Despedida De Leslie escrita por Sabaku no Emily


Capítulo 3
Crise emocional


Notas iniciais do capítulo

Enfim, como eu tinha dito antes, os capítulos daqui para a frente serão narrados pela Claire! Espero que gostem!



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Dias assim eram para ser esquecidos.

Abri a porta de casa e a lufada de ar gélido me trouxe de volta à realidade, lavando o torpor. Minha mãe estava sentada à mesa, e por sua expressão eu podia saber o que estava por vir. Tirei a mochila do ombro e a joguei no chão num lugar qualquer, e caminhei em passos lentos e desanimados até Molly.

– Como foi a aula hoje, filha? – Puxou uma cadeira para mim, e eu me sentei, a observando colocar o queixo sob os dedos entrelaçados. – Tudo certo?

– Arrã. – Menti, mexendo no forro da mesa, tentando parecer descontraída. – O que aconteceu?

– Nada. – Ela mentiu também, pois mexia no forro que nem eu. – Eu vi você saindo com o garoto dos Young... Voltaram a conversar?

– É. Pode ser.

– Ele é bonito, não é verdade? – A minha mãe é do tipo que não se contenta em falar apenas uma coisa, e isso me irrita. Eu não estava a fim de falar do Lucca. Não agora.

– É. Pode ser também. – Dei de ombros, tentando acabar com este assunto o mais rápido possível. – Vai me dizer o que aconteceu ou não, Molly?

O suspiro dela me fez olhar para seu rosto e observar sua feição desolada.

– Nós vamos nos mudar.

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Só retomei a consciência quando estava com as mãos sangrando e cheias de farpas entre os dedos e debaixo das unhas. Olhei para a porta manchada e assimétrica. Fiz buracos do tamanho de maçãs na madeira, e a arranhei também. Resultado: múltiplos machucados e hematomas nas mãos.

Me lembro de ter subido as escadas e me jogado na cama assim que a minha mãe me deu a notícia. Eu não iria me mudar. Nós tínhamos apenas um mês. Apenas um mês. Ela iria sumir. Lucca iria sumir. Tudo iria sumir. Todos que eu conhecia. Ela não podia ir embora. Era a única prova que eu tinha de que aquilo tudo era verdade.

Eu me odeio por isso. Por não ter a obrigado ficar comigo.

Tremendo. Eu estava tremendo e chorando. As lágrimas tão espessas que dificultavam minha visão, e eu não podia enxugá-las já que as mãos doíam. A dor viera como alerta de que eu estava viva. Resfoleguei e funguei algumas vezes, com os joelhos parecendo mais duas marias-moles, prontos para desabarem a qualquer momento.

A minha raiva foi tanta que mal conseguia respirar, e descontei tudo na porta. Alguns segundos de escuridão e nos outros apenas as minhas mãos inchadas. Não me lembro de mais nada.

Já podia saber que Molly não deixaria a barulhada passar, e que estava a caminho, pois quando ela abriu a porta, meus joelhos cederam e o chão se tornou inexistente abaixo de meus pés, me fazendo cair totalmente arrasada.

Ela me enlaçou em seus braços e eu deixei, recostando a cabeça em seu peitoral e chorando, chorando. Chorei bastante, mais do que qualquer um choraria sob minhas circunstâncias.

– Claire, você tem que entender que nem tudo é como você quer. – A mãe suspirou e tirou um pouco de cabelo grudado nas minhas bochechas.

– Eu não posso ir, mãe. – Sussurrei, apertando os olhos e afundando o rosto em seu peito, já soluçando novamente.

– Shh... – Ela me balançava de um lado para o outro. Que situação ridícula. Mãe e filha sentadas em cima de um carpete velho, uma mais devastada que a outra. Estávamos um caco.

–Mãe... –Passei as mãos trêmulas por meus cabelos suados, consequentemente manchando minha testa de sangue.

Ela não respondeu, apenas me deixou num vazio escuro e aberto, me ninando. Como uma ferida sem casca, pronta para a contaminação. Por fim, preguei os olhos e me rendi ao sono, quando ele chegou, me embainhando em seu casulo de veludo.

...

Era Lucca, num corredor da escola. Ele estava lá, intacto e sólido, bem na minha frente e dizendo coisas frias e inalcançáveis. Eu permanecia apenas o observando, com a ferida aberta no peito, cansada. E foi aí que ela apareceu, com os cabelos voando e com roupas pretas, maquiagem berrante. Mas não era ela, era apenas meu sonho. Decidi isso quando estiquei o braço para alcançá-la, mas tudo o que consegui pegar foi poeira. Decidi não manter expressão alguma em meu rosto, apenas fitá-lo enquanto mexia aqueles lábios perfeitos, me dizendo coisas amedrontadoras.

Pisquei uma, duas, três vezes e meu pai estava lá, cantando uma canção. Eu sabia que era ele, pois tinha visto suas faces muitas vezes nas fotos proibidas que a minha mãe guardava em casa.

Ele cantava algo que não me alcançava, Lucca dizia coisas sem nexo, igualmente inalcançáveis e Leslie permanecia poeirenta – eu tentava alcançá-la de segundo em segundo.

E foi assim que acordei assustada, não me sentindo realmente aliviada por ser apenas um sonho. O sonho era tão doloroso quanto à realidade, mas a onda de torpor havia me atingido em cheio enquanto dormia, portanto não pestanejei na hora de abrir os olhos.

Um erro.

Abrir os olhos tinha sido um erro quase fatal para mim. Acordei apavoradíssima e tudo que via era branco e mais branco. Não encontrava a mulher ruiva de olhos verdes de maneira alguma.

Numa explosão de adrenalina, me lancei para fora da cama, e teria caído se não fosse por alguém.

– Calma, Claire. – Lucca sorriu, segurando meus ombros. – Está tudo bem.

Ficou me encarando por um enorme momento, afastando o cabelo de meu rosto.

–Oi. –Ele me cumprimentou, enquanto eu apenas o encarava totalmente perplexa.

Uma enxurrada de raiva e ódio percorreu meu corpo e foi se acumulando na minha garganta, em forma de choro. Mordi o lábio inferior. Estava sem fala.

Lucca não era do tipo que te pressionava para falar alguma coisa. Eu ainda estava muito confusa com tudo aquilo que estava acontecendo, afinal, era evidente que eu estava em um hospital, mas não sei como, pois minha mãe nunca teve dinheiro para bancar um.

Ele foi paciente e esperou. Esperou eu sumir com a ideia de que ele era o mesmo que me magoava nos sonhos, o mesmo de sete meses atrás. Então, após alguns minutos em que eu apenas arfava, gritava e tentava sair correndo, ele segurou minha mão por cima das ataduras e me impediu de cometer alguma burrada. E eu o agradeço por isso.

No final, eu me acalmei, apesar de ainda estar suando frio, e o abracei. Pelo menos era o que eu pensei em ter feito, pois me vi o abraçando apesar de continuar no mesmo lugar. Não estou entendendo isso, meus pensamentos estavam meio letárgicos.

– Eu... Eu... M-Me desculpe. – Foi o que consegui dizer. Não sabia pelo que me desculpava, mas mesmo assim o fiz.

–O foi isso? –Ele direcionou seus olhos para minhas mãos, após ter ignorado meus pedidos.

Contraí meu braço e o coloquei rente à barriga, as escondendo, apesar da dor aguda me forçar à fazer caretas. Olhei para meus ferimentos que estavam muito bem cuidados e desinfetados.

–Eu... Me machuquei.

–Não foi isso o que a Sra. Green me disse, Claire. – Ele colocou a mão em minha testa e se jogou ali mesmo, ao meu lado, deixando a mochila de escola escorrer de seu ombro e cair no chão. – Opa.

Eu sorri. Ou talvez tenha feito uma careta pela dor nas mãos. Não sei muito bem.

–Duas perguntas. – Disse, me ajeitando ali no travesseiro, não menos apavorada.

–Manda. – Respondeu ele, tentando me ajudar, já que eu mal conseguia mexer as mãos.

–Onde eu estou e o que é que você está fazendo aqui? – Arqueei uma sobrancelha, enquanto o suor escorria em gotas por minha testa.

Lucca finalmente soltou meu travesseiro e suspirou, já colocando as mãos nas têmporas.

–Sobre isso... – Abriu a boca para falar, mas fora interrompido por um homem de meia idade, cabelos esbranquiçados e óculos, que falava muito formalmente com... A minha mãe.

Pisquei mais algumas vezes e descobri que não era a minha mãe, mas sim uma enfermeira. Eu estou vendo coisas e isso me apavora.

– Srta. Green? – O médico ajeitou os óculos no rosto e veio para perto de mim. Quando Lucca se inclinou para levantar, eu segurei sua mão com mais firmeza, apesar de que os cortes fizeram a pele repuxar e doer. – Tudo certo por aqui?

Não sei. Esse médico era muito estranho para mim. Ele de repente se distorceu e virou uma pessoa diferente. Não era mais o cara de cabelo grisalho, mas sim de cabelos louros e grandes. Apertei mais a mão do Lucca, o que fez a minha própria sangrar.

O doutor veio em minha direção e se sentou ao meu lado, assim como Lucca fizera. Mas quando olhei para ele, não estava ali mais. O fato é que do nada, sem nem mesmo o homem estar perto de mim, um clarão inundou meus olhos, que se esforçavam para acompanhar o ritmo das coisas. E depois disso, tudo apagou.

...

Não me lembro de ter acordado, ou sequer dormido. Só sei que estava ali, enquanto via tudo passar por meus olhos. O chão se transformando em um rio de jacarés e outros répteis, ou aranhas caindo em minha face enquanto eu apenas observava a chuva do lado de fora da janela. Aquilo tudo era muito, muito real para mim. Vi minha mãe poucas vezes, mas é que eu não conseguia chamar por ela. As coisas eram muito vagas para mim. Vagas e distantes, como se não pertencessem a aquele mundo.

Ou melhor. Como se eu não pertencesse a aquele mundo.

Num minuto era dia. No outro, era noite. Acho que eu não conseguia acompanhar o ritmo das coisas. Não sei também como não comi nada ou como não fui ao banheiro, mas o fato é que eu não me lembro do que eu fiz, ou do que eu disse. Só me lembro de estar ali, deitada na cama, olhando para a janela.

E foi o que eu fiz, por muito tempo. Eu acho. Nos dias seguintes, me lembrava de comer algo, ou dormir. E me lembrava de minha mãe. Comecei a me lembrar de meu pai. E não enxergava mais aranhas nem nada do tipo. Me lembrei do meu nome. De Lucca. De tudo.

De tudo antes desse meu bloqueio natural. Não sei bem o porque, mas comecei a chorar quando reconheci minha mãe, após esse meu retorno de consciência. Ela disse que Lucca vinha quase todos os dias, e que várias pessoas haviam me mandado cartões. Eu não quis os ler, porque não me lembrava de como fazer isso, ou da maioria dos que me enviaram.

Meus movimentos ainda estavam letárgicos, e eu mal conseguia virar o rosto sem querer vomitar ou algo do tipo. O médico disse que isso tudo que estou passando foi apenas uma crise emocional. Eu estava muito mal esse tempo todo, e que o meu surto foi a última gota d’água. Agora eu tinha que tomar vários remédios e ficar em repouso durante muito tempo. Acho que emagreci, mas não dou conta de erguer o braço sem ficar sem ar. O melhor é esperar tudo isso passar e dormir um pouco.

...

Estava tomando uma sopa quando a porta foi aberta de um modo furtivo, e pude ver os cabelos negros dele pela vidraça tornarem parte do ambiente em que eu estava. Imediatamente soltei a colher e a deixei cair no prato, esparramando comida para todos os lados.

– Oi. – Ele disse, sorrindo.

– Oi – Desta vez tive certeza de que tinha respondido. E o melhor: consegui sorrir sem vomitar na cama.

– Caramba, parece que a Claire voltou à ativa. – Riu e se sentou ao meu lado, como da última vez. Ele parecia mais alto, não sei. – Tomando sopa, com camisola de hospital, vai para a balada, é? – Piscou para mim e eu ri, enquanto o observava pegar a colher de plástico a afundar na sopa, comendo logo em seguida.

– Hey, é a minha sopa, idiota.

– Tudo bem, tudo bem. Sopa vai parecer algo muito ruim se compararmos ao que eu trouxe. – Jogou a colher para o lado e sorriu, tirando a mochila das costas e a abrindo. – Ta-nã!

Lucca tinha trago algo que eu amava comer. E que nós dividíamos nos tempos antigos. Sabe aqueles tubinhos doces? É.

Não sei quantos eu comi, só sei que foram o bastante para ele ter que me carregar até a janela para eu vomitar, já que ele seria “punido” se fosse pego dando comida aos pacientes. Tenho pena de quem levou chuva de vômito.

Passamos o resto da tarde rindo. Tanto que eu tive que ir à janela mais duas vezes, e mais duas pessoas levaram vômito no cabelo. No fim, eu e ele estávamos deitados, assistindo à um documentário sobre modelos seminuas.

Ele olhou para mim e passou um dedo por meu cabelo, tirando um pouco de sopa que havia garrado e depois lambeu. Eca.

– Hm, ainda está gostoso. – A personalidade quase inabalável dele fazia bem à mim.

– Mas é claro que está. – Olhei para ele, como se tudo fosse óbvio demais. – Meu cabelo aquece as coisas naturalmente.

E ele caiu na gargalhada, antes de se levantar, bagunçar meu cabelo e dizer que estava muito tarde e que teria de ir embora. Eu chorei depois que ele saiu.

...

As horas seguintes não foram inundadas por meu estupor natural. A minha ferida permaneceu aberta, corroendo-me de dentro para fora, quase me levando ao completo delírio. Foquei em minha respiração que estava trêmula, falha e lenta. As horas não passavam, era uma eternidade de agonia, apenas olhando para a janela, com a expressão contorcida.

O dia custou a amanhecer, apesar de que quando Lucca saiu pela porta, minha mãe entrou. Era um saco eu não poder ter mais de vinte minutos sozinha. Mas bem lá no fundo, eu sabia que não podia ficar sozinha. Que se acontecesse, eu faria uma burrada, como... Como ela.

Prefiro deixar para pensar nessas coisas depois, quando não estou tão emocionalmente frágil.

Então, sem ter mais o que fazer, resolvi ir dormir. Ou tentar, pois aquele momento não passava. O médico disse que era normal sentir falta de alguém, mas que no meu caso era algo descomunal.

E eu só sinto tanta falta assim por ter sido impotente. Ela não morreu naquele dia em que se jogou do quarto. Minha amiga morreu lentamente. Mais e mais a cada dia.

Eu sem quem matou Leslie.

E vou me vingar.


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Notas finais do capítulo

Críticas?



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