiro?

...Ou seria um rosto triste de quem estava prestes a chorar como se o mundo houvesse terminado?...


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Notas finais do capítulo

[14] Faixa 22 da OST 1 de Kingdom Hearts II.

[15] A título de curiosidade: o NNT, na verdade, espalha-se por quatro estados. São eles: Tochigi, Gunma, Fukushima e Niigata.

[16] Ryokan é uma espécie de pousada tradicional japonesa, onde os hóspedes usam yukatas, desfrutam de onsen comunais, têm acessos à jogos e etc.

[17] Minshuku é o termo japonês para as casas transformadas em pousadas, onde hóspedes desfrutam de quartos particulares, com direito a café-da-manhã.

[18] Termo japonês para as fontes de águas termais.



[ Agradecimento especial à Kane-ou, que deu a idéia da analogia aos "mocinhos comuns" e "loiras fatais" dos filmes de ação. XDDD ]



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