Kid velou por seu sono tranquilo por exatas duas horas, até resolver leva-la de volta, pois o sol estava para se erguer e a tal Nojiko poderia se preocupar. No caminho de volta para a casa dela, o ruivo não conseguia deixar de beber a imagem do rosto adormecido. Parecia uma criança. Quando voltava para o castelo, depois de deixar Nami em seu devido lugar, percebeu que fazia algo que nunca mais imaginara conseguir fazer. Sorria abertamente.

Mas o sorriso não duraria muito.

- Eustass Kid, você não merece a paz, e ela não virá a você por toda a eternidade. – As palavras de Yumi soaram cortantes como uma adaga. Ou talvez mais – Você não gosta de matar? Pois bem, matará. E as vidas que tirou e irá tirar não vão permitir que seu tormento se mitigue.

Kid sentiu seus dentes, suas presas, crescerem, sua pele empalideceu e gelou, deixando seus lábios rubros em mais evidência. As unhas cresceram e ficaram parecendo garras. As mãos, antes rudes, quentes e fortes, ficaram como as de um cadáver. Uma sede descontrolada tomou conta de seu corpo e de sua alma.

- O que você fez, sua bruxa?! – Eustass questionou assombrado com a metamorfose que sofria. Sentiu seu coração parar de bater e a necessidade de respirar se extinguir, mas mesmo assim continuou vivo. Ou ele pensava que sim.

- Seu tormento será eterno, Eustass Kid! Eterno e doloroso. – A jovem disse, causando ferimentos incuráveis nele.

A sede se tornou mais forte. Kid não conseguia aguentar. Precisava de algo para mitiga-la, porém a única coisa que chegava ao resquício de raciocínio era: Sangue. E não qualquer sangue. Algo mais doce, algo que o saciasse por completo, algo que demorasse a ser achado. Algo que Eustass nunca pensou ser capaz de desejar.

O sangue dela.

Seu corpo latejava de vontade insana de beber daquele corpo suave todo o líquido vermelho que percorria longos labirintos de um ponto a outro. E, perdendo então batalha feroz contra esse impulso diabólico, ele avançou. Demente. Sem pensar, sem parar, sem sequer piscar, tamanha era sua vontade de sentir a vida daquela mulher demoníaca. Demoníaca e apaixonante. Um, dois, três passos. Yumi não gritou. Não fugiu. Não hesitou, tampouco demonstrou medo. Apenas ficou lá, encarando-o, e algumas lágrimas de remorso saíram dos olhos azuis.

Foram as últimas lágrimas que ela pôde chorar.

Kid abriu os olhos rapidamente e ofegou, embora soubesse não precisar, pois, afinal, já estava morto. Apenas não totalmente. Amaldiçoou o dia em que se vira obrigado a se tornar um vampiro desprezível. E mandou pragas para a maldição que só fizera seu coração parar de funcionar, não seu cérebro, o que faria as lembranças se perderem pelo órgão morto. Ele fitou a sua volta. Estava no quarto dela, sentado numa cadeira perto de uma mesinha com uma gaveta. Quarto de sua noiva. Ah, a única que um dia fora capaz de amar... Morta. E ele amaldiçoado por ela.

Na primeira vez em que vira Nami, ficara com receio de estar louco, ou então a maldição não incluir apenas viver das almas líquidas dos outros. Mas, depois de olhar bem, notara que Nami possuía olhos castanhos quentes demais para ser algo do tipo. Não, ela era apenas uma humana. Uma bela e frágil mortal, cuja pele parecia feita da mais pura porcelana e face angelical parecia ter sido esculpida por Querubins num corpo formosamente forjado por qualquer outra divindade que se pudesse imaginar. E, mesmo assim, tão delicada e efêmera, ela lutava. Erguia sempre os olhos castanhos com determinação. Respondia de modo mal criado. E sorria matreira feito criança. Mesmo com medo. Mesmo na presença de um assassino medíocre, um ser que sequer tinha o direito de apodrecer num túmulo, algo que nem era vivo, porém não era morto, uma criatura que matava apenas para viver a meia vida moribunda que os erros do passado lhe deram.

Olhou para a gavetinha que havia na mesa. Nunca chegara a descobrir o que tinha ali, pois a chave sumira. Talvez Yumi a tenha escondido. Kid nunca teve intenção de procurar. Não mesmo. Ele apenas entrava ali para sentir o aroma de perfume que ainda restava na grande cama, nas roupas no guarda roupa, que, por mais incrível que possa parecer, nunca haviam sofrido com sequer uma traça ou com mofo. No entanto, por mais que gostasse de tal cheiro, existia outro que não o deixava aproveitar. Um de laranjas. O de Nami.

Novamente, imagens da garotinha, pois perto dele, ela não passava de uma garotinha, de cabelos alaranjados encheram-lhe a mente. Os sorrisos fáceis. Os olhos castanhos sempre tão amáveis. A pele branca e imaculada. O calor aconchegante.

"Você é tão gelado que chega a ser aconchegante..."

Aconchegante era ela. Eustass olhou para uma pintura de Yumi que havia ali e não pôde evitar. Lágrimas saíram de seus olhos, mas ao invés da água salgada tão comum para os humanos, saiu algo mais doloroso. Algo que de nada servia para ele, já que era o seu próprio. O que saiu... Foram...

Lágrimas de sangue e agonia.

Ela não podia voltar a vê-la. Tinha medo de machuca-la com seu instinto cruel. Esse pensamento dilacerava sua alma, pois se isso acontecesse...

Kid nunca se perdoaria.