A vendedora de guarda-chuvas e o filho do coveiro escrita por tamirsalem


Capítulo 7
Capítulo 6 - Memento Mori


Notas iniciais do capítulo

É aqui que a história realmente esquenta, mas a transição ficou brusca demais... Todo feedback serve, pra ajudar a melhorar isso~



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/410770/chapter/7

Mas por que sorriem? Sorrisos e mais sorrisos, tolos, vazios, despidos de qualquer motivo existencial, inebriantes, forçados eternos. Sorriem, sorriem, sorriem por motivo algum, seus corpos apodrecem, seus lábios envelhecem, mas estão eles a sorrir doentiamente, sempre a sorrir. Debaixo da terra, os cadáveres sorriem.

O obsessivo sanguinário suja as suas mãos, jamais limpas depois daquilo, as enfia em montes intermináveis da mais suja terra para satisfazer-se psicologicamente e indubitavelmente as mergulharia e as encharcaria em poças infindáveis de sangue, mesmo que o fizesse inconscientemente, na calada da sombria noite.

A romântica manipuladora assiste-o, observa-o e, inevitavelmente o controla e o obriga a saciar sua antes reprimida obsessão, une-se a ele num eterno e impronunciável pacto, inquebrável como era na realidade, inexistente, jamais sendo formalmente estabelecido ou selado, de certo o que o tornava tão especial, tão estranhamente puro, talvez até uma mera brincadeira infantil onde tudo não passava de um ilusório ato, onde tudo era falso e onde as terríficas palavras não foram devidamente consideradas, seu esmagador peso desconsiderado.

Suas almas desfaziam-se numa torturante e perpétua dança, utilizando-se do pretexto da justiça divina para pecarem, assassinarem, ingenuamente achando-se certos, iludidos pela infantil visão de que todo o sofrimento poderia ser erradicado por meio daquele simples pacto, sendo somente eles dotados da coragem, da perspicácia necessárias para que fossem capazes de realizar tão sagrado ofício, sendo, portanto, silenciosamente incumbidos de tal tarefa, sem possuírem a liberdade para simplesmente desistirem.

Não obstante à inabalável certeza de que seus atos não eram merecedores de punição, suas motivações diferiam: ela secretamente almejava a embriagante sensação de poder, renegando a existência de um Deus propriamente dito, tomando para si o cargo de representante do poder divino na Terra, realizando a árdua tarefa junto a ele, uma tarefa que, de acordo com sua distorcida visão, sobraria para cada um dos humanos; ele necessitava da apaziguadora certeza de que todos morreriam calmos, diferentemente de seu pai, tirando muitos da angústia e os dando uma calma morte para redimir-se diante de Deus por não ter ajudado o pai.

*guardachuvinhaepácomoobomevelhotroçinhodeseparação-q*

Os flocos de neve descendiam lentamente, a janela estalava, congelada, a escuridão noturna costumeira dominava o ambiente matinal, como em qualquer manhã de inverno. O enregelante frio entrava dentro do casebre por meio de cada fresta entre as tábuas de madeira mal-pregadas, envolvendo Isaac e Hannah. Abraçaram-se instintivamente, buscando mais calor.

Os olhos de Hannah abriram-se vagarosamente, suas pupilas esmeraldinas acostumando-se a falta das rosadas manhãs de verão. Em sua mente, a intrigante memória de um específico e obscuro sorriso, artificial, ressurgiu, desajeitadamente desenhado na boca de Jacó pelas mãos de Isaac, um imensurável descuido que abria uma ínfima fresta para dentro de seu mórbido subconsciente, terreno fértil para o plantio aquela da semente daquela coisa, horrenda, pura aos ingênuos e distorcidos olhares dos dois.

Hannah deslizou seus alvos dedos pelos cabelos castanho-escuros de Isaac, observando aquela dócil criatura num profundo sono, ponderando se ele era mesmo fiel a crença justiceira que lhe apresentara rapidamente no dia anterior. Quão longe iria ele em nome de tal justiça? A ilusória máscara ostentada pelos seus olhos azuis era capaz de enganar aqueles que cogitassem que ele fosse capaz de matar no momento que olhassem, mesmo que de relance, para seu rosto; porém, o mesmo não podia ser aplicado a quem o conhecesse mais de perto, Hannah percebera.

Ela inclinou-se, seus lábios quase roçando os de Isaac, e cutucou sua bochecha suavemente, fazendo-o acordar subitamente.

Os olhos de Isaac abriram-se imediatamente e um fervoroso rubor tomou conta de todo o seu rosto, devido à proximidade dos finos lábios de Hannah. Ele tremeu, tomado por tremendo estupor e nervosismo, desorientado; hesitante, balbuciava palavras dúbias, desconexas. Sôfrego, procurou se aproximar, sem uma exata noção do que estava fazendo, sentindo somente uma estranha vontade, talvez até necessidade, de beijar-lhe os lábios. Por um breve instante, seus lábios quase se encontraram, porém Hannah irrompeu numa estrondosa gargalhada, deleitada com a já esperada e confusa reação de Isaac, e beijou-lhe a testa carinhosamente, habilmente se esquivando de tão embaraçosa situação que ela própria havia criado propositalmente, com intuito de observar a irrisória reação de Isaac e de extrair dele de forma imperceptível o grau de afeição que este sentia por ela.

Os batimentos acelerados, o coração de Isaac palpitava, a dúvida, mais forte que o tênue sentimento de rejeição que brotara em sua mente, dominava-o. “Amava-o Hannah?” perguntava-se.

O antes intransponível abismo de solidão que havia se aberto após a morte de Jacó subitamente fechara-se, o angustiante sentimento de dor que intoxicava-o sufocado em seu apogeu; concomitantemente, a ambrosíaca sensação proveniente da talvez precipitada conclusão de que Hannah amava-o, baseada em parciais e rápidas interpretações de seus ambíguos atos enchia-o.

Certezas reconfortantes surgiam-lhe no âmago de sua mente, concatenando-se com seu imaturo e ardente amor por Hannah: a certeza de que podia expurgar-se de seu pecado, sua fatal falta com o pai, de maneira ainda desconhecida, mas que certa e naturalmente brotaria de sua convivência com Hannah; a certeza de que afligir-se não fazia mais sentido algum, o pai havia simplesmente ido, convencia-se, sua estranha relação de distante e impronunciado afeto para com ele produzindo um mórbido sentimento de profunda e verdadeira aceitação, quase indiferença quanto à sua morte. Seu pai jamais estivera verdadeiramente vivo para ele; sua figura espectral sempre arrastara-se pela casa, como uma alma penada, talvez proveniente de um dos inúmeros cadáveres enterrados no cemitério ao redor do casebre, sua voz raramente ouvida. O pai perdera o gosto por viver, vivendo numa constante depressão, uma desesperadora consternação, sem abandonar Isaac, porém mantendo uma distância psicológica, que o transformara em um ser solitário e independente.

Era chegada a fatídica hora de redimir-se. Libertaria sua obsessão dos grilhões que a prendiam, deixando a livre como um pássaro, um corvo agourento. Não o sabia, mas sem dar-lhe remorso algum, seria essa mesma obsessão que fá-lo-ia são. Levantou-se, seu corpo pesado, cheio de uma determinação macabra.

“O sorriso não pode morrer.” Hannah murmurou, enigmática, olhando-o demoradamente e levantando-se.

“É meu trabalho.” ele respondeu, colocando seu casaco, perturbado pela idéia que surgia.

“Enterrar as pessoas é o seu trabalho; salva-las é sua obrigação.”

Matar. Ceifar almas. Sem que precisasse tomar qualquer atitude, o antes ingênuo Isaac enveredava pelo caminho maldito, o mesmo que ela pretendia seguir. Percebera ele que talvez, só talvez, todas as suas certezas concatenassem-se com aquele desesperador, horrível, subjugado ato de matar. Roubar uma vida, como foi roubada a do pai. Acabar com um ser humano e ter de conviver com o excruciante peso na consciência. Crime hediondo ou caminho para a salvação? Teria ele realmente a ousadia de fazê-lo? Não; não sozinho. Talvez o fizesse, porém não suportaria as conseqüências; precisaria de alguém mais para ampará-lo, iludi-lo com falsos consolos, mentiras isentando-o da culpa. Precisava dela e somente dela.

“Eu sou só um coveiro, não um Messias.” retrucou Isaac, depois de muito pensar, tentando repelir a todo o custo a horrenda idéia que, parecia-lhe, ambos tinham, mas custavam a revelar claramente.

“Será mesmo? Não seria essa nossa obrigação divina, Isaac? Salvar, Isaac; salvar não é assassinar cruelmente; salvar é matar.” ela disse, determinada, fogo em seus olhos, um tênue eco de loucura em seu olhar, contrastando com seu aspecto sereno, frio, como se houvesse planejado tudo aquilo desde o começo.

O ambiente era austero; a idéia repugnante, impregnada na mente de Isaac se alastrava, infectava-o qual veneno mortal, dominando-o, os argumentos de Hannah convencendo ainda mais rapidamente, seduzindo-o a atentar contra vidas inocentes.

“Salva-las é sua obrigação, Isaac. Se salvar é matar...” ela disse, sua voz acelerada, carregando um tom insano, sedenta por extrair dele uma confissão.

“Não; eu não. Quem sou eu para decidir tal coisa? Deus não nos permite, Hannah. ‘Não matarás’, está escrito, é um dos mandamentos. Não, não, não! Eu não posso, você não pode, ninguém pode, não nos é permitido. Chega Hannah, não falemos mais disso, por favor.” respondeu, tremendo convulsamente, sua voz fraca, desumana; a batalha havia sido perdida, desse onde desse; haveria de ceder a tentação, não fazendo mais sentido protelar a conversa com qualquer de seus argumentos, porém insistia em fazê-lo, sua tola fé mais poderosa que ele, sua vontade de não enfurecer a Deus, de mascarar a sua intenção de desistir de juntar-se definitivamente Hannah forçando-o a continuar a balbuciar palavras ocas, sem efeito.

Ela segurou a mão de Isaac com força, trazendo-o para a sombria realidade que vagarosamente os engolfava e abraçou-o repentinamente, tomada por vigorosa afeição pela bela determinação de manter-se numa posição que era-lhe desfavorável e não lhe parecia certa somente para evitar a ira de Deus. Jogou-se junto com ele na cama, na espera de finalmente quebrar o tolo transe religioso em que se encontrava. Por um mísero instante, sentiu-se tomada pelo ardente desejo de realmente beijar-lhe os lábios, tremendo furor inconseqüente, tentação não relacionada ao amor que, suspeitava, poderia, naturalmente, nutrir por Isaac; vontade de trazer-lhe brusca e ardilosamente para fora, arrancar-lhe a máscara, faze-lo, sem violência alguma, por mero controle de suas emoções e portanto de suas faculdades mentais, admitir e mostrar a sujeira incrustada em suas mãos, o sangue imutável, eterno, inodoro e incolor, que maculava suas mãos, renegar o ilusório Deus que cultuava e abraçar o trabalho messiânico junto a ela, sacrifícios simbólicos para um obscuro Deus diferente, liberal, aceitador, que lhes confiava o trabalho sagrado apenas pelo simples fato de serem eles os únicos a oferecerem-se a realizá-lo com todas as suas insignificantes forças. Dotada de perspicácia vertiginosa, forçou-se a pospor o inevitável momento onde solidificaria a maravilhosa relação com Isaac; não era o momento certo, ideal; jamais conseguiria estabelecer a almejada e intocável relação com Isaac antes de criar uma expectativa quase angustiante, deliciosa e hipnótica para o crucial momento em que se declarariam. Precisaria criar mais momentos como o de instantes atrás, momentos de aproximação quase total e constrangimento simultâneo, abraços, carícias, quase roçar de lábios para fazer em ambos florescer algo mais que uma mera paixão fugaz, mas sim um amor praticamente irreversível, uma chama inextinguível. Mais que tudo, necessitava urgentemente tornar real e inexpugnável o pacto sombrio antes de qualquer tentativa de estabelecer o relacionamento; não poderia seduzi-lo daquele modo, leva-lo a amá-la para, em questão de minutos, faze-lo repugna-la por seus sangrentos atos e pedidos, por levantar novamente o mesmo assunto de que ele procurara, com tanto afinco, esquivar-se, por mais que, em seu interior, o quisesse abraçar e forca-lo a admitir suas reais crenças. Destruiria toda e qualquer esperança de amor duradouro; tornaria estéril a mente de Isaac para toda e qualquer idéia que lá quisesse plantar. Não o veria nunca mais, o traumatizaria e o arrastaria para a insanidade, para uma constante culpa desmerecida, talvez até o suicídio. Se arriscasse a o fazer, jamais haveria romance algum novamente, ou esperança para aquilo.

Observou Isaac, cujo delicado rosto ostentava perplexa expressão, expressão deveras agradável para Hannah, mais satisfatória do que a antiga conturbada expressão que o dominava, sinal definitivo de sua vitória. Vencera; finalmente vencera a Deus, vencera o povo e o mundo, vencera milhões de fies obstinados ao simplesmente derrubar Isaac de seu antes intocável altar de mentirosa fé.

Sem pronunciar sequer uma palavra, Isaac humilde e silenciosamente aceitou a inevitável derrota. Jubilosa, Hannah delicadamente beijou-lhe a bochecha.
”Nós somos Deus, Isaac.” ela sussurrou de si para si, silenciosamente.

Isaac esboçou um sofrido, porém sincero sorriso de derrota e admitiu:

“Você venceu.”


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "A vendedora de guarda-chuvas e o filho do coveiro" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.