A Arte Maior escrita por Fernanda Lima


Capítulo 1
O Estranho




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Todo ser humano possui dentro de si a capacidade para criar e transformar apenas com a força da vontade. O conhecimento, instrumento-chave para que isso ocorra de forma completa e satisfatória, precisa vir acompanhado de habilidades adquiridas apenas com a prática da Arte Maior. Concentração, foco, disciplina, são fundamentais para o caminhar do iniciado dentro de todas as variantes das Artes Ocultas.”


Lia fechou o livro com pressa, ao ouvir passos no velho assoalho do andar de baixo. Escondeu-o debaixo do travesseiro esfarrapado, e deitou-se por cima dele para disfarçar o volume que as pesadas mil e quinhentas páginas faziam em cima do colchão surrado.

– Lia, o que está fazendo? - Ela ouviu os passos vindo em direção ao seu quarto, pela velha escada em espiral na qual ela já sofrera muitos acidentes relacionados a brincadeiras perigosas.

Apanhou um livro qualquer de cima da estante e abriu-o em uma página aleatória, fazendo a melhor expressão de concentração que possuía.

Ela viu de relance a figura esguia de sua mãe adentrar seu quarto. Ela sentou-se a seu lado na cama, e ficou examinando o livro que Lia segurava com seus brilhantes olhos verdes.

– Não sabia que se interessava por isso. – Ela falou, séria.

– O quê? - Pela primeira vez desde que apanhara aquele livro, ela parou para ver de que se tratava. Leu as duas primeiras linhas da página e constatou que realmente não era o melhor livro para ter apanhado naquela estante. – Ah. Na verdade só estou lendo isso para passar o tempo. Mas eu não tenho muito interesse por essa coisa de espíritos. Afinal, este livro é só um romance.

Ela jogou o livro de lado e foi até sua mãe, que estava em pé, olhando através da pequena janela de vidro que iluminava fracamente o aposento naquela tarde nebulosa.

– Mãe. – Lia olhou nos olhos dela, se distraindo por um momento com a profundidade de seu olhar, que ela nunca entendera o motivo de ter aquele efeito sobre as pessoas. – Tem algum problema¿ A senhora me parece mais séria do que o normal.

– Não, nada. – Ela estava mentindo. Lia sabia disso pelo modo como seus olhos passeavam pelo ambiente, ao invés de se fixarem em um só ponto.

Ela suspirou por um momento, levou as mãos até a cabeça, para depois dizer:

– Na verdade, eu estou com um mau pressentimento. – Ela caminhou até a cama, e por pouco não se sentou sobre o travesseiro sob o qual o livro proibido estava escondido.

Lia logo se assustou. A intuição de sua mãe não costumava falhar – ela se lembrava perfeitamente da vez em que ela misteriosamente adivinhou que haveria um incêndio na casa de seus vizinhos, e que nele eles perderiam um filho. Isso fazia com que as coisas se tornassem mais complicadas. Era apenas um pressentimento, ou seja, elas não teriam como saber exatamente o que estava por vir.


Naquela noite, Lia não estava conseguindo dormir. Ela se agitava em sua cama com as palavras de sua mãe ecoando em sua mente, pensando no que poderia acontecer, até que se assustou com um baque surdo vindo do andar de baixo.

Ela se levantou vagarosamente, tendo o cuidado de não fazer barulho. Desceu as escadas com cautela, até chegar num ponto em que poderia espiar de longe qualquer coisa que estivesse ali, sem que pudesse ser vista.

O que ela viu poderia ter sido um homem, uma mulher, ou mesmo qualquer outro tipo de criatura humanoide. Era nada mais do que um vulto coberto por um capuz completamente negro dos pés à cabeça, sem que nem um relance de seu rosto ou de qualquer outra parte de seu corpo pudesse ser visto.

Atrás dele, a porta estava fechada. Pior, estava trancada com um corrente que não havia nem ao menos sido tocada. Ele não havia entrado por lá. Lia examinou as janelas ao seu redor e constatou que nenhuma delas havia sido aberta, pois ela teria ouvido de seu quarto o barulhento ranger que elas faziam.

Ela estava assustada. Quem seria aquele sujeito? Será que ela estava vendo coisas? Ela chegou até mesmo a pensar que estivesse tendo mais uma das crises de sonambulismo que costumava ter em sua infância, e que aquele não era nada mais do que outro de seus sonhos vívidos que por tantos anos a assombraram.

O vulto se moveu. Ela pôde perceber distintamente que seus pés, se é que ele os possuía, não tocavam o chão. Era como se flutuasse pelos ares com seu manto preto. Ela estava prestes a voltar para o andar de cima e chamar sua mãe, quando viu a figura voltar-se em sua direção.

Seu coração deu um solavanco. O que ela faria? Será que deveria continuar parada ali, com a esperança de que ele não percebesse sua presença, ou será que deveria sair correndo e chamar quem quer que fosse para ajudá-la?

Ela tentou traçar mentalmente as possíveis rotas de fuga para pedir ajuda. Percebeu que o único jeito de sair de casa era pulando a janela do segundo andar. Ela esperou alguns segundos para ver se a figura continuava a segui-la, e quando percebeu que ela havia parado, deu o primeiro passo em direção ao andar de cima. Porém, quando foi dar o segundo passo, sentiu seu corpo se congelando.

Um frio intenso a dominou. Seus movimentos ficavam cada vez mais lentos e difíceis, até que ela parou de se mover por completo. No entanto, ela ainda conseguia ver o que estava acontecendo ao redor. No momento, ela estava desesperada, sem saber o que estava acontecendo. Fechou os olhos, com imensa dificuldade, e tentou imaginar que aquele era apenas mais um de seus terríveis pesadelos.

– Lia! – Ela ouviu um grito distante de uma voz conhecida. Abriu os olhos vagarosamente e viu a figura de sua mãe parada no alto da escada. Ela gritava palavras de ordem em direção à figura que se arrastava em direção às duas.

– Pare com isso! Você quer a mim, não à minha filha! Deixe-a em paz, me leve se quiser! – Ele continuou se aproximando de Lia. Sua mãe gritava ainda mais alto. – É isso que você quer? Você quer lutar? Então vamos lutar!

Lia estava extremamente confusa. Pelo jeito como sua mãe falava, ela conhecia a figura e sabia o que deveria fazer naquela situação. Viu que ela havia fechado os olhos e começado a murmurar palavras que eram ininteligíveis, ao menos para a pequena garota congelada no sopé da escada.

Lia começou a perceber que seus movimentos estavam retornando. Olhou para baixo e viu que o estranho não conseguia mais dar nenhum passo à frente, como se houvesse algo bloqueando sua passagem. Quando se voltou para fazer perguntas à sua mãe, percebeu que ela estava bastante estranha. Tinha os olhos revirados para cima, o corpo contraído em uma posição que lembrava uma cruz Ankh, e murmurava algo muito rápido, em um idioma desconhecido. Percebeu ainda que havia algo como uma corrente de energia luminosa correndo da testa dela até o alto do capuz da criatura. Era um filete brilhante, de cor alaranjada, que se estendia reto e intenso desde sua origem.

Ela se abaixou e engatinhou pela escada até ficar atrás de sua mãe. Não queria distraí-la de fosse lá o que ela estivesse fazendo, mas deu um abraço forte nas pernas dela. Ao fazer isso, imediatamente sentiu uma dor lancinante na parte da frente de sua cabeça, e logo após ouviu a voz de sua mãe ecoando em sua mente:

"Lia, você precisa fugir. Este homem é muito perigoso. Somente eu posso lidar com ele. Não é bom que você fique aqui, fuja logo antes que ele consiga quebrar a minha barreira!"

Ela demorou alguns segundos para assimilar a mensagem. Fugir? Quer dizer que ela precisaria deixar sua mãe? Ir embora? Ela não entendia.

"Ande logo!" - Ouviu mais uma vez.

Ela foi até o seu quarto, correndo desnorteada, e abriu a janela de vidro com dificuldade. Pouco antes de pular, no entanto, ouviu em sua mente de novo:

"Pegue o livro!"

Ela lembrou logo do imenso livro que havia escondido em sua cama mais cedo. Será que sua mãe sabia que ele estava lá durante todo aquele tempo? Ela provavelmente queria que Lia o lesse, ao contrário do que pensava. Então por que será que havia escondido o livro no porão, com a porta trancada, durante todo aquele tempo? Ela não tinha tempo para pensar naquilo, no entanto. Pegou o pesado bloco de papel e saltou pela janela sem pensar, aterrissando desajeitadamente na grama descuidada do jardim.

"Vá para a casa do seu tio!"

Ela tentou pensar de volta, para ver se seus pensamentos também chegavam até ela.

"O que é isso? O que está acontecendo? Eu não estou entendendo nada!"

"Você vai entender, seu tio vai te explicar. Agora vai!"

Ela saiu correndo desesperadamente colina abaixo, até que sua casa sumiu na escuridão da noite. Ela não conseguiu mais se comunicar com a sua mãe a partir dali.



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