A Lágrima Escarlate escrita por SorahKetsu


Capítulo 6
Os dois guerreiros


Notas iniciais do capítulo

Mais um pouco dos guerreiros do começo. Pra quem tinha dúvidas sobre a intenção deles, aqui vão algumas dicas. Mas não se atenham tanto a elas. Muita coisa ainda vai mudar.



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A cabeça latejava como sempre. Resultado da noite tão mal dormida. Recostara-se na pedra mais próxima, à sombra de uma grande árvore. O céu estava claro, mas com bastante nuvens quase cinzas.

         Sabrina esfregou os olhos e se sentou apoiada no carvalho. Lembrou-se que precisava trocar de roupas o mais breve possível. Aquelas, que costumavam ser as que usava para ir à escola, tinha adquirido uma quantidade estranha de cores. Um pouco de vermelho escuro do lifing que Sorah havia matado, marrom da terra, dentre outras que Sabrina preferia não saber. Num mundo como aquele, muitas coisas são melhores se estiverem esquecidas.

         Mirian deu um bocejo e se espreguiçou antes de se sentar também, apoiada na árvore que escolhera para dormir sob.

         - O Dart já voltou? – perguntou Mirian com voz de sono.

         - Não. Nem ele nem a Sorah.

         Sabrina olhou para o céu pensativa.

         -Acho que amanhã vai chover.

         Se Sorah oferecesse risco as duas humanas indefesas, com certeza ambas já estariam mortas pois a lifing surgiu de dentro do mato fazendo o mesmo ruído que uma sombra.

         - Isso é bom. – disse ela com o claro intuito de assustá-las. – Quando chove, o faro dos lifings diminui muito. Podemos caminhar sem o risco de darmos com um de surpresa nos caçando. – após uma pausa, recomeçou a falar – Andem logo. Estão esperando o que? Ainda hoje tenho que passar num vilarejo recolher armas pra vocês.

         Enquanto se levantava, Mirian estranhou a não presença de Dart.

         - Onde está o...

         - Foi embora e não volta mais, humanas. Agora é melhor vocês tomarem cuidado com o que dizem. Posso fazer o que quiser agora. – em seguida, deu uma leve risada de desprezo.

         Aquela era, com certeza, a primeira vez que viam Sorah rir.

         Os mosquitos as atacaram naquela manhã. Estava muito abafado naquela floresta. Eram todos os sinais de que iria chover no dia seguinte.

         Andaram alguns metros até chegarem na mesma colina em que Sorah viu Dart pela última vez. Lá em baixo, ao longe, um pequeno vilarejo resistia a vontade da floresta de invadir tudo.

         Sorah franziu a testa e farejou o ar. Só isso já era o bastante para que Sabrina e Mirian se intimidassem. Mas a lifing era uma fera, é claro. E estava nervosa por algum motivo. Cerrou os dentes e preparou as garras. Seus olhos adquiriram uma cor vermelha vivo por inteiro, inclusive onde deveria ser branco. Uma aparência aterradora. Fora os rosnados que emitia.

         Sorah não era do tipo que metia medo em quem olhasse. Mirian não conseguia evitar imaginá-la num vestido de debutante, sorrindo aos garotos. Seria algo realmente esquisito, depois de tê-la conhecido. Aparentemente impossível. Mas seus cabelos negros, lisos e bem cuidados eram o sonho de qualquer garota. E a cintura então, parecia pertencer a uma modelo. Aquela criatura, por fora, não tinha nada de assustador.

         Mas naquele momento, ficou claro que Sorah guardava dentro de si algo muito maior.

         Aparentemente tentando se conter, a garota volta ao normal. Puxa as duas humanas pela gola da camiseta e as carrega. Em seguida, em meio a gritos histéricos de Mirian e os esforços em vão de Sabrina de tentar se libertar, Sorah salta da colina levando as duas junto.

         Enquanto ambas as humanas gritavam conforme o chão se aproximava, a lifing parecia serena e calma, com toda a tranqüilidade que sempre teve.

         A “aterrissagem” foi relativamente suave. Apesar disso, Sabrina sentia seu estômago contorcer-se e Mirian fazia força para não vomitar.

         - Andem logo. Não temos todo tempo do mundo. – disse Sorah mantendo-se ereta, numa posição de superioridade enquanto as outras duas, ziguezagueavam tentando ficar de pé.

         Mais alguns metros de floresta e chegaram no vilarejo castigado pelo sol. As paredes das casas de madeira, adquiriram bolor com o tempo. Sinal de que ouve muita chuva numa determinada estação do ano, mas logo em seguida, o calor chegou e castigou aquelas pessoas.

         Todas as casas estavam rachadas ou quebradas. Não havia uma que se destacasse.          Era um vilarejo sem dúvida muito pobre.

         As casas se concentravam em volta de uma fonte seca. Uma espécie de praça. As pessoas, ajoelhadas ao redor desta, admiravam e veneravam dois vultos. Ambos usavam uma máscara prata parecida com o rosto humano aberta somente para os olhos e um manto negro cumprido, até chão. Um era um pouco mais alto que o segundo.

         Sorah, Sabrina e Mirian pararam atrás de uma árvore por motivos que só Sorah sabia. Estavam se escondendo daqueles vultos, pois sequer entraram no vilarejo.

         - Quem são eles? – perguntou Sabrina.

Sorah olhou furiosa para a menina. Em seguida, voltou o corpo para as figuras. Um deles, o mais alto, virou sua cabeça na direção do grupo. Ficou olhando para elas alguns instantes.

         - Está medindo minha energia e... Vendo se é maligna.

         Sabrina engoliu um seco. A energia de Sorah é maligna. O que ele fará quando descobrir?

         O vulto tocou no ombro do mais baixo. Agora os dois fitavam as meninas.

         O manto negro dava a impressão de que seus donos flutuavam. Escorriam-se pelo chão como duas sombras pairando. E vieram até elas, deixando confusos os habitantes que os veneravam.

         - Tu, ó repulsiva criatura, capturastes estas humanas indefesas? – o falar pomposo fez Sabrina rir – Pois saibas que não deixarei que tu fujas impune. Em nome de Yume, lhe darei o castigo que é de teu merecimento.

         Sorah fez cara de sono. E até deu um longo bocejo de desaprovação.

         - Tu, ó idiota-mor, desejas salvar estas humanas? Pois venha me matar primeiro. Será que você não me reconhece, Belthor?

         O vulto mais baixo revelou-se ser uma mulher, devido a voz mais fina.

         - Esta é Sorah, se não me engano.

         - Sorah? A lifing maldita? Você deveria ter morrido, ser repugnante. Foi deixada para isso.

         - Mas eu aprendi a sobreviver sozinha. E muito obrigada por nada, humanos nojentos.

         - A Terra está em perigo por sua culpa, lifing, por ter matado uma das guardiãs.

         - Se não me engano, foram vocês quem me mandaram matar aquela criatura. – retrucou Sorah.

         - Este é outro caso. Completamente diferente. E pelo que estou notando, já ia matar outras duas guardiãs. Sorah, Sorah... – ele balançou a cabeça em desaprovação – Dominar o mundo não é para você. Deixe o planeta nas mãos dos mayles.

         - Cale-se, Belthor. Em primeiro lugar, pode ficar com seu mundinho. Em segundo lugar, não pensava em matar essas coisas. Não por enquanto, que posso usá-las para encontrar a Lágrima Escarlate.

         O vulto mais baixo, aquela que parecia ser uma mulher, se aproximou de Sabrina e ficou de frente para ela. Não era muito mais alta. Ajoelhou-se e permitiu que a humana visse seus olhos pelos buracos da máscara. Eram tão verdes quanto os da menina. Colocou as mãos nos ombros de Sabrina e disse:

         - Sinto muito por fazê-la passar por tudo isso. Sabrina, querida, um dia nos encontraremos, e eu direi quem sou. Por enquanto, só posso dizer que sou uma das pessoas que sobreviveram a batalha de Yume. Ou seja, sou uma guerreira. E que meu nome é Íris. Mas como eu disse, isso não faz muita importância agora.

         Mirian parecia estar sobrando na conversa.

         - Agora precisamos ir. Você está segura com Sorah. Ela é uma antiga... – Íris procurou a palavra certa – “amiga” ou algo assim. Digamos que tivemos algumas experiências com o ego dela. Logo vai entender tudo. Basta dar motivos para que Sorah confie em você e ela passará a arriscar a própria vida pela sua.

         Íris se levantou e caminhou até Belthor que permanecia numa discussão tola com a lifing.

         - Vamos, Thor, temos muito que fazer.

Sorah franziu a testa.

         - Desde quando chama Belthor de Thor?

         - Não te interessa, lifing nojenta. – atacou o vulto mais alto como se aquilo fosse um segredo descoberto.

         Ambos os vultos deram as costas e iniciaram uma corrida. Corriam a pelo menos quarenta quilômetros por hora. Tanto que logo sumiram na mata fechada.

         - Vamos logo pegar essas armas. – apressou Sorah.

         Entraram numa casa antiga e mofada. Não que todas as outras também não fossem.

         O ar lá dentro era úmido e pesado. A luz quase não entrava, fazia apenas alguns feixes pelos buracos, pois não havia janela.

         Havia muitas armaduras, espadas, escudos dentre outras coisas encostadas nas paredes. Algumas deviam estar ali á muito tempo, pois já estava enferrujadas. Todas jogadas como lixo num canto, onde as aranhas poderiam fazer suas moradias.

         Sorah caminhou até as peças com ar de curiosa. Abaixou-se e segurou um capacete com a mão esquerda. O levantou na altura dos olhos e o golpeou com a outra mão. Fez-se um furo do tamanho do pulso de Sorah bem no centro dele. Mirian podia imaginar como se sentiria se sua cabeça estivesse dentro daquele capacete.

Um homenzinho saiu de traz de uma pilha de armaduras esfregando as mãos, aflito. Tinha ollhinhos pequenos e azuis, uma barba amarelada e um grande nariz de batata. Vestia uma calça marrom rasgada e um casaco verde-limão. Aproximou-se de suas visitantes amedrontado.

         - Kloth, não tem feito muitas armas ultimamente, não é mesmo? – perguntou Sorah quase numa afirmação.

         - Como pode notar, senhorita Sorah... Os negócios não vão muito bem. Sabe que está difícil encontrar bons materiais nesse lado da ilha? E eu estou velho. Não posso sair me aventurando por aí.

         - É, estou vendo. Nessa sala não vou encontrar nada útil. –Sorah curvou-se para olhar diretamente nos olhos do velho. - mas estou certa de que tem alguma coisa escondida nos fundos.

         Kloth engoliu um seco. Tinha um estranho medo de Sorah. Não era exagerado como o povo daquele vilarejo, a ponto de correrem para suas casas assim que avistaram Sorah, mas também era suficiente para fazê-lo tremer das pernas até o último fio de cabelo.

         - Eu vou verificar, senhorita.

         - Bom mesmo, velho.

         Alguns segundos depois, Kloth chegou com uma caixa, que empurrava com todas as suas pequenas forças. Sorah a abriu sem medo, e retirou seu conteúdo.

Eram armaduras e espadas. Mas estas brilhavam muito, como novas. Eram três de cada peça. Todas as armaduras, prata. As espadas tinhas cerca de sessenta centímetros. Tudo leve feito pluma.

         No fundo da caixa ainda haviam vestes. Três calças e três camisetas pretas. Pareciam feitas de elástico pois esticavam quase o dobro do tamanho original.

         - O que estão esperando? Peguem suas coisas e vistam-se. –mandou Sorah.

         - Espero que aproveitem bem. Vai notar que a armadura resiste melhor que o aço, e é mais leve que a roupa. As espadas são feitas dos melhores metais que já encontrei, senhorita. E as roupas são feitas especialmente para longas lutas. Impermeáveis, é claro. Também são confortáveis, maleáveis e se ajustam ao corpo.

         - É, estou vendo. Mas vai sobrar uma. Eu não preciso de nada disso, Kloth.

         - Estamos em tempo de guerra, senhorita Sorah. Não podemos deixar de prevenir. Não estou duvidando de sua força, por favor, não pense nisso. Mas até o mais poderoso dos guerreiros precisa de ajuda.

         - Tudo bem, Kloth eu levo. E aqui está seu pagamento.

         Sorah retirou uma trouxinha do bolso e entregou nas mãos calejadas do pobre.

         Enquanto conversavam, Sabrina e Mirian se vestiram e abandonaram as vestes sujas da escola. Tudo lhes caiu perfeitamente.

         Mirian balançava a espada na frente dos olhos, encantada com a beleza do material. Mas Sorah parou a lâmina com dois dedos e a abaixou.

         - Isso não é brincadeira, garota. Se quiser manter sua cabeça em cima do pescoço, só mexa nisso quando souber mexer.

         Mirian engoliu um seco e guardou a espada na bainha com mais medo de Sorah do que da própria espada.

                                               ***

 

         Quando saíram da casa, o céu já estava pelo menos três vezes mais escuro do que quando entraram. E uma garoa fina já lhes caia sobre a cabeça.

         Saíram do vilarejo e voltaram a caminhar pela floresta densa, onde o ar se tornou pesado e úmido. Agora, protegidos pelas vestes novas, suportariam melhor as mudanças climáticas.

         Passou-se cerca de duas horas. E Mirian já começava a cair no chão de cansaço.

         - Desculpe-me se não estou acostumada a caminhar horas e mais horas sob chuva no meio de uma floresta! – retrucou Mirian depois de uma bronca de Sorah.

         - Desculpe-me se você ficar pra trás e ser comida por um lifing qualquer! Aliás, se isso acontecer, eu até agradeço, humana inútil!

         - Eu não suporto mais andar, daria pra pararmos só um pouco?

         A chuva aumentou para uma tempestade.

         - Tudo bem. Mas só até a chuva diminuir.

         As humanas praticamente se jogaram contra o chão.

         - Dá pra ver que levaram uma vida muito boa, não é?

         - Do que está falando? – Sabrina não entendeu o comentário de Sorah.

         - Vocês não precisaram treinar, correr riscos, perdas, sofrimento... Nada. Apenas saíram daqui, viveram vidas felizes e agora voltaram. Espero que passem por metade do que eu passei. – Sorah disse esta última frase mais baixa, tanto que foi abafada pelo ruído da chuva.

         - Está dizendo que tivemos uma vida fácil? Olhe pra você! Seus pais morreram e não está nem aí pra isso. Tudo que eu queria era ter minha mãe do meu lado quando precisei, e você nem dá valor.

         - Deixa-me adivinhar, sua mãe e seu pai morreram e você nem os conheceu. O mesmo pra você, estou certa, Mirian?

         - Como pode saber?

         - Uma guardiã não pode ter pais. É uma regra básica. De alguma forma, eles têm que morrer. Ter uma família, é o mesmo que oferecer um ponto fraco ao inimigo. É uma forma de fraqueza sentimental. Ninguém sabe direito por que Yume quis assim. Talvez justamente para que as guardiãs não sofressem quando um deles morresse.

         - Mas isso não é justo!

         - Não sou eu quem faz as regras, garota. Reclame isso com a própria mayle. Mas creio que seus pais não voltarão à vida se fizer isso. Acreditem, a vida de vocês não poderia ter sido melhor. Se quiserem saber por que eu matei a guardiã de gelo, foi por causa da vida de vocês. Hoje vocês conheceram dois dos guerreiros de Yume, mas existem três deles. São conhecidos por fazer justiça, terem honra e todas essas coisas, mas recusaram a guardiã quando ela lhe pediu abrigo. Eram tempos de guerra, em que ninguém podia andar sozinho.   “Os guerreiros recolheram vocês e levaram até o mundo de onde vieram para que não corressem riscos e chegassem a idade certa pra lutar. A guardiã de gelo pediu pra ir junto mas seu pedido foi recusado. “Você ficará aqui para morrer, ser maldito” foram as palavras que eles usaram. Depois disso, ela começou a definhar, até que eu a matei para lhe poupar mais sofrimentos.”

         - Você era amiga dela?

         - Quase isso. – Sorah olhou para o céu. -É. Parece que a chuva não vai diminuir hoje. Durmam, humanas. Amanhã continuaremos.


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