Herança escrita por Janus


Capítulo 26
Capítulo 26




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     As bolhas coloridas continuavam vindo, uma após a outra, e ela continuava a pular por cima delas, um passo de cada vez, dançando, dando piruetas no ar, iluminada por holofotes de origem desconhecida. As fontes que jorravam ao redor possuíam luzes multicoloridas, e centenas de bichinhos de pelúcia a aplaudiam pela dança. Era lindo, maravilhoso.
     Mas, não era real.
     Um som irritante e constante começou a perturba-la. Apertou os olhos, para forçar a visão que tinha, mas a mesma acabou ficando congelada. Logo, tudo ficou escuro, e o som irritante mais alto ainda. Até que, desistindo, ela ficou deitada de costas e abriu os olhos, observando o teto do quarto.
     Foi um belo sonho, lindo mesmo! Meio infantil, mas, e daí? Qual o problema de gostar de coisas de crianças? Sentou-se na cama – sem por os pés para fora – e, com uma certa má vontade, espreguiçou-se, estalando os ossos dos ombros e alguns da coluna. Colocou as duas mãos entrelaçadas pelos dedos atrás da nuca e as puxou fortemente assim, terminando com os estalos matinais.
     Esfregou o rosto e olhou ao redor. Marina estava na cama ao lado, na parede oposta, cobrindo o rosto com o cobertor, para fugir do barulho irritante do despertador, que ela ainda não tinha desligado. Na outra cama, que ficava ao lado da porta, não havia ninguém. Estranho... será que Joynah não voltou ontem a noite?
     Chutando o seu cobertor para longe, ela pos os dois pés no chão em um tipo de salto, fazendo o característico barulho na laje da casa, anunciando a todos que tinha acordado. Tirou a parte de cima de seu pijama – não queria mancha-la de suor - ficando apenas com o seu soutien e o short de pijama. Abriu e fechou os dedos das mãos algumas vezes, e, como se fosse um poste sem base firme, começou a cair ao chão, de frente, como se tivesse subitamente desmaiado.
     Qualquer um que não a conhecesse, acharia que ia quebrar o nariz ou até um dente de sua boca, mas aquilo era proposital. A poucos centímetros do chão, ela esticou as mãos e aparou a sua queda, usando os braços como amortecedores. Deixou a nariz abaixar lentamente, até tocar o chão suavemente com o mesmo, e, logo em seguida, começou a fazer flexões.
     Tinha pego este hábito com sua irmã, que, por sua vez, o pegou de sua mãe. Era ótimo para tirar a moleza do corpo de manhã, bem como esquentar o mesmo nas manhãs frias de inverno. Marina, contudo, não adquiriu isso. Ainda estava na cama, deitada com o cobertor na sua cabeça, pois o despertador continuava a tocar, insistentemente.
     - Desliga isso! – disse sua irmã, perdendo a paciência de vez.
     - A... última... a... acordar... – dizia ela entre uma flexão e outra – é... que... desliga... ele... lembra?
     - ARGH! COMPUTADOR! DESLIGA ESSE BARULHO! – gritou ela.
     "Devido a ordens superiores, seu comando não pode ser executado" respondeu a voz robotizada, que, raramente se pronunciava, devido a, principalmente, ser raro os ocupantes da casa darem comandos a este. Allete riu divertida. A tal "ordem superior" era de Joynah, que, por ser a mais velha, tinha prioridades na hierarquia de comandos. E a ordem era: O desligamento do despertador deve ser feito manualmente, a menos que não haja ninguém no quarto.
     - Que inferno! – disse ela sonolenta.
     Marina se levantou cambaleante da cama e deu dois passos, em direção ao criado mudo onde estava o despertador. Com um soco um pouco forte, atingiu o botão de toque, fazendo-o silenciar-se imediatamente. Tinha que ter uma do contra... toda família com mais de dois filhos fatalmente tinha uma. Uma ovelha negra, uma pária da sociedade familiar que tinha gostos e apreciações um pouco diferentes. Ali, na família dela, esta função pertencia a Marina. Boa cozinheira como as irmãs, dedicação escolar razoável – tudo bem, estava um pouco acima da média de sua classe, mas isso não conta – sempre a primeira a querer cair na farra – não era a toa que se dava tão bem com Diana e Rita – e a última a acordar de manhã, sendo que, jamais sentia vontade de fazer o "alongamento matinal" que ela e Joynah faziam. Joynah, até poder se tornar humana – literalmente falando, agora - não precisava disto, era um hábito que tinha adquirido, embora, agora, tenha admitido que era ótimo para dar disposição para o resto do dia.
     Marina, por sua vez, continuava preguiçosa. A ovelha negra da família, como já foi mencionado. Era a única que jamais tinha ganho um único prêmio em competições de karatê. Nem mesmo classificou-se entre os cinco primeiros, apesar de lutar bem – e como podia lutar bem quando sentia vontade – aos sábados, durante os treinos que faziam. Ela parecia não ter interesse em competições deste tipo. Agora, se fosse uma competição para doces ou bolos... ela entrava de cabeça. A sala de troféus possuía dezenas de primeiros lugares que ela conquistava nesta categoria. Teve vezes que ganhou de sua mãe e até de Joynah – e isso antes dela poder ficar normal – o que deixava a todos realmente impressionados. Era um belo exemplo – tanto metaforicamente como fisicamente falando, pois era uma bela moça mesmo – do quanto se pode obter quando se dedica de corpo e alma a alguma coisa.
     Mas... para manter-se em boa forma, isso não era com ela.
     - Quem mandou... dormir tarde? – cutucou ela sorrindo para a irmã, e, ainda mantendo o ritmo de suas flexões – é isso que dá... ficar vendo... filme de terror... até as duas... da madrugada. Não tem pesadelos... não?
     - Não... é... da... sua... conta... – respondeu ela, imitando as suas pausas, necessárias para inspirar e espirar o ar, que ela estava fazendo – vai... a... merda!
     Começou! Quando uma irmã usava tal linguagem com a outra era o sinal, o aviso de que estava pronta para tudo. Tudo mesmo! Allete parou de fazer flexões – apesar de ainda faltar cinco minutos para cumprir a sua rotina diária – e, dando um impulso com os braços, curvou os pés e os tocou no chão, ficando de pé quase que imediatamente. Ergueu-se com força, de forma a dar um pequeno salto, e, girando o corpo no meio deste salto, ela fez um arco com a perna direita, enviando-a diretamente para o pescoço da irmã, que, por puro instinto, conteve o golpe com o braço esquerdo.
     - EIII! – reclamou ela – que história é essa?
     - Você me mandou a merda, sua bocuda – respondeu ela com um sorriso ferino.
     - Foi sem querer...
     - Agora é tarde – Allete estava acesa, prontinha para uma briga. Fazia já um bom tempo que não brigavam de manhã cedo no quarto. Muito tempo mesmo.
     Na verdade, elas não tinham uma disputa entre elas desde que começaram com o treinamento de sailor, matando o tempo que antes usavam para freqüentar o dojô que sua mãe costumava ir. Allete lançou o outro pé contra ela antes mesmo de abaixar a que estava bloqueada pelo braço de sua irmã. Era um golpe de surpresa, pois ninguém – normalmente - esperava que houvesse um ataque antes mesmo de se ter um pé indo para o chão, para dar apoio. Isso, Allete fez isso alguns décimos de segundo depois que o outro pé partiu em direção a têmpora direita de sua irmã. Logo depois Allete percebeu, surpresa, que Marina ainda estava com os reflexos em perfeitas condições. Ela bloqueou com o braço direito a investida da nova perna dela, e girando o corpo – na verdade, era continuação do movimento de defesa - usou o mesmo braço para atingir uma cotovelada na sua barriga, e isso quando o seu outro pé ainda estava na metade do trajeto para chegar ao chão. Ou seja, ela a pegou no ar, completamente indefesa, e a acertou para valer,  sem atenuar o impacto.
     Com a força do golpe ela foi direto para o chão, de costas, causando um barulho na laje impressionante – parecia o mesmo daquela vez que o armário delas caiu, quando Joynah o inclinou um pouco para procurar um brinco debaixo deste. Seus pais iriam subir bem depressa para ver o que estava acontecendo. E iriam ver sua filhinha ali estirada no chão, com os braços agarrando a barriga e chorando de dor...
     - Não acertei tão forte assim – disse Marina, em posição de ataque.
     - Ai, ai, ai, ai, ai, ai... – dizia Allete, se contorcendo no chão.
     - Bem feito – ela cruzou os braços e olhou a irmã com um sorriso de vitória nos lábios – agora vou querer aquele seu ursinho azul. É lindinho! – disse ela fechando os olhos e com um olhar de criança pequena – vou adorar dormir abraçada com ele...
     Quando abriu os olhos, levou uma travesseirada no meio da cara, de tal forma que perdeu o equilíbrio e caiu sentada na sua cama. Allete tinha sentido o golpe dela, mas estava exagerando as reais conseqüências do mesmo – se bem que sua barriga iria dar a impressão de estar com cólicas por mais meia hora – para pega-la de surpresa.
     Meio tonta com o primeiro golpe – com um golpe de travesseiro? – ela olhou ao redor para procurar por uma arma equivalente. Conseguiu uma depois de mais duas "pancadas" da arma de destruição que Allete estava usando. Agora, ambas munidas daqueles apetrechos terríveis que toda e qualquer criança travessa já usou alguma vez na vida, elas se revezavam em aplicar golpes uma na outra, mas já sem interesse em obter uma real vitória. A briga de vale tudo se transformou na antiga e milenar guerra de travesseiros. Com ambas rindo sem controle.
     Não era bem isso que tinha em mente quando pensou em fazer sua irmã se exercitar um pouco, mas... estava dando certo. Pelo menos, ela estava fazendo algum exercício. E de manhã, como todo o resto da família. Ui! Melhor prestar atenção na "guerra" ali. Aquela pancada quase que doeu!
     Estavam em um impasse. Cada golpe de uma era contra atacado por um golpe da outra. Pareciam até aqueles bonecos do mini teatro kabuken – especialmente feito para crianças - em que cada soco de um era revidado por um soco de outro. Allete começou a ficar cheia daquele empate técnico e resolveu apelar. Segurou o travesseiro dela com a mão esquerda e com a perna direita lhe deu uma rasteira, se aproveitando a surpresa dela. Ela caiu sentada ao chão, causando outro impacto de grande repercussão na laje – as duas iriam levar uma senhora bronca de seus pais – ficando temporariamente indefesa e vulnerável, pois não esperava por aquilo.
     Allete não podia planejar o que iria fazer. Marina lutava por instinto. Tinha se acostumado a simplesmente agir, e não reagir. Talvez fosse por isso que nunca tivesse ganho nenhum torneio de karatê, pois tinha que ficar sempre pensando nas regras, e isso a deixava muito vulnerável. Tinha que achar uma forma de imobilizar a sua já um pouca cansada irmã – ela também estava cansada, e a sua barriga ainda doía, embora fosse uma dor muito parecida com cólicas – e rápido, antes que seu pai ou a sua mãe chegassem ali e encerrassem a briga como muitas vezes antes, impedindo a vencedora de tomar algo – normalmente um bichinho de pelúcia – da perdedora.
     Ela não planejou aquilo, simplesmente agiu. Se pensasse um pouco antes, não o faria. Jamais faria tal coisa, se colocando uma situação deveras complicada caso seu pai aparecesse ao invés de sua mãe. Em um movimento rápido, ela levou as mãos as costas e soltou o seu soutien, e agarrando o braço esquerdo dela que já começava a se levantar, a jogou no chão torcendo-o para trás. Puxou o outro braço dela e o forçou a ficar junto do primeiro em seu princípio de imobilização. Sabia que não poderia mante-la assim por muito tempo. Marina tinha uma incrível capacidade para torcer os pulsos e escapar de imobilizações daquele tipo. Em trinta segundos, no máximo, libertaria uma das suas mãos e a usaria para impulsionar o corpo para cima dela, forçando-a a afrouxar a pressão na outra mão para se defender.
     Mas não daquela vez. Com o soutien na mão, Allete o enrolou em seus pulsos e deu um rápido nó não corrediço que tinha aprendido em uma aula doméstica na escola para fazer vasos de xaxim. O material deste era bem resistente, ela não ria conseguir estica-lo e nem teria como soltar o nó, especialmente porque ela dobrou as pontas soltas e as enfiou nas dobras do laço que tinha feito de forma que ela não saberia encontra-las. Pelo menos, por alguns minutos.
     - EI! – gritou ela, desesperada quando percebeu que estava amarrada – ISSO NÃO VALE! TRAPAÇA! GOLPE BAIXO!
     - Para ganhar seus bichinhos – disse Allete ofegante e com um sorriso de satisfação – vale tudo!
     - EU NÃO VOU DESISTIR! A MAMÃE OU O PAPAI VÃO CHEGAR LOGO E VÃO PARAR COM ISSO! ME SOLTA!
     - Vão, é?
     Allete forçou Marina a se sentar no chão e ficando atrás dela cruzou as suas pernas na sua frente – deixando o seu tronco entre elas - a imobilizando assim. Agora com as mãos livres, ela mostrou os seus dois dedos para ela, balançando-os de forma a antecipar o que iria fazer.
     - Não... – murmurou ela com os olhos arregalados – isso não! Não desse jeito... ISSO É TORTURA!
     Allete não se incomodou com os seus protestos. Simplesmente começou a fazer cócegas logo abaixo de suas costelas em ambos os lados de seu corpo. Justamente o ponto em que ela não resistia a elas.
     - PARA! – dizia ela gargalhando – POR FAVOR! – ela implorava, entre gargalhadas – POR FAVOOOOORRR!
     - Eu quero três bichinhos – dizia Allete sorridente – ou não paro.
     - NÃO! – ela já estava chorando de tanto ser forçada a rir – NÃO, NÃO, NÃO, E NÃO!
     Ela não tinha piedade. Ficou assim por quase dez minutos, as risadas da irmã preenchendo totalmente o quarto – e talvez toda a casa – aproveitando o máximo possível enquanto um de seus pais não vinha acabar com aquela festa.
     - TÁ BOM, EU DESISTO! PODE PEGAR OS BICHINHOS...
     Ela parou de uma vez, e abriu as pernas a libertando – em parte – da imobilização. Marina caiu de lado, sem forças e sem fôlego. Parecia que tentava se mover um pouco, mas não tinha forças.
     - Ai! – Allete dava pulinhos no quarto, fazendo mais barulho na laje – três, três, três bichinhos!
     - Isso... isso não vai ficar assim – disse a esgotada Marina, ainda sem forças sequer para tentar soltar as mãos.
     - Amanhã é outro dia... mas não pode começar uma briga sem as palavras mágicas – ela sorria com escárnio para a irmã – e não pense que vou dize-las assim não... diga adeus as seus favoritos.
     Allete foi até as prateleiras que ficavam acima da cama da irmã e observou a coleção dela. Já tinha o primeiro em vista, o grande urso de quase sessenta centímetros, totalmente branco e com a barriga levemente rosada, com um babador escrito "filhinho da mamãe" em letras douradas. Ela sempre tinha ficado de olho naquele. Esticou as mãos para pega-lo e...
     - Nem pense nisso, sua traidora!
     Ela parou o movimento das mãos e ficou estática. O suor que banhava o seu corpo ficou subitamente gelado, o que a fez sentir calafrios. Foi um gelo tão forte que chegou a sentir os seus mamilos doerem, de tão comprimidos que ficaram. Isso também a fez lembrar que estava semi nua ali no quarto. Isso não seria assim um problema de falta de pudor caso as circunstâncias fossem outras. Lentamente ela virou a cabeça na direção da voz, que vinha da porta do quarto delas. A voz de sua mãe, incrivelmente raivosa.
     - Mãe? – disse ela, com um sorriso bobo na cara, aquele típico sorriso de que foi flagrada fazendo uma bela de uma travessura – você... a senhora sabe que a gente as vezes faz essas briguinhas... e que... que...
     Ela engoliu em seco. Sua mãe estava com os braços cruzados, com uma cara de malvada que assustaria qualquer criatura demoníaca que fosse encarada. E ela era o alvo daquela cara de mau.
     Agora que podia ponderar um pouco, ela percebeu o que tinha feito. Perdeu o controle da brincadeira e a deixou um pouquinho séria demais.
     - Que pouca vergonha – disse ela pausadamente, a encarando com firmeza – que golpe sujo você usou contra sua irmã! E ainda age como uma desavergonhada, sem nenhum pudor de mostrar os seus... seus... ARGH! – esse grito fez o seu coração dar um pulo – se eu não fosse sua mãe, você ia ver do que eu iria te chamar.
     - M-mãe...
     - QUIETA! – gritou ela, com o olhar ainda firme – você perdeu o direito de ganhar os bichinhos de Marina, e ainda vai ter que dar dois para ela, como castigo.
     - DOIS! Mas...
     - Foi jogo sujo – disse sua mãe a encarando friamente – e também uma pouca vergonha. Pode fazer o favor de se vestir mais apropriadamente e tomar o seu banho. Vocês ainda tem meia hora antes de partirem para a escola.
     - Tá bom – disse ela levando as mãos para o seu soutien amarrado nos pulsos de Marina.
     - Esse não! – disse sua mãe - pegue outro. Deixe esse ai mesmo.
     - O QUE? – exclamou Marina olhando apavorada para a sua mãe.
     - É isso ai que você ouviu. Se quiser ganhar os dois bichos de pelúcia dela, vai ter que se soltar sozinha, tomar seu banho, e descer a tempo de tomar o café da manhã e ir para a escola. Já que resolveram voltar as velhas briguinhas e perturbar a paz da minha manhã, eu estou castigando as duas. Você – apontou para Allete – por usar um subterfúgio imoral destes, e você – agora apontou para Marina – porque não soube se defender. Estou esperando as duas lá em baixo.
     Ela seguiu pelo corredor e logo as duas a ouviram descer as escadas. Allete olhou para Marina com os olhos arregalados, e esta retribuía a olhando da mesma forma.
     - Me solta daqui que eu esqueço isso dos dois bichinhos.
     - Hum.. não senhora – sorriu – não tenho nada a perder deixando você assim...
     - Eu vou pegar uma faca na cozinha e cortar seu soutien!
     Allete olhou para a irmã, para os seus olhos. Olhos determinados, frios, raivosos, impessoais, olhos de quem iria cumprir com o que disse. Seu soutien preto de renda nylon-rusgue com babados e lacinho... não... não valia a pena.
     - Tá bom, eu te solto. Fique sentada e afrouxe os braços.
     Bem, mais um empate na vida de guerras familiares daquelas duas. Mas a partir do dia seguinte, Allete iria começar a usar soutiens mais simples e baratos quando fosse dormir...
     - Fique quieta!
     - Está prendendo minha circulação – disse ela – minhas mãos estão formigando. Sabe que a mamãe tem razão? Foi um golpe muito baixo esse seu. Nunca iria esperar que fizesse isso.
     - Nem eu – murmurou arrependida – nem eu. Desculpa – ela estava já bem arrependida mesmo – eu perdi as medidas. Eu só queria vencer... de qualquer jeito. Já faz tanto tempo que não fazemos isso...
     - Deixa para lá – Marina a olhou com um sorriso já alegre – eu também forcei a barra acertando sua barriga daquele jeito. Está doendo?
     - Está dando cólicas – disse ela, parando um pouco de soltar o nó e massageando a barriga – Hi! Está ficando vermelha! Espero que não fique roxa...
     - A gente vê na farmácia da escola. Mas não acho que foi nada grave não. Se fosse, já estaria vomitando sangue...
     - Obrigada por estragar meu café da manhã – disse com uma certa raiva.
     - Disponha – Marina continuava sorridente – sabe, até que foi interessante esse vale tudo. Agora que a Joynah pode participar, que tal definirmos novas regras?
     - Novas? – Allete estava pensativa – não. Já está muito bom assim. Quando uma fala um palavrão para a outra, a gente começa, e só paramos quando uma ficar imobilizada, com as mãos da outra – frisou – a não ser que parem a briga antes. Pronto! Está livre.
     - Ai que bom! – disse ela esfregando os pulsos. Allete viu que tinha apertado com muita força mesmo. Podia ver as marcas do desenho da peça de roupa nos pulsos dela – agora sei porque a Diana fica horrorizada quando a gente sequer menciona em coloca-la na linha. É angustiante ficar presa. Brrrr! – ela agarrou os ombros, como se tivesse mesmo sentido frio – vamos tomar banho?
     - Vamos. Mas deixa eu ficar decente – disse ela pegando a camiseta de seu pijama, que tinha tirado logo que tinha acordado – senão a mamãe vai me chamar de pervertida.
     As duas andaram calmamente até o banheiro delas – das filhas - que ficava na parte de cima da casa. Lá dentro, se despiram. Allete começou a sua higiene matinal enquanto Marina usava o chuveiro. Apesar de haver espaço de sobra para as duas tomarem banho juntas – era uma grande ducha que seus pais ganharam uma vez, para poder tomar banho juntos - Allete preferia não dividi-la com ela, apenas com Joynah. Marina tinha uma estranha mania de se prontificar a ensaboar suas costas que as vezes a assustava. Não pela prontificação em si, mas pela delicadeza e suavidade com que fazia. Parecia até que a estava acariciando...
     - Você viu se a Joynah voltou ontem a noite? – perguntou com a boca cheia de água iônica, que estava usando para limpar os dentes.
     - Ela e a mamãe chegaram por volta da meia noite – disse ela em voz normal. Não precisava falar mais alto pois tinha o hábito de deixar o box aberto – as duas foram direto para as suas camas.
     - Puxa – Allete observava sua testa, procurando por espinhas incômodas – então ela acordou bem cedo. A cama dela já estava arrumada quando acordei. Ela disse aonde foram?
     Tinha acabado de achar uma. Com sua arma infalível em mãos – suas unhas grandes e duras – ela, impiedosamente atacou a pobre e indefesa espinha, que, com um "grito" de agonia, virou uma meleca nojenta e grudenta. Rapidamente, Allete jogou água na poça de lama que ela tinha se tornado, deixando para trás apenas uma porção de pele avermelhada. Em uma hora ou duas, haveria apenas uma casquinha de ferida, que já poderia ser lavada na hora do lanche. O pior era que estas espinhas iriam começar a aparecer mais e mais, pelo que se lembrava de suas aulas de biologia humana.
     - Não – ela tinha fechado o chuveiro, pelo que podia ouvir – apenas falaram boa noite, e mamãe pediu para eu não dormir tarde. Sua vez, sua covarde...
     - Hum?
     - Sua vez no chuveiro. Porque tem medo de tomar banho junto comigo?
     - Gosto de me lavar sozinha – disse de uma forma um pouco rude, enquanto ia em direção ao box. Diferente da sua irmã, ela o fechou.
     - Me engana que eu gosto – disse com uma entonação irônica e um pouco triste.
     - Marina, deixa eu ser direta. Posso estar fazendo uma baita confusão de julgamento, e se for o caso, você vai ter todo o direito de me xingar até não poder mais – tudo bem que era apenas uma impressão, mas era melhor colocar aquilo em pratos limpos agora, bem no começo, antes que alguma confusão grande pudesse vir a surgir - Mas eu acho que você anda demonstrando um gosto muito similar ao de Cinty e Akitso...
     - Só porque gosto de ensaboar suas costas? – sua voz era claramente cética – eu não acredito nisto!
     - É que – ela abriu o box para falar diretamente de forma a encara-la nos olhos – parece que você está me acariciando – ela a olhou com muita seriedade – e... não acho isso certo. Não entre mulheres, e muito menos entre irmãs. Desculpe mana, mas é o que eu penso.
     Marina ficou quieta a encarando. Seu alto e esguio corpo – incrível como pareciam ter exatamente a mesma idade, tanto que o número de suas roupas era o mesmo – com gotas d'água pingando lentamente no chão e vapor quente um pouco fumegante – uma ilusão causada pelas luzes do espelho que estavam atrás dela - davam–lhe um ar um tanto... err...
     Allete balançou a cabeça. Que pensamento besta acabou tendo.
     - Não pensei que eu a irritava tanto com isso, desculpe. É que eu... sei lá... sou afetuosa mesmo. Realmente eu faço carinho nas suas costas. Mas nunca imaginei que você poderia pensar que eu... – ela começou a ficar vermelha de vergonha – eu... bom... nós somos irmãs. Nunca achei que ser afetuosa com sua própria irmã poderia dar nisto... Acho que só vou entender isso quando tiver a sua idade. Ainda não sinto a mínima vontade de sair por aí atrás de garotos, e acho que até o ano passado você também não sentia isso, não é?
     - Hum... agora que você mencionou... é. Realmente, não tinha essa tara para pegar meninos, para querer dar beijos, sentir mãos masculinas me apertando... NOSSA! Que pervertida que estou ficando – ela riu sem jeito. Sabe... acho que fui injusta mesmo – ela abaixou os olhos, um pouco encabulada do que tinha imaginado antes - Marina... err.. – olhou para ela e sorriu – quer ensaboar minhas costas?
     - Jura? – o rosto dela era a felicidade em pessoa – não vai ficar encabulada?
     - Até o ano que vem, acho que não – ela sorriu – mas... – ficou séria de novo – se seus hormônios começarem a funcionar, me avise! Eu sou sua irmã, lembre-se disto...
     - O que você quer dizer com isso? - Marina olhou para ela de um jeito um pouco estranho – acha que eu...
     - Você ainda não sabe – Allete disse com um sorriso – irá descobrir isso na hora certa, não adianta ter pressa.
     Só espero que não seja comigo.


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