Abracadabra escrita por Aquary


Capítulo 4
Capítulo 4 - Emissários do Abismo




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Precisamos de um registro para você, não é mesmo Bruce? – Perguntou apenas para ouvir um miado longo e preguiçoso por parte do gato. O bichano já fazia parte de sua vida a quase dois anos, um registro lhe cairia muito bem.

Elle deixou o sofá se espreguiçando lentamente, talvez estivesse sendo influenciada pelos comportamentos do bichano, mas apenas sorriu diante dessa possibilidade afinal, ela não passava o dia dormindo, tão pouco se lambia a fim de limpar os resíduos do corpo. Encaminhou-se para a cozinha verificando com um rápido olhar se havia água e comida o suficiente para Bruce passar o dia sem maiores problemas, o aviso na porta da geladeira indicava que só precisaria comprar ração na próxima semana, no mesmo dia em que recebesse o pagamento do emprego na biblioteca.

Preparou rapidamente dois ovos e um suco de laranja, ainda tinha metade da semana de trabalho pela frente e deveria entregar o exemplar “M” na sessão reservada ainda aquele dia, antes que sua superior desse pela ausência dele. Mesmo com os anos dedicados aquela biblioteca e a confiança adquirida graças a esse tempo, Morgan ainda era muito sensível com alguns exemplares da sessão reservada. Esperava apenas que a restauração do livro lhe desse algum crédito caso a discussão fosse inevitável.

Vamos arrumar o seu registro no final de semana Bruce! Enquanto isso tente não se envolver em confusão. – Olhos amarelos lhe enviaram ondas de repulsa e antipatia, mas ela apenas sorriu em resposta, observando o gato sair do lugar onde estava e ir se enrolar em sua caixinha de papel.

Quando Elle deixou o apartamento naquela manhã de terça-feira, algo em seu interior lhe dizia que coisas estranhas estavam prestes a acontecer. Sinceramente esperava que não tivessem ligação com o estranho abismo descrito no livro de M, que lhe causavam medo desde a primeira página. Em seu íntimo lembrava-se de ter sentido aquela sensação antes, mas não tinha certeza de quando ou onde. Mas foi ao sentar-se no banco do ônibus ao lado de uma senhorinha ruiva, que a imagem da primeira discussão com Morgan veio lhe trazer um pouco mais de calma.

Elle pegava uma condução de quarenta e cinco minutos até a metrópole industrial onde trabalhava, fazia este mesmo caminho todos os dias a pelo menos dois anos, desde que começara a trabalhar no banco. O transporte público que carecia urgentemente de reparos não era um problema tão grande, isso se comparado as pessoas que o utilizavam: homens e mulheres que viviam a marginalidade da sociedade aristocrata que regia a cidade, sem falar nos elementos estranhos que provavelmente já tinham passagem pela polícia por latrocínio.

O prédio em que trabalhava era um dos mais altos da metrópole, a sede do banco Alec Endore era de um leve tom creme, com algumas elegantes estátuas provavelmente originarias da arte gótica europeia. Depois de desembarcar do ônibus, Elle andava até o edifício central a pouco mais de cinco quarteirões, levava precisamente quinze minutos para chegar até o trabalho, mas durante o inverno as geadas que tornavam as ruas mais lisas e escorregadias lhe impediam de ser tão pontual quanto gostaria. Por sorte, havia saído de casa com uma hora de adiantamento.

Elle querida! – Ouviu a voz debochada de Verônica Simon lhe chamar com escaríneo. Sentia uma profunda antipatia pela recepcionista do banco, mas preferia ignorá-la. A quem diga que ignorar outra pessoa lhe causa mais impacto que palavras duras.

Estás realmente encantadora com esse pijama. – Verônica era do tipo de mulher que adorava gastar seu salário com roupas novas e de grife famosas, não importando o quanto as roupas da temporada passada estivessem aparentemente novas.

Não que gostasse de andar até o centro com seu casaco mais velho e tão surrado pelo tempo que mais lhe parecia uma longa camisola de inverno, mas tinha de ser coerente. Andar pela Maipol com um casaco que aparentasse custar mais do que toda a comida que você colocasse na mesa durante o jantar que alimentaria três filhos e um bebê, era para si uma afronta ao trabalho honesto de seus vizinhos. E pedir para ser assaltada pelos meliantes da rua Norton, a gangue juvenil local era conhecida por usar métodos violentos durante seus ataques.

E por favor Elle, lembre-se de continuar tão apagada quanto sempre até a próxima reunião das equipes. – Verônica sorria com os dentes recém-saídos do clareamento. Os lábios vermelhos completavam com perfeição seu semblante divertido. – Você é sempre a melhor parte do coquetel. Seria uma pena se perdêssemos toda a diversão.

Caminhou até o espaçoso corredor lateral, uma coleção de cinco elevadores separavam os guichês da parte burocrática. Trabalhava no quinto andar, e ainda não entendia bem o porquê. Elle não era contadora, tão pouco trabalhava bem com marketing, mas ainda tentava entender como havia sido colocada naquele posto de trabalho em tão pouco tempo. A última coisa a qual se lembrava de seu antigo trabalho era de ter sido educada com uma senhora de idade avançada e no instante seguinte ser apresentada ao seu novo superior, no departamento de contas.

O habitual elevador, o último a esquerda não era apenas o mais longe do hall de entrada, mas também era o menos movimentado. Ao que parecia todos queriam ser vistos e notados, com suas roupas elegantes e o status que possuíam dentro da grande indústria de dinheiro e poder o qual o banco representava. Mas tudo o que Elle queria era chegar até o calor aconchegante de sua sala e tirar aquele casaco. Infelizmente parecia que Verônica não era a única a perceber sua chegada.

Elle querida! – A voz macia de Noa Peterson fez-se ouvir no corredor, era o tipo de homem que adorava um desafio. Desde que passou a trabalhar no quinto andar, Elle veio a se tornar seu novo desafio. – Que sorte a minha encontrá-la justamente por aqui.

Noa trabalhava no sexto andar, era um dos cinco chefes de departamento de contas, dono de olhos verdes brilhantes e um sorriso que poderia hipnotizar toda a costa leste com a mesma eficiência do raiar de um novo dia, era totalmente diferente de seu colega de trabalho Andrew Morison, mas estranhamente preferia ter de prestar contas ao reservado príncipe sombrio, que ao aberto e popular rei do final de semana. Tinha de admitir, não importava o quanto Andrew lhe deixasse nervosa, ele lhe transmitia mais confiança que alguém como Noa.

Noa. – Percebeu que sua voz ia morrendo aos poucos conforme a proximidade do homem, mas isso serviu apenas animá-lo ainda mais.

Então Andrew já começou a sugar toda a sua luz e você já se sente pronta para juntar-se a minha equipe? – Sua proximidade e falsa intimidade lhe causavam repulsa. Para sua sorte a porta do elevador abriu e a fila andou deixando Noa fora da contagem da máxima permitida. Elle teve tempo apenas de lhe lançar um sorriso sem graça. – Não se preocupe me encontrarei com você em quinze minutos.

Sentiu quando os olhares de alguns colegas de trabalho se estreitaram sobre si, ser vista com Noa era como passar um atestado de garota fácil e interesseira, mesmo que esse não fosse o seu caso. Quando a porta do quinto andar se abriu sentiu-se como se estivesse no paraíso, andou o mais rápido que pode até sua sala e trancou-se lá dentro, odiava aquele trabalho com todas as suas forças, como desejava ter aproveitado as oportunidades de pesquisa quando ainda era estudante, quem sabe não teria tido o emprego dos sonhos.

Por mais surpreendente que aquilo pudesse lhe parecer, ou talvez nem tanto, o telefone tocou e a luz vermelha da linha três começou a piscar tão loucamente quanto as luzes de natal. Lembrava-se perfeitamente bem o porquê de nunca ter aceitado nenhum dos convites de seus professores para as tão sonhadas pesquisas. A mesma pessoa que lhe arranjara o emprego na biblioteca pública que já duravam quase dez anos, a mesma mulher que lhe cobrara um emprego melhor a quase dois anos.

Mamãe! – Atendeu de forma apressada apertando o botão do viva voz, arrancara o casaco e arrumava a camisa com desespero, como se sua mãe realmente pudesse ver o que ela estava vestido e pudesse criticá-la.

A conversa com a mãe continuou em um ritmo frenético de cobranças por dez minutos: solteira, roupas novas, natal em família, livrar-se do gato, tirar férias e Robert Garyson eram os assuntos que lhe perseguiriam toda a noite pela próxima semana. Talvez o abismo não fosse assim algo tão ruim, poderia, quem sabe tirar férias naquele lugar tão “paradisíaco”, com as sombras cobrindo tudo ao redor, bestas sedentas por sangue e ossos, quem sabe tornar tais criaturas adeptas do vegetarianismo, não fosse mais fácil que os telefonemas de sua mãe.

Pensando um pouco melhor em sua vida até ali, não se recordava de algum momento em que pudesse se sentir livre para ser ela mesma, pelo menos não depois da morte de seu pai. O homem no porta-retratos sobre a mesa lhe sorriu abertamente e feliz, abraçava uma jovem de vinte e um anos recém-formada com uma beca azul e um canudo. Seu pai realmente era a única pessoa em sua vida capaz de realmente compreender seus sonhos e dar-lhe apoio para buscar uma forma de concretizá-los.

Sua mãe por outro lado parecia mais interessada em todos os benefícios que ter uma filha poderia trazer: um casamento rico e cada vez mais próspero era sua carta na manga, escondida para ser usada depois que seu pai não estivesse mais para lhe “colocar ideias na cabeça”. Sua mãe havia se casado por causa de um dote, achava um absurdo que mesmo com tantas leis comprometidas em assegurar a liberdade das pessoas, algumas tantas ainda viviam naquele estado de faroeste.

A sala de um tom azul não lhe permitia relaxar, algo perturbava Andrew Morison e não era apenas o fato de que teria de se ligar a alguém nas próximas vinte e quatro horas. Havia mudado os rumos de seus pensamentos desde que aquela voz lhe despertou a fera de modo violento, preferindo ir diretamente ao trabalho, descobrindo que levava metade do tempo trafegando por aquele caminho. Assim teria mais tempo para observá-la, foi o pensamento doentio de sua fera e apesar de não gostar nada daquele pensamento, teria de concordar. Era o plano perfeito.


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