Medo de escuro escrita por Santori T


Capítulo 1
Capítulo único


Notas iniciais do capítulo

Minha primeira one-shot, que era, à princípio, para ser uma short fic, mas, como sempre, eu marquei a opção TERMINADA e não consegui postar um novo capítulo. Também não deu pra editar e desmarcar depois XD Mas é isso aí rs

Esperando que gostem,

Até breve!



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Apesar dos meus valentes esforços para enxergar escuridão adentro, usando como única fonte de luz a chama fraca de uma vela a derreter-se por sobre um antigo castiçal poeirento que eu carregava em uma das mãos, eu podia ouvi-la, lamuriando-se em um dos cantos da sala.

Casas antigas têm desses problemas, eu pensava comigo, usando a razão companheira como consolo e rota de fuga dos medos que me assolavam, naquele momento, até os ossos da espinha. De hora para a outra se desfazia a luz. Coisa de ajustar os disjuntores carcomidos e pronto, a luz estava lá de novo, clareando os cômodos, diluindo as sombras horrendas que os móveis projetavam nas paredes. Mas o fato era que em pouco mais de um mês residindo ali, nunca havia ocorrido tal inconveniência. E como todo cidadão que carrega enterrado à alma seus pecados sujos, acovardado de se confessar, mas ainda assim temendo o inferno como se teme a própria morte, fui pego desprevenido pelo apagão repentino, e depois de gritar, corri a trancar-me no banheiro, me escondendo dentro da banheira vazia por minutos à fio.

Passado o susto inicial que antecede a volta completa da lucidez e, consequentemente, a sensação de estar sendo, além de um grande maricas um completo idiota, levantei-me tropegando e destranquei a porta, passando para o corredor do segundo andar de minha nova casa.

Enquanto ria de minha atuação patética e vasculhava gavetas e armários, tateando o mobiliado a esmo, encontrei o tal castiçal com a meia vela e imediatamente o acendi com o isqueiro que trazia no bolso, porque desafiar o escuro, eu tinha que admitir para minha humilhação pessoal, nunca me fora discutível. Passei, então, o castiçal para a mão esquerda e alisando as paredes caminhei para as escadas, tendo em mente as palavras do antigo senhorio:

“Os disjuntores e toda a fiação principal ficam numa caixa junto à parede, no porão, perto do velho aquecedor a carvão. É só dar um tapinha e pronto, o senhor terá luz de novo”.

O escuro é coisa engraçada, considero particularmente. Basta enegrecer tudo pra mente da gente começar a trabalhar. No meu caso, contra mim, é claro. A visão dobra de intensidade, a audição e o olfato ficam mais apurados, mas quem ganha esse racha é a imaginação. Numa batalha entre a visão e a imaginação, minha imaginação ganha a luta com facilidade e condecorações pelo excelente trabalho. Imagino mais do que realmente vejo, e somando isso ao meu medo quase fóbico de escuro, resulto num grande saco de bosta. Onde já se viu um homem de trinta e cinco anos, divorciado há dois, com uma carreira brilhante no ramo da contabilidade e mulheres a beijar-lhe o chão que pisa temer a escuridão? Inadmissível, você diria. E eu também o digo. Mas, vergonhosamente, eu temia o escuro, e como me odiava por isso. Como me odiava!

Abandonei meus devaneios quando comecei a descer as escadas. Faltavam poucos degraus para alcançar o patamar na sala de visitas e a negritude só fazia adensar com a transição da noite para o início da madrugada.

“É o horário preferido deles”.

Um pensamento me veio à mente, e na hora mais inoportuna, tenho que ressaltar. Lembrei do comentário vago e deveras intrigante do antigo senhorio na tarde em que eu havia mudado.

“Desculpe, Seu Pedro, de quem o senhor está falando?”, recordei de ter perguntado, sem interesse real na resposta.

“A madrugada é a hora deles, doutor. Ouça o conselho de um velho, doutor, não saia da cama de madrugada. Fique lá até acabar”, disse Seu Pedro incoerentemente antes de seguir seu rumo, fosse pra onde fosse.

Quando pisei no soalho da sala e ouvi algo mais que o ranger das tábuas velhas daquele cômodo, soube imediatamente sobre o que falara Seu Pedro. E era tão nítido quanto o som de minha própria respiração descompassada. Correu de um canto ao outro da sala pequena, ainda lamuriando-se num chorinho irritante.

“Q-quem está aí!?”, bradei mais alto do que desejava, empunhando a vela na altura do rosto, o corpo tremendo, os dentes tilintando incessantemente.

* * *

A coisa calou-se, enfim. Também aquietei-me, controlando meu pavor e mordendo meu lábio com força. Silêncio absoluto. Senti em mim que ela estava aguardando. Aguardando-me falar? Não. Avancei um passo na direção de onde sabia estar o sofá. A coisinha grunhiu como um leitão, no que solavanquei para trás, assustado, lutando contra a vontade de abrir a porta e sair correndo pela rua. Ela voltou a lamuriar, agora mais audivelmente, como se me desafiasse, de alguma forma estranha e anormal, a me aproximar e saber o que aconteceria.

“Olhe, por favor... Eu moro sozinho e acabei de me mudar para cá...”, supliquei, tendo a pretensão de imaginar que, fosse aquilo o que fosse, talvez pudesse ler meus pensamentos e saber que eu a queria fora da minha casa.

Arrisquei mais um passo. O vento frio da região adentrava pelas frestas das portas, janelas e pelo soalho empoeirado, fazendo minha única luz bruxulear ora ou outra. Porém, ainda que fraca, a chama foi suficiente para mostrar-me o que se escondia no vão apertado entre a parede e a velha arca de carvalho, logo atrás do sofá. Uma silhueta pequena, curvada, da cor da cera, metida ali no meio, o rosto escondido nas sombras. Ela não me viu aproximar. Ainda miava como uma gatinha com fome.

“Ei... Oi”, murmurei cuidadosamente dando a volta no sofá e parando diante dela, “Pode me dizer o seu nome, querida?”.

Ela mergulhou num silêncio imutável. Não atreveu-se a me olhar.

“Como entrou aqui?”, insisti, determinado a descobrir o meio de entrada e saída da criança e anotando mentalmente que deveria lacrar tal rota para evitar incômodos futuros.

“Você veio sozinha?”

Vi a cabeça dela fazer levemente que não, ainda que não se virasse para mim.

“E vocês vêm sempre aqui?”

Ela meneou a cabeça positivamente.

“Você fugiu de casa, não foi?”, deduzi, lembrando de meus tempos de moleque e de meu hobby preferido: enlouquecer minha mãe, fazendo-a achar que eu havia fugido de casa. A melhor forma de executar minha vingança quando estava com raiva. Mas minha convidada fez que não.

“Me diga onde você mora, eu posso levá-la em casa. Seus pais devem estar preocupados com você”, comentei com ar falsamente paternal. Nunca tive vocação para pai de família.

O que ela fez em seguida me surpreendeu de tal forma que caí sentado, quase deixando a vela apagar com meu descuido. A criança elevou um dos braços, muito magro, dobrou o pulso e apontou para baixo. Ela não me mostrava o soalho ou o quanto ele precisava de uma limpeza emergencial. O que ela quis dizer, e foi exatamente isso que me assombrou, era que morava ali, na minha casa.

Permaneci atônito por um tempo, até lembrar de minha voz, presa na garganta.

“Onde está sua mãe?”, perguntei sentindo calafrios correrem a espinha.

“Perto da porta”, ela respondeu baixinho.

“E... Seu pai?”, eu já estava de pé, a passos de distância dela, a vela tremeluzindo nas mãos.

“Atrás de você”, ela disse.

Então fez-se silêncio.


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Notas finais do capítulo

Bem, bem, esperando a opinião alheia, se possível rs

Beijinhos!