O portador da lua escrita por Daughter of Apollo, AAJ


Capítulo 4
A hora certa




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Chapeuzinho chegou à casa um pouco cansada. Maria a obrigara a trabalhar bastante, e a visão que tivera a deixara tonta. Graças a Deus conseguira disfarçar. Aquilo a assombrava cada vez que fechava os olhos. Droga, tinha que se arrumar logo. Stefan não podia ver uma noiva toda desmantelada e cheirando a cebolas.

– Filha? – Sua mãe chamou ao vê-la.

– Sim, mãe?

– Preparei um banho lá em cima. Se apresse, está quase na hora de aparecer.

– Sim senhora!

Selene galgou a escada correndo, tirou a roupa rapidamente e mergulhou na banheira de madeira. A água ainda estava quente. Banhou-se, secou-se e vestiu o vestido azul claro que sua mãe arranjara. Ele tinha algumas fitas azuis escuras no alto das mangas e um decote reto que não mostrava nada.

Pouco depois, sua mãe subiu e penteou ternamente os cabelos ruivos. Como sempre, eles se moldaram em ondas. Antenodora a coroou com uma pequena e delicada faixa de flores brancas cheirosas.

– Você está linda, meu amor.

– Obrigada, mãe.

A mãe suspirou. Seu anjinho crescendo a enchia de orgulho e medo simultaneamente. Era tão difícil ter de entregá-la a seu noivo dali a pouco tempo que seu coração se afligia. Por muitos anos foram ela e a filha vivendo juntas, agora ela estava próxima de partir...

Selene pegou sua capa vermelha em mãos e já estava pronta para colocá-la quando sentiu o puxão da mãe.

– Você não vai com isso! – A mulher disse, ríspida. Sua voz soou como um chicote.

– Mas mãe...

– Nada de mas. Deixava antes por memória de sua vó. Já se foi o tempo das menininhas que passeavam na floresta. Você está noiva, é um novo começo.

– A minha capa... – Selene fungou. Era a única lembrança da sua amada e querida avó. A mulher que contava histórias de fadas, aventuras e outros mundos e que a animava a descobri-los, a conhecer a magia... A mulher que tão pacientemente teceu sua primeira capa e a presenteou. Que era doce, engraçada e ás vezes um pouco louca. Não queria esquecê-la.

– Deixa disso, Selene. Agora arrume suas coisas. Eu já volto.

– Certo. Sim senhora.

Selene se desgostou no momento em que a mãe levou a capa embora com ela. Afinal, a menina que a desobedecia ainda saltitava em algum lugar dentro dela. Contudo, como contrariar a mãe? Fizera isso uma vez e tivera um péssimo resultado.

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Antenodora andava apressadamente. Ainda tinha que economizar tempo para o festival. O vestido que havia arranjado para o festival era ótimo, bem ao estilo que talvez Stefan gostasse. Inocente, comportado, educado. Sua filha ficaria li.

A pequena trilha por trás da casa estava um pouco escura. Antenodora precisou caminhar com cuidado. Quem dera seu marido ainda estivesse vivo para cuidar de coisas como essa, para proteger a ela e a filha e tratar melhor dos pretendentes. Uma mãe se esforçava, no entanto um pai fazia uma falta enorme.

Parou. Ali estava bom. Ainda conseguia ver a janela do quarto de Selene dali. Ela segurou a capa vermelha tão preciosa de sua unigênita. Seria até agradável não vê-la mais usando aquilo, ela trazia lembranças ruins, presságios daquele animal vindo do Inferno.

Antenodora embolou a capa descuidadamente e, com toda a força que seus braços possuíam, atirou-a o mais longe que pôde entre as árvores.

– Não há mais garotinhas para você atacar aqui! Esse tempo já se foi! – Gritou. Não viu aonde a vestimenta fora parar, só se virou e andou na direção da casa.

A capa pairou no ar por um breve momento, até que aterrissou levemente em um galho de uma das árvores. E lá ficou a capa da Chapeuzinho Vermelho, sua marca registrada. A única memória de sua falecida avó, que o fez com tanto carinho e amor para, agora, ser símbolo de tragédia.

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– Vamos filha, temos que nos apressar. Não queremos chegar tarde, sim? – Antenodora estava com o tom de voz mais leve, parecia menos estressada por ter jogado a capa fora.

– Sim mamãe. - Do fundo do coração, Selene achou a frase desnecessária, mas ela não estava prestando atenção ao que fazia.

Toda a atenção de Selene estava na capa e sua avó. Queria ter sido mais cuidadosa e seguido os conselhos de sua mãe. Claro que ela não teria sua avó para sempre, e a capa uma hora iria rasgar de tanto uso, mas pelo menos não teriam trágicas memórias. Por pouco ela não havia sido devorada, nos dois sentidos, por aquele lobo cruel.

A Ex-chapeuzinho Vermelho olhou para o céu procurando afastar as más memórias e não chorar em um dia tão especial quanto esse. Nada iria atrapalhar a Colheita, aquele seria um dos melhores festivais já feitos. Não haveria lobos, nem sangue disfarçado de vinho, nem carne humana, nem mortes, nem refeições no duplo sentido. Iria ser somente ela, sua mãe, seus amigos e Stefan.

E assim foi o caminho pela estrada afora, com a Ex-chapeuzinho arrumando milhões e milhões de possibilidades do festival ser um evento que não seja amaldiçoado pelo seu passado. O que Maria disse, apesar de cruel, era a verdade. Aquelas mortes só estavam acontecendo por sua causa, ela era a culpada, deveria ter morrido naquele momento... Não, lógico que não! Sua mãe seria alvo de grande tristeza, lógico que não poderia ter morrido naquele dia, que pedido egoísta!

– Lene! Aqui! – Carmem acenava animadamente para onde a Ex-chapeuzinho estava.

Selene levantou a mão para cumprimentar a amiga, mas sua mãe segurou seu pulso impedindo-a.

– Não seja escandalosa que nem ela. Olha só como ela demonstra sua alegria fácil... Sabe, acho que ela não é uma boa companhia para você, mas... – Sua mãe ia falar algo que estava entalado em sua garganta, mas ela não conseguiria. Sabia muito bem que magoaria a filha. – Deixa pra lá.

Antenodora deixou sua filha com Carmem e decidiu se juntar ao seu próprio grupo de amigas. Querendo ou não, as mães também tinham suas amigas e seus problemas.

Voltando para nossa Ex-chapeuzinho, esta abraçou forte sua amiga assim que sua mãe deu-lhe as costas. Não podia mentir, estava assustada por causa do lobo, tinha medo que ele atacasse seus amigos, seus conhecidos, qualquer pessoa!

– Ei, não vai chorar hoje, não é? Você tem que ser forte. Eu sei que é eu não tenho muita moral pra dizer isso, que eu só tenho a ideia do que você passou, mas não acha que está na hora de superar isso?

– Está - A voz da Ex... De Selene foi fraca e abafada, como uma casa destruída sendo reconstruída aos poucos.

– Então pare de me abraçar que o Stefan está vindo pra cá!

E assim as duas mulheres recompuseram e sorriram um para a outra.

Carmem beijou Selene no rosto e se afastou, sorrindo. Stefan se aproximou, pegou e beijou as costas da mão da garota. Selene corou com o ato, certa de que sua mãe estaria observando. Talvez ela aprove, pensou, pois Stefan está sendo muito cordial.

– Olá, Selene. Está muito bonita.

– Obrigada, Stefan. Você está muito bem, também.

– Obrigado. Gostaria de dançar?

– Claro.

Selene repassou na cabeça todas as regras que a mãe ensinara e as praticou. Stefan pousou a mão em sua cintura e ela em seu ombro, enquanto sua outra mão era segurada pela dele. A Chapeuzinho estava nervosa, mas Stefan a acalmava. Ele era seguro e calmo.

– O vestido lhe cai muito bem – Stefan falou, observando como a vestimenta a deixava bonita não mostrando nada, exatamente o estilo de sua noiva. Uma beleza inocente, submissa e pura.

– Obrigada – Chapeuzinho ruborizou. O que ela diria? – Você dança bem.

– Agradeço o elogio e digo o mesmo de você.

– Minha mãe me ensinou.

Eles giraram juntos em volta da enorme fogueira. Selene lembrou-se de que amava fazer aquilo nos últimos festivais. A luz vermelha refletia-se em seus cabelos ruivos, quase tornando-a parte das chamas.

– Devo dizer – Stefan a tirou de suas divagações – Que você ilumina este festival como a lua ilumina a noite, Selene. Sortudo é o homem portador da lua.

Os olhos de Lene iluminaram-se. Stefan era tão gentil!

– Fico lisonjeada, Stefan. É ótimo estar aqui com você.

Eles dançaram mais um pouco, entregues ao lindo momento. Selene esqueceu-se de tudo. Lobos, assassinatos, corpos estraçalhados, vinho escorrendo, caçadas e até da mãe. Ela só queria dançar em volta da fogueira. E dançou. Dançou com Stefan, com outros homens e pulou com Carmem à luz vermelha. Parecia a menina de antes, livre e selvagem. Sentia uma enorme felicidade. Até que viu, pendurado em um galho baixo e próximo do campo, um tecido rubro...

A menina paralisou no lugar, o que preocupou o pobre Stefan (não que ela estivesse ligando muito para isso). Olhou para o rosto preocupado de Stefan, mas não o enxergou. Sua mente mandava-a retornar o olhar para aquele manto vermelho e foi o que ela fez. Não havia dúvidas. Era mais do que óbvio. E ela não queria, mas era impossível não cogitar a hipótese de que a criatura, a besta, o seu fantasma, o seu passado, tinha colocado aquela capa ali. O lobo estava à espreita, apenas esperando a hora certa para atacar.

O problema é que, enquanto a nossa Chapeuzinho estava chegando a conclusão de que o lobo estava esperando a hora certa para atacar, a hora certa para atacar havia chegado.

– Selene, saia daqui! - A moça voltou a prestar atenção no que acontecia a sua volta, além daquele tecido chamativo que parecia chamar somente ela, e percebeu que realmente a hora certa para atacar estava a sua frente.

O sangue jorrou pra tudo quanto era lado. O grande lobo, que arrepiava o mais fraco pelo do corpo de Lene, atacava primeiro a jugular de um cara qualquer que, no momento, estava irreconhecível. Ele já iria partir para a próxima vítima, quando seu olhar cruzou com o de Selene.

Foram tão poucos segundos e tantos significados.

Ele, rapidamente deu um pulo e começou a correr atrás dela. Ela despertou de seus pensamentos e memórias e correu em direção a capa, pegando-a e não tendo tempo de desviar, continuou correndo pela floresta.

As patas dos lobos batendo no chão eram tão audíveis que fizeram alguns pássaros se assustarem e voarem para longe, e era esse barulho que fazia com que a chapeuzinho corresse cada vez mais rápido. Seus pés mal tocavam o chão quando ela decidiu vestir a capa, já que a floresta estava tão fria.

Foi então que ela chegou numa encruzilhada, uma encruzilhada que ela conhecia como a palma da mão. De um lado, o caminho do rio, o caminho mais longo. Do outro, o caminho pela floresta, o atalho. Ambos levavam para a antiga casa de sua avó e também para quando era menina e sua mãe dava broncas e broncas seguidas.

Vacilando um pouco com a duvida entre qual caminho seguir, acabou tropeçando e caindo de cara no chão, tendo uma queda menos brusca graças aos seus próprios braços. O ruído atrás de si parou completamente, não se podia ouvir mais nada atrás de si além da respiração ofegante do animal. Acabou. Era o fim, seu fim. Estava mais do que claro que deveria se levantar e correr pelo caminho mais longo, no entanto, também estava ainda mais claro que se fizesse isso o lobo pularia em sua jugular e tudo estaria perdido.

Quando tudo, absolutamente tudo estava no mais terrível silêncio, além da confusão nos pensamentos da moça, ela mesma decidiu se levantar. Por que não arriscar? Não tinha mais chances mesmo, ele estava atrás de si e pronto para dar o primeiro golpe. Não se casaria com Stefan, não veria sua amiga se casar, não veria sua mãe em paz, mas talvez trouxesse paz para a pequena vila.

Isso, claro, antes dela desmaiar.


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Notas finais do capítulo

Agradecemos aos comentários e aos leitores.



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