Marina escrita por Esthellar


Capítulo 1
Miles away


Notas iniciais do capítulo

Música usada: "Set the fire to the third bar" - Snow Patrol feat. Martha Wainwright (http://www.youtube.com/watch?v=NPKDfBdxkMM)



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Capítulo único:

"Miles away"

...

Eu tinha nove anos quando nós fomos juntas à praia pela primeira vez. Lembro-me perfeitamente de nossas mães gritando sobre o quanto nossas roupas ficariam sujas, enquanto a gente simplesmente continuava a correr e a jogar água uma na outra.

Naquela época, eu não tinha medo de nada. Não pensava no futuro nem em que profissão seguir. Não havia responsabilidades, problemas, tristezas. Tudo era apenas a felicidade de estar ao seu lado, sob o céu azul e o sol, que nos banhava com extrema calidez.

Lembro-me, também, de sentarmos na areia, cansadas, e de ficarmos olhando para o mar, tão calmo, tão oposto a nós duas. E, então, você olhava pro céu, com seus olhos de diamante, e sorria o seu sorriso mais bonito.

Quanto eu tinha nove anos, não entendia nada sobre a vida, Marina. E nem podia. E nem queria. Eu só queria estar ali, com você e seu sorriso e o oceano e o mundo e—

“O mar é o céu da gente.”

Foi assim, num sussurro, que você disse essas palavras. Na hora, eu devo ter franzido o cenho, porque você soltou uma gargalhada breve e, depois, voltou a olhar pra água calma que batia nas pontas dos nossos dos pés.

Você era sempre assim, risonha, e falava sobre coisas que eu não entendia. Talvez, minha mente fosse fechada demais, ou era a sua que não tinha limites, mas não me lembro de nenhum encontro nosso em que você não tenha perguntado “por quê?” em alguma ocasião. “Curiosidade mata”, dizia minha mãe, e você sorria abertamente, enquanto enrolava uma mecha de cabelo no dedo indicador.

Aos 14 anos, você me convenceu a entrar no coral da escola, porque queria cantar para as pessoas. E eu sabia que você era péssima nisso, eu também era, mas, mesmo assim, aceitei. Naquele ano, descobri que você era a pessoa mais talentosa em não ter talentos que eu já havia conhecido.

Com 15, você resolveu cortar o cabelo sozinha e ficou horrível, mas eu não conseguia parar de sorrir à medida em que você rodopiava na minha sala-de-estar, fazendo os, agora curtos, cabelos castanhos volitarem à sua volta. E você ria, ria, ria, e eu ria também, e tudo era lindo.

“Não me deixa sozinha.”

Você me falava sobre as estrelas, constelações e signos, e eu não acreditava em nada disso. Dizia que queria ser astróloga, mesmo eu sabendo que você definitivamente não seria, porque não estava falando sério; mudava de ideia como mudava de roupa. Só no meu quarto, já havia sido bailarina, astrounauta, confeiteira, malabarista de circo, médica, e coveira de cemitério, porque gostava de “viver a vida perigosamente”. E ria.

Quando nós tínhamos 17, um amigo perguntou se nós pensávamos no futuro, e você disse que não teria um. “Mas por que não, Marina?”, todos perguntavam, eu perguntava, e você mordia o lábio inferior, e dizia, cantarolando, que o futuro só existiria se fosse pensado no passado; quando você o estivesse vivendo, ele já seria o seu presente.

Todos os dias, você me falava sobre uma banda nova, um filme novo, um programa, um livro, qualquer coisa. Nós nunca perdíamos o assunto, e a horas passavam sem que percebêssemos. Era o nosso mundinho, construído apenas por e para nós duas, e não havia espaço para mais ninguém.

Naquela época, eu achava que você estava realmente feliz com tudo aquilo, porque eu estava.

“Me ajuda.”

Aos 18 anos, nós tínhamos que decidir o que faríamos pelo resto de nossas vidas. Eu dizia, cheia de orgulho, que seria médica, assim como meu avô. Você sorria de canto, e começava a murmurar alguma música que eu não conhecia, fazendo uma trança no próprio cabelo. E seus olhos verdes, opacos, voltavam a fitar as gotas de chuva que escorriam pela janela, enquanto eu parava de falar e apenas lhe observava.

Naquela noite, eu me perguntei se poderia haver algo de errado com você, Marina. Mas deixei pra lá, afinal de contas, você estava sempre sorrindo, e o que tinha de ruim nisso?

“Eu quero morrer.”

Era de madrugada quando recebi uma mensagem sua, pelo celular. Achei que você só estava querendo me acordar, por isso, não li e nem respondi a mensagem. Voltei a dormir.

Um tempo depois, acordei novamente, dessa vez, com o celular tocando. Não era você, era o Victor, um amigo em comum que tínhamos. Atendi, ele não era de me ligar.

— Alô.

Ela morreu, Anna.

— O quê?

— A Marina... Ela morreu, Anna.

Naquele momento, parecia que tudo no mundo havia parado de emitir qualquer som. Eu não conseguia escutar mais a voz de Victor do outro lado da linha, mas eu acho que ele começara a chorar em algum momento daquela ligação.

Você estava... morta. E eu não conseguia entender isso. Eu não queria entender isso. Talvez fosse só uma brincadeira de mau gosto. Talvez fosse apenas Victor me pregando uma peça. Talvez fosse você querendo me enganar. Talvez eu estivesse sonhando.

Talvez fosse verdade.

Não lembro como, mas eu saí correndo do meu quarto e, de algum modo, estava indo em direção à sua casa, Marina. Não havia ninguém nas ruas, apenas as poças que a chuva de outrora havia deixado.

E eu corria e corria, e meus pulmões queimavam, doíam, apesar de sua casa ser apenas a dois quarteirões da minha. Você sempre me disse que eu precisava me exercitar e, ironicamente, eu estava fazendo isso, naquele momento.

Quando virei a esquina, vi. Havia uma comoção na frente da sua residência. E no meio de todas aquelas pessoas, dos carros, das árvores, das casas, do asfalto, da chuva, de mim, estava você.

E seus olhos de diamante.

E seu cabelo castanho.

E seu sorriso.

E o mar do seu nome.

Quando nós tínhamos 18 anos e alguns meses de diferença, eu me aproximei de você, e havia tanto, tanto sangue. E eu conseguia escutar os policiais pedindo para que eu me afastasse, para que eu não tocasse em você, e eu ouvia o motorista explicar que você tinha se atirado na frente do caminhão, que ele estava na velocidade permitida, e os vizinhos comentando, e Victor chorando do outro lado da multidão, e sua mãe gritando, e—

Por que, Marina?

Eu não conseguia pensar direito. Apenas enfiei a mão no bolso e peguei meu celular, procurando desesperadamente pela mensagem que havia recebido minutos, horas, dias atrás, porque já nem sabia mais quem eu era, naquele momento.

Me desculpa, Anna. Me desculpa.”

E o mundo colapsou dentro de mim.

...

Seu enterro aconteceu, e eu ainda me perguntava se aquilo não era tudo um pesadelo. Talvez a morta fosse eu, e estivesse no purgatório. Victor continuava chorando incessantemente, um choro quieto, cansado, como se não tivesse parado desde aquela noite. E, em cima do seu caixão, sua mãe havia se jogado, gritando que era ela quem deveria ter sido atropelada, que preferia ter uma perna arrancada à perder a filha única, que daria tudo para ter você de volta.

Engraçado, ela chorava tanto, mas tinha conseguido reunir forças para fazer uma maquiagem impecável e se encher com aquelas bijuterias que adorava usar. Algo dentro de mim não parava de gritar “A culpa é dela, dela! Vá até lá e diga isso!”, mas era como se eu estivesse colada no chão, sem conseguir me mover.

Quando a levaram para longe de você, eu me aproximei. E, pela primeira vez desde aquela noite, pude ver seu rosto com clareza. Tão pálido, tão frágil, ele dava a impressão de que iria se partir em mil pedaços se eu apenas o tocasse, assim, de leve.

Eu senti saudade de você, Marina. Saudade dos seus olhos verdes, do seu sorriso alegre, do seu cabelo castanho, tudo tão vivo. Você era a minha amiga de infância, minha companheira de vida, e a pessoa que eu mais amava nesse mundo.

Algo dentro de mim estava se quebrando, pouco a pouco, e sem que eu percebesse, comecei a chorar.

Já não me lembrava mais de como era a sua voz.

...

Você foi cremada, Marina, e seus restos mortais, jogados no mar. Em meio às lágrimas, eu sorri, pensando que era de lá que você provavelmente tinha vindo. Do céu da gente.

O tempo passou, assim como o choro de Victor, e eu tentei seguir em frente, porque todos diziam que eu deveria. Continuei estudando para ser médica, enquanto meu pai enchia a boca para falar sobre mim aos seus amigos do pôquer, e minha mãe conversava animadamente sobre o meu futuro com as vizinhas.

Eu sorria e dizia que estava tudo bem, que eu tinha superado, e as pessoas me davam tapinhas nas costas. Boa menina, eles diziam. Ela é diferente da louca da Marina, eles pensavam.

Mas, em algum momento entre você e a sua falta, eu comecei a ruir também, Marina. Assim como você estava, e eu não pude ver. Assim como você sorria pra mim o seu sorriso mais bonito, e seus olhos me fitavam cheios de felicidade, e eu não consegui enxergar toda a tristeza que havia em você, na sua alma.

Então, num dia, enquanto andava de ônibus pela cidade, eu percebi que nada fazia sentido sem você ali. O céu estrelado não tinha a mesma beleza se eu não pudesse escutar você falando sobre as constelações, as músicas não eram tão boas se não fossem recomendadas por você, o mar não era tão vivo sem você para apenas fitá-lo longamente.

Marina, onde está você?

Quando eu tinha 19 anos, tirei meus tênis preferidos e os deixei no calçadão da praia; eles não eram mais necessários. Andei até a beira da água, e olhei para o firmamento. O sol já estava quase se pondo.

Marina, eu quero te ver.

Minha pele se arrepiava à medida que meu corpo ia adentrando a água gelada do mar, e minhas roupas estavam coladas ao meu corpo. Eu continuei a imergir no oceano, com os olhos cerrados, procurando na imensidão da minha mente, daquele mar, algo que me ligasse a você.

Marina, aqui é o céu?

E, então, você me acolhe em seus braços, no meio de todo o furacão que havia dentro de mim, de nós, e do eco que gritos distantes faziam.

Eu encontrei você.

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I’m miles away from where you are
I lay down on the cold ground
And I, I pray that something picks me up
And sets me down in your warm arms...
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FIN


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Notas finais do capítulo

Minha primeira fanfic original, que alegria! Também foi minha primeira vez escrevendo sobre um amor entre garotas (na verdade, platônico, por parte da Anna), e estou bem feliz com isso.
Escrevi essa história num daqueles momentos de introspecção que todo mundo tem na vida, e talvez isso sirva mais como um desabafo. Interpretem como quiserem :D
Enfim, por favor, comentem e digam para mim o que acharam da história. Críticas são sempre bem vindas, viu?
É isso, nos vemos por aí, pessoal. Au revoir! :*