O portador da lua escrita por Daughter of Apollo, AAJ


Capítulo 3
Que olhos grandes você tem




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Selene deitou sua cabeça na floresta e ficou observando o céu. Mesmo estando com o Sol brilhando ali no topo, as nuvens brancas sendo movidas pelo vento, a chuva continuava a cair fortemente. Mas o dia estava tão bonito que ela nem se importava. E, se olhando melhor, percebeu que não estava com seu corpo adolescente, e sim com o de criança. Olhando melhor, estava deitada na sua capa vermelha que sua avó havia feito. Sua avó...

Que aconteceu com sua avó? Não conseguia se lembrar, por mais que forçasse sua memória só se lembrava de sua mãe a mandando ir visitar a sua avó para... Para... Bom, não importa o motivo, era só ir na casa de sua avó e voltar.

Fez o caminho automaticamente, cantava sem comando. Parecia que não tinha controle sobre seu corpo, mas também não se importava. No meio do caminho havia uma bifurcação. Dois caminhos diferentes, sendo um o atalho pela floresta e o outro um caminho mais longo pelo rio. Não conseguiu fazer com que seus pés fossem pelo caminho do rio, simplesmente voltou a cantarolar e se pôs a ir pelo atalho. Tinha um mal pressentimento ao ir por aquele caminho, entretanto não se importava. Observava o céu, observava o chão, contudo não olhava para as sombras. Cantarolava com os pássaros, imitava alguns bichos, mas não olhava para os olhos. Rodopiava na floresta, balançava sua cesta, mas não olhava para o lobo.

E então, Selene piscou os olhos surpresa. Estava em seu quarto, na sua cama, na sua casa. Não queria reprisar aquele momento. Não, não. De novo não. Suas mãos tremiam e ela sentia sua respiração acelerada. Ela podia sentir todas as veias do corpo, ou essa era sua impressão. Estava de noite, podia muito bem ver a luz da Lua iluminando boa parte do seu quarto, mesmo que não o deixasse tão iluminado como o Sol fazia. Tentou se sentar na cama, e ao fazer isso ouviu um uivo. Igual ao uivo que ouvira noite passada. Seu corpo todo retesou, ela ficou totalmente imóvel equilibrada somente por um braço. Uma posição bem desconfortável.

O coração batia tal qual as asas de um colibri. Selene não ousava se mover, mesmo com a posição ruim. Um medo irracional a tomava. Parecia que o lobo iria saltar pela janela do pequeno quarto e atacá-la. Mas o quarto ficava no segundo andar e uma parte ainda sã de sua mente sabia que nem a fera teria capacidade para saltar tão alto. Pelo menos era o que achava.

Selene sentiu algo úmido no seu antebraço. Sua gatinha placidamente esfregava a cabeça no local e se enroscava entre o corpo da menina e as cobertas.

– Quer um abrigo, não é? – Selene sussurrou para o animalzinho – Pode ficar aqui.

Ela conseguiu recuperar os movimentos no exato momento em que o lobo cantava novamente. Levantou da cama e em silêncio se dirigiu à pequena penteadeira que continha alguns itens femininos e uma bacia com água. Calculou cuidadosamente suas ações e molhou os dedos na água fresca pelo ar da noite bem na hora em que o uivo terminava. Levou as mãos ao rosto, tentando aliviar a tensão.

O ruído das patas do bicho fazendo leves movimentos chegava a seus ouvidos. Ela praticamente morria do coração com os sons baixos. Então, Selene percebeu que não se lembrava de haver dormido. Nem de ter realizado todas as tarefas da tarde. Ela tentou recordar: foi à casa de Stefan, depois saiu por medo da bronca da mãe e... Aquele corpo na floresta, o noivo a carregando... Sangue, sangue em todo o lugar... Corpo todo destroçado... O uivo de novo.

Selene começou a arfar. Ela não conseguia respirar.

– Eu tenho que me livrar dele...

Selene estranhou que sua mãe não acordara. Será que passara mal e o curandeiro dera alguma erva calmante a ela? Ou estava tão cansada que simplesmente dormiria até o amanhecer? Não importava, pois Selene já se sentia incrivelmente atormentada com aquele lobo.

Novo som.

Então o quadro mudou: uma curiosidade quase louca apossou a inocente menina. Ela desejava ardentemente espiar através da janela. Queria ver a besta, relembrar os detalhes, a cara. Era uma fascinação da presa diante de um predador. Sua razão foi embora diante daquilo. Ela queria ver.

Andou na direção da lateral da janela e sentou no chão. Seu corpo era uma mistura de medo terrível e excitação. Ela contou os segundos e o uivo cessou. Relutante, Selene ergueu a cabeça até seus olhos aparecerem acima da janela. Droga, não conseguia enxergar, mas escutou o som das patas. Ele podia enxergá-la.

Chapeuzinho tateou o chão e apertou os dedos em torno de um pedaço de madeira lascado. Não era grande, no entanto, serviria para se defender. Levantou. A primeira coisa que viu foram os olhos do lobo.

Que olhos grandes você tem.

Realmente, os olhos dele podiam englobar uma alma. Ele parou de fazer barulho e a fitou diretamente. Um calafrio horrível transpassou o corpo de Selene. Suas mãos não tremiam. Ela estava paralisada. O animal rosnou e uivou, contudo ela não conseguia proferir uma palavra, um grito de socorro. De repente, surgiu uma flecha no ombro do lobo. Ele pareceu surpreso. Um jovem se aproximou carregando uma lança rústica de caça nas mãos e outro com uma arma semelhante veio pelo outro lado. A besta recuou o corpo, e isso poderia ser interpretado como um gesto de medo, entretanto, Selene entendeu o jogo. Ela queria ter avisado.

O primeiro homem arremessou a lança contra o lobo que recuou e saltou no pescoço do jovem. O autor do disparo gritou. O lobo arrancou sua garganta com os dentes afiados e morto caiu no chão com a cabeça pendendo no que sobrara de músculos do pescoço e o pedaço de sua coluna. Selene não desviou o olhar.

O segundo caçador atirou sua arma, sem sucesso como o primeiro. Antes que sua morte chegasse, mais uma flecha atingiu a fera quase no mesmo lugar. O caçador saiu gritando de extremo terror. O lobo fugiu. O líquido carmim do corpo manchava a grama e era o mesmo que Selene sentia manchá-la em sua mente. Ela se sentia coberta de sangue, louca por assassinar um humano.

O que estou pensando? O que estou fazendo? A clareza a inundou de súbito. Ficara louca? Por que chegara tão perto da janela? Era idiota por acaso? Chapeuzinho se auto estapeou mentalmente, apesar de a mórbida curiosidade ainda a dominar. Era um medo tão grande que a enlouquecia.

– Selene? – A voz conhecida a chamou lá de baixo.

– Stefan?

O loiro a fitava com um arco de caça nas mãos, provavelmente se perguntando por que ela estava ali. Alguma coisa desviou sua atenção. Ele gritou uma frase ininteligível a alguém e voltou a olhar Selene.

– Eu mesmo. Você está bem?

– Sim. E-eu ouvi os uivos do lobo e... Bem... Eu acordei e quis verificar. Obrigada, Stefan. Você o acertou.

– Esse é o meu trabalho. Agora é melhor voltar para dentro. Não quero que se assuste ou fique doente com frescor da noite.

Selene obedeceu sem responder. Não era situação para educação. Ela nem poderia sair para ajudar, uma vez que era noite e havia uma besta lá fora. Isso era trabalho para homens. Homens corajosos como Stefan. Não havia sentido em segurar tão fervorosamente aquela pequena estaca de madeira em mãos, contudo, Selene não a largou.

Na manhã seguinte, Selene estava na cozinha de Maria para ajudar nas preparações do festival. O festival se resumia em uma colheita, era um dos eventos favoritos da chapeuzinho quando pequena. Ela adorava roubar alguns frutos antes da hora e dançar ao redor da fogueira, mas recentemente essas eram as ultimas coisas que a garota queria fazer.

Não só ela estava ali na casa de Maria, como também Carmem e algumas outras mulheres que também haviam se oferecido para ajudar. Sua tarefa era simples: Ela precisava cortar tiras de carne de um porco. A dificuldade não estava na tarefa, e sim em Maria gritando com Carmem como se esta fosse uma empregada, além das notas agudas que conseguia alcançar.

– É sério mesmo que eu vou ter de ficar dando assistência só para você? Você se acha o que? Uma princesa?

Não duvidava nada de que seus gritos pudessem ser ouvidos do outro lado da aldeia. Massageou as têmporas, mas rapidamente pegou uma faca grande e afiada e começou a desfiar o porco assim que notou que Maria iria começar a brigar com ela também. Ninguém sabia o porquê de Maria ter um temperamento como esse, estar sempre estressada, sempre com raiva da vida. Dizem que ela é assim por causa das dívidas, mas não há muita certeza.

– Você não sabe rechear um frango? É tão inútil assim?

Errou o corte pela nota aguda que Maria conseguiu alcançar. Poderia ser pior, poderia estar ouvindo os uivos do lobo. Ou então vendo outra pessoa morta. Ou então uma pessoa sendo morta.

– Mas eu estou fazendo do jeito que você me ensinou...

– Eu não te ensinei a ser inútil!

Selene parou de tentar cortar o porco. Apenas observava-o, ou melhor, observava ao sangue que escorria da pele rosada do porco. Acabou se lembrando de quando era pequena e fora na casa de sua avó, de quando ela estava de cama e disse gentilmente que a chapeuzinho vermelho podia beber um pouco do vinho.

– Eu estou fazendo certo!

– Só na sua cabeça mesmo, cabeça oca!

E pensar que aquele vinho, nem vinho era! Além disso, também estava se lembrando do corpo estraçalhado que havia achado na floresta. Totalmente irreconhecível, com alguns membros nas árvores, todos espalhados, todo o vinho derramado...

– Por favor, pare de gritar – Carmem havia notado que estava atrapalhando as outras mulheres, além de estar chamando atenção demais

– Eu grito o quanto eu quiser! Não será uma menininha como você que vai dar ordens em mim.

E falando em mortes, também estava se lembrando da sensação que teve ao ver o caçador sendo morto pelo lobo. Do vinho que se espalhou após o lobo ter alcançado a jugular do caçador, da cor que a terra ficou após ter sido colorida de vinho. E pensar que aquele vinho, nem vinho era!

– E você Selene? Está com medo de porcos agora? Não basta o lobo que está infernizando a vila? E tudo isso é culpa sua! Medrosa, amaldiçoada!

A ruiva se virou lentamente para Maria e encarou a expressão furiosa da mesma. Imaginou seu vestido creme pintado de vinho, o vinho de Maria, além de suas mãos cobertas pelo mesmo vinho. Imaginou também que sabor teria esse vinho. Seria doce? Amargo? Estaria bom? Por que não provar?

– Lene?

A voz de Carmem cortou o silêncio e foi então que a garota havia percebido que estava calculando o modo perfeito de atravessar a faca que estava em sua mão no pescoço de Maria.

– Hm? Desculpa, eu me distraí – Selene se virou novamente. O que tinha dado nela? Olhou suas mãos: o único sangue que havia era o do porco, que era muito semelhante ao humano. Selene se amedrontou com ele. Não queria ter um ataque de loucura novamente. As outras mulheres cochicharam um pouco e logo esqueceram.

Maria então passou a gritar com uma pequena menininha que mal aprendera a colher um rabanete. Selene sentiu pena dela, no entanto, não podia fazer nada. Não com aquela faca na mão enquanto destroçava o animal.

Logo depois, Selene separou as tiras prontas e as pôs em uma tábua para secar. Decidiu ir ajudar Carmem que desistira do frango e fora cortar cenouras, muitas cenouras, para o assado.

– Lene, está tudo bem? – A amiga perguntou. As duas estavam sentadas em banquinhos junto de um monte de legumes laranjas.

– Está. Acho que foi só uma tontura. – Do que adiantava mentir para a melhor amiga? Carmem a conhecia tão bem como a palma da própria mão. Elas eram praticamente irmãs desde que nasceram. Não havia sentido proferir uma inverdade que seria detectada na mesma hora. Incrível como eram diferentes na aparência. Mesmo ambas sendo ruivas, a semelhança parava por aí. Os cabelos de Selene iam quase até sua cintura, enquanto os de Carmem passavam uns dois palmos dos ombros. Carmem era forte, tinha uma altura considerável, ombros largos e independência e descontrole terríveis. Selene, bem, era submissa, comportada e obediente desde o dia do acidente, mesmo que em raros momentos voltasse a ser a menina livre de antes. Ela não era muito alta e sua pose mostrava sua inocência e pureza.

– Que bom. Deve ter sido efeito de ontem. E eu nem tive oportunidade de falar sobre isso com você. Eu fiquei realmente preocupada quando soube que havia desmaiado. Quando te vi nos braços de Stefan pensei que havia morrido também. Você me deu um susto enorme.

– Ah, Carmem, eu me sinto horrível. Eu acho que vou enlouquecer. Ontem eu vi ele na minha janela e...

– Shh, calma Lene. Calma. Você precisa parar de pensar nisso. Foque no festival, na festa, nas danças terá com seu noivo. Deixe o resto para os homens e para as velhas se preocuparem. Stefan não o acertou duas vezes ontem? Então, eles com certeza conseguirão. Agora para com isso antes que seus cabelos fiquem brancos.

Selene suspirou.

– Você está certa. Vou tentar não pensar no assunto.

– Isso aí, agora vamos continuar antes que a Princesa das Vacas venha se intrometer aqui.

– Certo.

Selene começou a cortar e se sentiu bem. Era bom estar na presença de Carmem, era como estar num lugar agradável. Talvez fosse seu ar confiante, a pequena ruiva não sabia dizer. Ela cortou e cortou as cenouras em rodelas e quadradinhos até ouvir o chamado irritante de Maria.

– Quantas vezes vou ter que gritar, sua rata medrosa?

Selene emitiu um som de desagrado.

– O que quer?

– Leve a bacia com os tomates para a casa de Dalila. E traga os temperos que elas te entregarão para cá.

– Certo, estou indo.

Selene não viu razão em discutir. Afinal, alguém precisava fazer o trabalho e ela não queria entrar em contendas com Maria naquele momento, na frente de todos e ainda se recuperando. Ela pegou a quase pesada vasilha de tomates, ligeiramente feliz por Dalila morar do outro lado da aldeia e saiu.

– Pela estrada afora eu vou bem sozinha...

Ela cantarolou. Quem canta os males espanta, não é verdade? Bem, se fosse, ela cantaria até morrer. Um homem a cumprimentou ao passar por ela. Ela lembrou vagamente dele, ah, sim, o dos olhos cor-de-mel.

– Oi – ele disse.

– Olá – Ela respondeu.

O moço que cuidava de uma padaria a saudou e o ferreiro próximo a casa de Stefan também. Tão pouca gente na rua para estarem tão próximos do festival. Normalmente todos estariam correndo de um lado a outro a fim de se prepararem e desejarem uma boa festa aos demais. Agora bem...Não havia muitos. Chapeuzinho amaldiçoou o lobo. O animal desgraçado que atormentava não só a vida dela, e sim a de todos ali. E que agora deveria estar correndo na floresta, planejando um próximo ataque e... Selene parou.

Ao seu redor, árvores a cercavam. Ela estava no meio de árvores altas e de aspecto tenebroso aos seus olhos. Não havia quase luz, apenas a da lua que não iluminava tanto quanto a do sol. Selene virou-se para os lados, largou no chão a vasilha com tomates e se escondeu dentro de sua capa vermelha. As sombras a alcançavam ali, dançavam ao redor dela, pintavam as árvores.

– Onde estou? Tem alguém aí?

O desespero tomou conta dela. Só podia ser sua imaginação, entretanto, parecia ser real. Ela desejou que parasse, que a coisa parasse, mas cada vez que abria os olhos tudo continuava ali. Deu um passo a frente e um enorme e assustador lobo marrom surgiu. Selene soltou um grito que atroou os ares. Seus pés não deixavam que corresse, que fugisse dali. O animal lentamente andou para ela e quase encostou o focinho em seu rosto. Caminhou ao seu redor enquanto suor escorria das têmporas de Selene. Ela não tremia, ficou paralisada como uma estátua. Uma presa diante de um predador.

Que olhos grandes você tem.

O lobo fitou-a nos olhos.

Assim posso vê-la melhor.

Que orelhas grandes você tem.

Selene movimentou os dedos nervosamente.

Posso escutar teus movimentos.

Mas que focinho grande você tem.

O lobo remexeu com as patas no chão. Para um lobo, tinha uma expressão séria.

É para seguir seu rastro.

Que dentes grandes você tem.

Selene recebeu um uivo como resposta, apesar de não estar mais ali e sim indo entregar os tomates para Dalila.


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