As Crônicas Dos Malditos escrita por Ju The Ligthening Chaos


Capítulo 2
O Médico e o Assassino.


Notas iniciais do capítulo

Na primeira história de As Crônicas dos Malditos temos dois retardas que se reúnem para discutir retardadices. Não podia ser mais simples. Mas será que é apenas isso mesmo?



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– Puta que pariu!!!! – declarou subitamente o jovem sentado atrás da larga e elegante escrivaninha, chamando a atenção de seu companheiro que se encontrava ao seu lado.

– O que foi, Jack? Você está bem? – perguntou outra figura com não mais do que uma partícula de preocupação em sua voz. Pois já estava acostumado com as reações repentinas e exageradas de sua companhia, que quase sempre eram desencadeadas pelos motivos mais ridículos.

– Não, véio! É claro que eu não estou bem! Se eu estivesse bem, por que gritaria “puta que pariu” !? – disse Jack, em meio a um acesso de raiva tão falso que chegava a ser cômico.

– O que foi agora? Ainda está sentindo dor? Ei, não se mexa tanto assim, seu idiota! Vai acabar abrin....

– Mas não dá, Yoshi. Olha só aquilo ali, meu! – disse a figura exaltada, apontando com uma mão estendida para o dinossauro encostado na parede do lado oposto da sala. Era uma enorme caixa de madeira que possuía uma tela convexa em sua frente. Um artefato pré-histórico que gerações passadas tinham a coragem de chamar de televisão.

O aparelho reproduzia uma série de imagens e sons que Yoshi não contemplava desde que era criança e que agora pareciam ser o motivo por trás da indignação de seu colega.

– O créditos finais de Dragon Ball Z!? – indagou Yoshi, preparando-se mentalmente para a conversa completamente bizarra que ele já podia perceber que estava se formando. – Que porra foi essa? O episódio foi tão bom assim, pra você ter que ficar puto desse jeito quando ele acabou?

– Cara... – Jack começou a dizer, dando para seu amigo um olhar sinistro obscurecido pelas sombras formadas abaixo das mechas castanhas de seus cabelos - ...esse vilão lazarento disse que ia destruir o planeta em cinco minutos. Cinco minutos!!!

– E daí? – provocou Yoshi.

– E daí!? E daí que isso foi há três episódios atrás! E o maldito planeta continua inteiro! – revelou Jack, revoltado. – Quantas horas duram 5 minutos na cabeça dos caras que fizeram a porra desse anime!?

– Ah, meu... Para de dar chilique. - disse Yoshi, em um tom de divertimento. – Além do mais, nada nesse desenho faz qualquer sentido, e você só fica irritado com uma simples inconsistência cronológica?

A indagação de seu amigo fez Jack parar para ponderar. A luz que invadia a sala através das persianas que bloqueavam sua única janela desenhavam listras de um pálido tom de dourado sobre o corpo do rapaz.

– Foda-se! – ele disse após perceber que não estava com vontade de ponderar.

Jack então levantou-se da cadeira onde estava acomodado e dirigiu-se para perto da televisão. Seus paços ecoaram pelo piso de madeira escura até ele alcançar seu objetivo: um aparelho de DVD portátil que repousava encima do televisor. Jack abriu o aparelho e retirou o disco que lá estava encaixado, o que reduziu a imagem da TV a apenas estática.

– Eu nem gosto tanto assim desse anime mesmo... – retrucou para si mesmo. Depois lançou um olhar inquisidor para Yoshi.

– Já que está aí sentado, babando encima dessas porcarias desde que chegou, me joga outro DVD. E que seja algo que presta!

Yoshi correu as mãos e os olhos por cima da mesa, ainda maravilhado com a coleção de relíquias espalhadas sobre ela. Objetos que no passado eram tão comuns e sem valor e que agora eram um verdadeiro tesouro.

– DVDs piratas... – ele só conseguia dizer. – gloriosos DVDs piratas...

– Olá!? Terra para Yoshi, me passa um DVD aí!

– Onde, diabos, você encontrou essas coisas!? – Yoshi perguntou, fitando Jack com um brilho esperançoso em seus olhos que eram de um tom tão escuro de castanho que, dependendo da luz, ficavam quase pretos.

O jovem parado em frente à TV fez uma exagerada expressão pensativa, como se estivesse tentando lembrar-se de algo que não achava valer a pena ser lembrado.

– Ah! – ele disse finalmente. – Eu os comprei de uma caravana de mercadores há alguns dias atrás. Vou te falar, meu. Os caras nem...

– Você comprou!? – Yoshi o encarou com espanto. – Esses caras estavam drogados, por acaso!? Vender coisas tão valiosas para qualquer um...!

– É o que eu tô te falando! Os malucos não faziam a menor ideia do que tinham nas mãos! Eles trocaram tudo isso comigo por roupas.

– O que!?

– Por roupas! – Jack repetiu. – Roupas velhas, que já estavam com um puta cheiro de mofo, que eu encontrei nessa casa pouco depois que me mudei pra cá.

– Você tá brincando comigo. – foi só o que pôde dizer.

– Mas espera, tem mais. – Jack descansou a mão sobre o pequeno DVD-player acima da televisão. – Eles ainda me venderam o aparelho junto, e isso aqui eu tenho certeza que eles não sabiam o que era.

– Ah, não acredito! – Seu ouvinte protestou.

– Pensavam que era uma máquina de fazer panquecas.

A história absurda levou Yoshi a soltar uma gargalhada, levando seu amigo a fazer o mesmo. Mas depois, uma hipótese que surgiu em sua mente sufocou sua risada.

– Mas... Será que eles só foram assim tão generosos com você porque, talvez, eles soubessem com quem estava lidando?

Antes mesmo de terminar sua pergunta, Yoshi se arrependeu de tê-la feito. Pois ela fez o sorriso descontraído de Jack dar lugar a uma leve expressão de espanto que logo depois foi substituída por uma feição sombria que ele não conseguia interpretar. Podia ser raiva? Tristeza? Arrependimento? Ou simples incômodo?

Mas o semblante misterioso e perturbador de seu amigo durou apenas um segundo.

– Então... – Jack disse tentando fingir que não tinha dado atenção para a hipótese levantada por seu colega. – Eu ainda não tive tempo de testar todos os DVDs. O que você acha de escolher logo um deles aí para que possamos relembrar a nossa infância?

Preferindo retomar a conversa descontraída, Yoshi acenou positivamente com a cabeça e começou a estudar o conjunto de DVDs de legitimidade duvidosa. Seus olhos percorriam a superfície da face fosca de cada um, reconhecendo as palavras que haviam sido escritas grosseiramente sobre elas.

– Caralho, véio! Acho que só tem animes aqui – Ele constatou após uma breve análise. – O que você fez? Escolheu todos eles à dedo de um monte de outras coisas?

– Não mesmo. Eles já estavam todos juntos dentro de um monte de estojos para CDs. – Jack explicou aproximando-se despreocupadamente de sua companhia.

– Então, será tudo que isso era a coleção pessoal de alguém? – Yoshi perguntou, pensando que não gostaria de descobrir a resposta.

– Provavelmente – Jack respondeu. – Algum saqueador deve ter tirado eles de alguma casa abandonada. E do jeito que estão velhos, acho que essas cópias foram feitas antes do...

– Tá, já saquei. – Disse o jovem que ainda estava sentado em uma cadeira de escritório giratória, impedindo seu colega de completar um pensamento que não tinha qualquer necessidade de ser completado. Qualquer pessoa no mundo poderia saber sobre o que Jack estava falando.

– Deixa eu ver isso aqui – Yoshi continuou a conversa. – Tem vários aqui que eu nunca ouvi falar.

– Hã? Sério? – foi a reação do jovem à sua frente.

– É claro que é sério! Deve ter uns cem DVDs...

– 86. – Jack corrigiu

– Que seja. 86 DVDs aqui, é óbvio que eu não conheço todos.

– Bom... Como você é japonês, eu pensei que você conhecia, pelo menos, metade deles. – disse Jack, em um tom irritantemente inocente.

– Ah, então é isso! Só porque eu sou japonês, eu tenho que ter conhecimento enciclopédico sobre todos os animes que já foram criados!? – Perguntou Yoshi, fingindo sentir-se ofendido.

– Bem... Talvez – Disse Jack fingindo sentir-se constrangido.

– Em primeiro lugar, sua besta: eu não sou japonês. Meus avós é que eram japoneses. Japonês é só quem nasce no Japão, porra! – Explicou, continuando a encenação.

– Ah, então é assim.... – Comentou Jack, fingindo que não havia ouvido essa história milhares de vezes antes.

– E em segundo lugar: eu duvido que tenha restado alguém no mundo que conheça todos esses animes.

– Eu conheço. Já assisti quase todos eles. – Disse a figura parada em pé, de braços cruzados e com uma expressão de orgulho em seu rosto que era quase tão pálido quanto o de um cadáver.

– Assistiu... Quase... Todos... – Seu ouvinte impressionado repetiu, questionando se isso era realmente um motivo para se sentir orgulho. – Mas, como?

– Como? Isso é fácil. É só ir viver no bairro da Liberdade. Sozinho, sem nada pra fazer, por quase dois anos. – Respondeu cinicamente.

– Ah... Tá certo... – Disse Yoshi, um pouco embaraçado, coçando a parte de trás de sua cabeça. Sua expressão fazia parecer que a frase “Foi mal, cara” estava perfeitamente legível em seu rosto.

Jack inclinou-se sobre a escrivaninha estudando o conteúdo acima dela junto de seu amigo.

– Bom, já que você não conhece quase nenhum desses animes, deixa eu achar alguma coisa que nós dois nos lembramos. – Ele começou a investigar os títulos de cada obra, escritos em seus respectivos discos, murmurando de forma bem audível.

– Esse, a história é muito comprida. Esse é muito chato. Esse é muito confuso. Esse não foi concluído. Esse aqui é uma bosta. Esse é um hentai...

– Como é que você... Ah, deixa quieto.

– Que tal esse aqui? – Jack sugeriu. – Lembra desse aqui? Se chama Angel Beats.

– Ah não, não senhor! – Respondeu Yoshi, lembrando-se muito bem de qual anime ele estava falando. – Eu não atendi uma chamada de emergência às quatro da manhã, peguei a estrada no escuro completamente desprotegido, cheguei até essa casa que fica no meio do nada, realizei uma cirurgia sem nenhuma assistência e ainda usando pijamas – ele apontou para a camiseta listrada fina e amaçada que estava usando – só pra depois disso tudo ser obrigado ver um homem adulto chorando como uma garotinha por causa de um maldito desenho animado.

– D....Do que você está falando!? Eu nunca chorei assistindo Angel Beats. – Disse Jack indignado.

– Chorou sim, sua bicha. – O acusador insistia. A essa altura o rosto de Jack já estava levemente vermelho. Se era por raiva ou por vergonha, Yoshi não sabia dizer. Provavelmente as duas coisas.

– Não, não chorei! – Continuou se defendendo. – Eu só estava...Estava...Estava sangrando testosterona pura pelos olhos! É isso!

– Sangrando testosterona pelos olhos? – Yoshi repetiu, impressionado com a habilidade do cérebro de seu amigo em formular tão rapidamente uma desculpa tão incrivelmente idiota.

– Sim – Jack confirmou – É que eu sou tão macho que, de vez em quando, preciso eliminar o excesso de testosterona do meu organismo. Se não, posso morrer de overdose de macheza.

– Fala sério, Jack – disse seu ouvinte, tentando conter o riso.

– É sério. E se continuar insistindo nesse assunto eu vou garantir pessoalmente a sua matrícula no colégio que os personagens de Angel Beats frequentam.

– Tá certo, então – Yoshi respondeu depois de uma longa pausa para recuperar o fôlego, pois ficou rindo descontroladamente depois de ouvir a ameaça de seu amigo.

Naquele instante, Yoshi permitiu-se pensar em como aquelas conversas aleatórias, bizarras e completamente sem sentido que tinha com Jack o faziam sentir-se bem. Elas o levavam para vários anos no passado. Até mesmo a aparência de seu amigo de infância, que praticamente não mudara desde que frequentaram o ensino médio, o fazia lembrar-se de sua juventude. Uma época onde a vida era mais simples, despreocupada, e menos... Pós-apocalíptica.

– Cutucando velhas feridas, hein? – Jack soltou, fingindo que não havia dirigido essa estranha pergunta para ninguém em particular.

– Deu de ler meus pensamentos agora? – disse Yoshi, respondendo à pergunta estranha com outra pergunta estranha.

– Como se eu precisasse ler sua mente – ele respondeu secamente. – Também não precisava ter recebido a dica dessa sua cara de deprimido. Não quando você está assim, literalmente, fedendo a melancolia.

A reação de Yoshi foi de simplesmente lançar um olhar desinteressado em direção à janela coberta por persianas, como se a sugestão de que seu amigo pudesse sentir o cheiro de emoções humanas não o deixasse nem um pouco surpreso.

– Enfim, chega dessa frescura – Jack começou a falar em um tom animador. – Nada de ficar reabrindo feridas aqui. Você é um médico, não é? Seu trabalho é fechar feridas.

Então ele fez uma pausa e depois, com um tom assustadoramente despreocupado, adicionou em seu discurso.

– Abrir feridas é o meu trabalho, não o seu.

Um silêncio opressivo caiu sobre o quarto por alguns instantes.

– Nossa... – Disse Yoshi com nada além de cinismo em sua voz. – Mas como você está eloquente hoje, hein?

– Nossa... – Disse Jack, imitando o tom de seu amigo. – Como você está usando palavras requintadas hoje, hein?

Os dois voltaram a rir brevemente. Mas, movido por uma perturbadora dúvida, Yoshi forçou-se a tocar em um assunto delicado.

– Mas sério, cara. Eu não sou o último médico do mundo, nem o que vive mais perto dessa casa. Então por que precisou me chamar de tão longe pra vir costurar essa sua carcaça infeliz quando tem uma vila inteira, com seus próprios médicos, a menos de um quilômetro daqui?

A pergunta fez Jack estreitar seus grandes olhos azuis escuros para algum canto aleatório da sala, como se estivesse estudando com desgosto os vários rasgos e manchas que haviam no papel de parede antigo instalado no quarto.

– Há um motivo – revelou Jack com um sorriso sarcástico – Acontece... Que os médicos daquela comunidade desenvolveram o estranho hábito de me oferecerem assistência apenas quando estou levemente ferido. Mas quando estou em uma situação realmente perigosa eles, inexplicavelmente, perdem o interesse em me ajudar.

– Filhos-da-puta! – exclamou Yoshi. Sua mente afiada, após processar as informações que recebera, só conseguia chegar a uma única conclusão.

– Você tá falando sério? Porque do jeito que você falou, parece até que esses caras estão tentando...

– Se livrar de mim? – seu amigo ofereceu para concluir o pensamento. – Ou, pelo menos, não estão mais tão interessados em me manter vivo.

– Esses malditos só podem estar loucos – disse Yoshi, levantando-se com um sobressalto da cadeira. Seus quase dois metros de altura agigantando-se em frente a seu colega de estatura bem menor. – Ou, quem sabe, eles ficaram tão acomodados com suas vidinhas tranquilas, que se esqueceram que é você quem garante que eles possam continuar acomodados?

Enquanto seu amigo falava, Jack só conseguia pensar em uma coisa: “Caraca, mas com o que será que seu pai te alimentava pra você ter crescido tanto assim?”. Frente à frente com seu amigo, que ele conhecia desde os oito anos de idade, percebeu novamente que Yoshi era pelo menos uma cabeça mais alto do que ele. E não era só na altura que os dois se diferenciavam. Pelos anos que se seguiram desde o cataclismo, Yoshi ficara maior, mais musculoso, com a pele levemente bronzeada, tornando-se um completo oposto do baixinho, magro, pálido com cara de criança que Jack era.

– Sabe de uma coisa? – indagou Yoshi.

– Queria ficar alto. – Jack murmurou pensativo.

– O que?

– Ah! Nada não. Só estou brisando um pouco. Continue. – pediu Jack.

– Eu acho que a gente devia ir lá naquele cortiço e bater um papo bem amigável, se é que você me entende, com os caras que mandam lá. – o gigante sugeriu.

– Caramba – disse Jack um pouco impressionado. – Você não acha que é meio irresponsável da parte de um médico dar uma sugestão dessas para um assassino?

A pergunta sinistra só recebeu como resposta um silêncio igualmente sinistro.

– Mas pode deixar, é exatamente isso que eu pretendo fazer – Jack continuou, dando as costas para seu amigo. Ele então espreguiçou-se e voltou a sentar-se em seu lugar, na cadeira atrás da escrivaninha. – Assim que eu estiver recuperado.

– E quando você acha vai estar recuperado? – perguntou a figura ainda em pé em frente à mesa.

– Diz você, seu animal! Você que é o médico aqui.

Yoshi ponderou por um momento.

– Uma facada nas costas? Uma pessoa normal poderia levar meses para se recuperar disso. Mas não se preocupe. Se tratando de você, acho que amanhã já vai poder voltar a correr por aí para tentar se matar novamente.

– Ótimo, então vou resolver as coisas na vila amanhã. Mas, enquanto isso, o negócio é só relaxar. – disse Jack, entrelaçando os dedos de suas mãos atrás da cabeça e tirando as pernas de baixo da mesa para descansar seus pés descalços encima dela.

– O que você está fazendo! – gritou Yoshi.

– Relaxando – respondeu o relaxado.

– Você tá com pés encima dos DVDs, seu jumento! – o companheiro alertou-o.

– Putz – disse Jack despreocupadamente. – Mal aí, cara.

– Mal aí, cara!? – Yoshi repetiu com exaltação – Teve a sorte de esbarrar em um tesouro desses e já tá tentando quebra...? Meu Deus, eu adoro esse!

Yoshi interrompeu bruscamente seu sermão, tendo toda sua atenção roubada por um dos DVDs.

– Eu quero assistir esse, eu quero assistir esse – ele dizia parecendo uma criança.

– Tá bom então – disse Jack, tendo dificuldades em acompanhar a súbita mudança de humor de seu amigo. – Que anime é esse?

– Os Cavaleiros do Zodíaco.

Naquele momento chamas de fúria incendiaram-se nos olhos de Jack, ele saltou encima da mesa e agarrou seu amigo pelo pescoço que continuava sorrindo como um idiota.

– Você me chamou de bicha porque eu... Porque você acha que eu chorei assistindo Angel Beats! E depois tem coragem de me falar que gosta de Cavaleiros do Zodíaco!? – ele dizia sacudindo a cabeça de Yoshi, que parecia não se sentir nem um pouco ameaçado.

– O que você quer dizer com isso? – disse Yoshi rindo. – Não gosta desse? Mas é um anime tão legal.

– Anime de bicha! – Jack adicionou.

– Como ousa!? Cavaleiros do zodíaco é coisa de macho, véio!

– Coisa de que!? – ele perguntou indignado, sacudindo o crânio do amigo ainda mais violentamente.

– Você me ouviu. Essa é uma incrível e envolvente obra cheia de ação, personagens heroicos. E as lutas também são muito foda. Se existe algum anime pra homem, é esse aqui!

Jack podia pensar em mil maneiras de destruir a opinião de seu colega. Mas, ao invés disso, ele simplesmente perguntou.

– Quando foi a última vez que você assistiu esse desenho?

– Hã... Acho que foi quando eu tinha uns oito ou nove anos. – Yoshi respondeu.

Jack esboçou um sorriso sinistro e tirou as mãos do pescoço do amigo.

– Tudo bem. Pode assistir. – ele disse sentando-se sobre a mesa de pernas cruzadas.

– Sério? – perguntou Yoshi, seu rosto iluminando-se.

– Mas é claro, vá em frente.

Yoshi encaixou o disco no DVD-player e rapidamente sentou-se de volta em sua cadeira.

A versão brasileira da música de abertura do anime começou a tocar.

– Cacete! Essa merda ainda está dublada. – Jack reclamou. Mas à medida que música tocava, a empolgação de Yoshi aumentava cada vez mais.

– Se cantar, apanha. – Jack avisou-o.

Passando-se quase duas horas e quatro episódios de Os Cavaleiros do Zodíaco depois, Yoshi levantou-se calmamente, andou silenciosamente em direção à televisão e desligou o aparelho de DVD encima dela. Tudo isso enquanto Jack, com um sorriso maligno, o fuzilava com o olhar.

– E então, o que achou? – Jack perguntou suavemente.

Yoshi deu meia-volta para encarar seu companheiro, oferecendo-o um sorriso acalorado.

– Você tem razão, é muita viadagem num anime só – admitiu tranquilamente.

– Eu te disse! – anunciou Jack batendo os punhos fechados contra mesa, fazendo os DVDs saltarem por sua superfície.

– Um vilão usa esmalte vermelho numa das unhas, outro luta com uma rosa na boca, e você vem me dizer que isso é coisa de macho!? Ah, vai tomar no cu! – Jack zombou.

Yoshi coçava a cabeça, não sabendo o que pensar.

– Olha cara. Não era bem assim que eu me lembrava das coisas nesse desenho.

– Eu sabia que você pensaria dessa forma, já que era tão pequeno quando assistiu essa bosta. Mas é assim que esse anime sempre foi, porra! – disse Jack.

– Muito obrigado por arruinar a minha infância. – retruco Yoshi.

– Deixa de drama. Eu não acredito que você ainda achava...

Jack se interrompeu subitamente, e Yoshi percebeu o motivo. Enquanto eles estavam ocupados assistindo desenhos animados antigos, não perceberam que a iluminação na sala havia diminuído drasticamente ao ponto em que a luz emitida pela estática na tela da TV iluminava o ambiente melhor do que a luz que vinha pela janela.

– Onde estão a princesa e os outros? – perguntou Yoshi, reparando que o resto da casa estava estranhamente silenciosa.

– Onde eles estão? – Jack meditou. – Ah! Estão dando um passeio pela vila.

– Na vila? – Yoshi franziu uma sobrancelha.

– Zelda e Cora queriam fazer algo para te agradecer por tudo o que você fez - Jack começou a explicar distraidamente. – Você sabe, né? Ter atendido nosso chamado tão rapidamente, salvado minha vida de novo, esse tipo de coisa. Então elas resolveram ir até o mercado para poderem preparar, o que elas consideram, um jantar digno do herói que você é.

Seu ouvinte parecia perplexo.

– Você é burro, por acaso? Depois de tudo o que aconteceu ontem, você realmente acha uma boa ideia deixar as garotas passearem por aí até tarde para fazerem compras?

– Elas só estão tentando recompensá-lo, cadê a porra da sua gratidão? – Jack repreendeu-o em um tom não muito repreensor.

Era quase hilário para Yoshi ouvir uma lição sobre gratidão do cara que ele acabara de salvar e que nem se incomodou em agradecê-lo.

– E além do mais, Ricardo foi com elas. Ele insistiu em ir junto para bancar o guarda-costas, embora eu ache isso desnecessário.

– Desnecessário? – Yoshi repetiu.

– Incidentes como o de ontem nunca se repetem em tão pouco tempo, ainda mais quando o outro lado sobre baixas – Jack explicou tranquilamente – Aposto que, nesse exato momento, a notícia de que mais alguns idiotas viraram parte de uma triste estatística na luta contra o Dragão Negro está se espalhando por aí. E isso vai fazer com que qualquer um que estivesse pensando em visitar essa área para causar problemas fique desmotivado e resolva, no mínimo, adiar seus planos.

– Bom... Se você estiver certo então realmente não precisamos nos preocupar, pelo menos por enquanto. – Yoshi comentou, parecendo genuinamente aliviado.

Essa reação de seu amigo fez Jack refletir.

– Sabe de uma coisa? Às vezes, eu acho assustador o fato de você parecer tão confortável quando conversamos sobre esse tipo de coisa.

– Por que você acha isso? – seu amigo perguntou intrigado – Eu sei o quão importante é o seu trabalho. Por isso que concordei em apoiá-lo da forma que puder, como ajudando-o a se manter inteiro, por exemplo. E quanto a inevitável parte suja de seu serviço – sua voz assumiu um tom mais sério, mais sinistro. – Pelo que você acabou de me dizer, três pessoas podem andar tranquilamente por essas bandas, mesmo no fim do dia, só porque você fez o que precisava ser feito.

Yoshi voltou a sentar-se na cadeira ao lado da velha escrivaninha.

– E, na minha opinião, se a segurança de duas garotas e de um rapaz inocentes pode ser garantida por um preço tão baixo quanto as vidas de alguns assassinos e assaltantes, não vejo nenhuma razão para protestar.

Jack não se sentiu nem um pouco surpreso com a opinião de seu amigo. Ele sabia como Yoshi pensava sobre esse assunto, exatamente da mesma forma como ele pensava.

– Me ajudando a me manter inteiro? – disse Jack com uma insinuação de divertimento em sua voz – É, tá aí uma troca bem justa. Você junta os pedaços do meu corpo quando for preciso, para que eu possa continuar tirando pedaços dos corpos dos outros.

– Contanto que esses outros que você se refere mereçam o que você faz a eles, pra mim tá beleza então. – Yoshi respondeu friamente.

– Bem. Chega de falar disso – Jack disse subitamente após mais um momento silencioso e assustador entre eles. – agora vamos ao que realmente importa.

Ele encarou Yoshi com uma exagera expressão de seriedade e receio, como se estivesse prestes a revelar um segredo que abalaria as estruturas de todo o universo.

– Vai passar a noite aqui em casa? – ele perguntou alegremente, destruindo com um só golpe o clima lúgubre que a conversa anterior havia criado.

– Tá me estranhando, seu viado? – Yoshi o indagou, levantando-se subitamente de sua cadeira – Me convidando pra passar a noite com você? Eu sei que sou gostoso mas, na boa mano, contenha-se.

Um DVD projetou-se no ar como uma shuriken, acertando Yoshi bem no meio do espaço entre seus olhos.

– Não foi isso que eu quis dizer, seu maluco tarado! – anunciou o mentor do ataque. – Eu quero saber se você vai ficar aqui para aproveitar a porra do jantar que as garotas vão fazer em sua homenagem.

– Ah, tá me convidando pra jantar – Yoshi disse pensativo, enquanto afastava-se cuidadosamente de seu algoz. – Assim é melhor, sabe que comigo precisa ter um pouco de romance antes de qualquer outra coisa.

Outro disco foi arremessado, acertando seu alvo exatamente no mesmo lugar que o projétil anterior atingira.

– Posso fazer isso o dia todo. – Jack afirmou.

– Eu, humildemente, aceito seu generoso convite para jantar em sua mesa esta noite. – disse a figura que esfregava seu rosto dolorido com a mão direita.

– E, se vai jantar aqui, suponho que também vai querer dormir aqui em casa – disse seu anfitrião – A menos que você esteja pensando em pegar a estrada de volta pra sua casa no meio da noite.

– Você tá louco!? Tá achando que eu tô querendo morrer saindo do seu território, sozinho, no escuro?

Jack achou que a pergunta de seu amigo confirmara suas suposições.

– Então está decido – Jack disse saltando de seu assento para ficar de pé encima da mesa.

– Você já sabe onde é quarto de hóspedes, não sabe? – perguntou apontando com sua mão esquerda, do alto da mesa, para seu convidado.

– O sofá da sala? – Yoshi perguntou não parecendo muito animado.

– Isso mesmo – Jack respondeu parecendo muito animado. – Já pode ir se instalando, e ficando à vontade.

Então, subitamente, o jovem que se erguia encima da escrivaninha levantou o rosto levemente no momento em que uma suave brisa passou por entre as persianas da janela.

– Aqueles três já estão voltando, devem chegar aqui em alguns minutos.

– E como você sabe disso? – Yoshi perguntou. Mas resposta de Jack foi simplesmente apontar para o próprio nariz.

– Ah, certo. – comentou o indagador como se tivesse percebido que fizera uma pergunta idiota.

Jack então arregalou os olhos ao perceber que havia se esquecido de fazer algo importante, saltou da mesa para chão ficando frente a frente com seu hóspede.

– Preciso correr – ele disse com um tom de urgência – se a Zelda me pegar ainda usando pijamas, vai comer o meu rabo.

O comentário fez Yoshi perceber que seu amigo ainda estava usando a mesma calça moleton azul e a mesma blusa cinza surrada que havia vestido debilmente no final da última madrugada, quando ainda estava entorpecido por causa dos medicamentos que recebera.

– Sua amiguinha anda pegando no seu pé? – Yoshi zombou. – É o que você merece por ser tão relaxado.

– Falou o incrível cirurgião que atende os pacientes usando um pijama listrado. Você realmente dorme usando essas roupas de velho? – Jack rebateu.

– Q... Que diferença faz a roupa que se usa pra dormir!? – Yoshi perguntou, tentando evitar a pergunta de seu amigo.

– Enfim, vou subir pra trocar de roupas. Vou trazer um travesseiro e cobertas quando eu descer e deixá-los no sofá pra você usar de noite. – disse Jack afastando-se de Yoshi para andar em direção da porta que ficava na mesma parede em que a televisão pré-histórica estava encostada, e que era a única entrada e saída do quarto em que estavam. Pouco antes de sair do recinto, Yoshi teve um rápido vislumbre das costas de seu companheiro.

– Seu filho-da-puta!!! – Yoshi vociferou.

– Tá bom, tá bom. Te trago dois travesseiros então, não precisa ficar tão puto.

– Idiota! Não percebeu que seus pontos estouraram!?

Jack olhou por cima de seus ombros tendo uma limitada visão de suas costas. Mas mesmo assim, foi capaz de ver a grande e úmida mancha vermelha que crescia na parte de trás de sua blusa.

– Vish... Acho que você exagerou nos analgésicos dessa vez. – foi tudo que ele conseguiu pensar em dizer.

– Eu mandei você não se mexer muito, e você ficou correndo pela casa e pulando encima dessa mesa que nem uma criança, seu maldito! Eu devia te deixar sangrar até a morte! – Yoshi disse indignado enquanto corria para fora do quarto, passando ao lado do colega como um raio.

Jack ficou parado em frente a porta, tentando pressionar a mancha de sangue em suas costas com uma de suas mãos.

– Não abuse dos anestésicos de novo. – o jovem ferido requisitou, tentando aliviar a tensão do momento, enquanto ouvia seu socorrista revirando a casa inteira como se tivesse esquecido onde tinha deixado o kit de primeiros-socorros que havia trazido consigo naquela madrugada.

– E quem disse que eu vou te anestesiar? – Yoshi indagou com preocupação disfarçada de irritação. – Vou te costurar a sangue frio dessa vez, talvez assim você aprenda a me escutar e pare de desperdiçar meus esforços!

– De qualquer forma não me ponha pra dormir – disse Jack ignorando a ameaça de seu amigo – Não quero perder o jantar que aquelas duas fazem quando estão inspiradas.

– Jantar!? Como você consegue pensar em jantar numa hora dessas!? – seu amigo perguntou aturdido.

– Vai me dizer que você não está nem um pouco curioso com o que elas vão preparar para você? – Jack indagou, mantendo inexplicavelmente a sua calma.

Naquele instante, Yoshi reapareceu em frente à porta escancarada com um olhar estranhamente determinado. Em suas mãos estavam todo o conjunto de instrumentos que ele precisaria para reparar os reparos que havia feito em Jack apenas algumas horas atrás.

– Bem, vamos terminar logo com isso antes que a sua ninhada volte pra casa – Yoshi disse sombriamente. – Não quero atrasar a primeira refeição decente que vou ter em meses só por causa de sua estúpida experiência de quase morte.

Um sorriso zombeteiro brotou no rosto de seu paciente.

– Isso é o que eu chamo de motivação – Jack comentou tentando ser engraçado. – É como dizem, tudo na vida é uma questão de prioridades.


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Notas finais do capítulo

E aí,gostaram? Sei que a história não fez muito sentido, mas espero que tenham ao menos se divertido. E não se preocupem, tudo vai começar a se explicar nos próximos capítulos. Eu espero...



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