Além das lembranças. escrita por Amanda Rodrigues


Capítulo 7
Capítulo V - A Grande Noite - parte III




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As mãos dele deslizaram pelo meu pescoço e ele se curvou para beijar a pele nua. Mas, por um instante, parou.

— Rin, deseja ser minha esposa?  perguntou, rouco.

Eu ri, envergonhada.

 Do que está falando? Eu já sou sua esposa.

A imagem era confusa. Eu estava deitada num futon e havia o corpo de um homem em cima do meu. Eu não conseguia enxergar o rosto dele, embora estivesse diante dos meus olhos. A imagem era borrada, como se eu tentasse enxergar debaixo d' água.

Contudo, apesar de não saber a identidade do homem, eu me sentia inteiramente à vontade na presença dele.

Naquele momento, uma profusão de sentimentos e sensações se apoderava de mim. Eu sabia que minha alma e o meu coração pertenciam a ele, assim como a alma e o coração dele pertenciam a mim. Nós estávamos unidos por um laço inquebrável. Eu o amava com todo meu ser.

As mãos grandes do homem tocaram os meus lábios sorridentes.

— Dessa vez a escolha será inteiramente sua — disse ele, gentil.

Eu beijei sua mão com ternura.

 É claro que desejo, meu amor. Nesta vida e na próxima — respondi, sentindo uma felicidade extasiante. — E quanto a você, meu senhor? Deseja me ter como sua senhora?

Ao invés de responder utilizando palavras, ele me beijou de modo lento e apaixonado. Ele era assim: preferia ações a discursos. O seu corpo era grande e poderoso. Nos seus braços, eu me sentia a mulher mais amada e desejada do mundo.

O beijo se tornou mais ousado e exigente. As mãos dele alcançaram a faixa do meu kimono.

Não. Não era simplesmente desejo. Era outra coisa. Era algo quase espiritual.

Eu queria saber quem era esse homem. Eu precisava saber.

Interrompi o beijo levando minhas mãos ao seu rosto e afastei-o do meu para que pudesse visualizá-lo.

— Eu preciso ver o seu rosto. Preciso ver... — proferi com a respiração ofegante.

* * *

Acordei com um sobressalto. Assim que abri os olhos, deparei-me com um cômodo escuro e opressivo. Demorei alguns segundos para assimilar que estava no palácio de Sesshoumaru.

O quarto estava frio, pois o fogo se extinguira. Porém, eu não sentia os efeitos da gelidez. Meu corpo estava quente e suado.

Sentada no futon, tentei entender o que havia sonhado. Eu estava casada com um homem que não conhecia. O que isso significava? Era estranho, já que os acontecimentos foram muito reais. Eu pude sentir cada toque, cada beijo. Se eu fechasse os olhos seria capaz de sentir novamente a respiração dele contra minha pele.

Minha mente estava confusa. Já havia amanhecido? Ainda estava escuro, isso era certo. No entanto, os dias de inverno não dispunham de muita luz. Eu me pus de pé e caminhei rumo ao fogo no intuito de acendê-lo. Contudo, batidas na porta do quarto fizeram os meus passos cessarem.

Olhei automaticamente para a porta e, através do papel washi, pude enxergar a criatura. Era alta e estava paralisada. Além do mais, ela segurava uma tocha que banhava o cômodo com uma luminosidade dourada.

De imediato, lembrei da ordem que Sesshoumaru me dera. Eu deveria permanecer no meu quarto até o dia seguinte. Katso, antes de sair, alertara-me a não abrir a porta para ninguém.

— Quem está aí? — questionei com o coração acelerado.

Silêncio.

Constatei que eu possuía uma vantagem. Por conta do fogo que a criatura segurava, eu podia visualizá-la perfeitamente. O mesmo não se aplicava para ela, já que meu quarto estava escuro. Aproveitei essa chance para alcançar minha katana e mantê-la erguida, caso a criatura invadisse.

— Revele-se ou desapareça daqui! — vociferei, sem me deixar intimidar.

Após alguns segundos de quietude, a entidade misteriosa proferiu um chamado:

— Rin — o tom de sua voz era sombrio e cavernoso.

Permaneci a postos com a katana nas mãos. O que era isso? Uma ilusão? Logo a claridade foi se distanciando, como se a criatura estivesse indo embora. Ela queria que eu a seguisse? Para onde?

Por um momento, pensei se deveria segui-la, uma vez que fazer isso significava desobedecer a ordem de Sesshoumaru. Por fim, dei de ombros. Eu não tinha nada a perder. De todo modo, a cerimônia fora um fiasco e a esposa de Sesshoumaru iria me mandar embora nos próximos dias. Aguardar no meu quarto até o dia amanhecer, como uma mocinha obediente, não iria melhorar minha situação.

Arrastei a porta do cômodo num baque e encarei o enorme corredor. Estava vazio.

Mas, no final dele, avistei a luminescência da tocha. A criatura estava no corredor paralelo, ocultada pela parede. Estava imóvel, como se estivesse me esperando. Corri até ela.

Porém, quanto mais eu corria, mais ela fugia de mim. Eu não sabia como era a sua aparência, nunca conseguia vê-la a tempo. Eu estava literalmente perseguindo o clarão de uma tocha.

Até que, depois de tanto seguir a criatura, a luz dourada apagou-se.

Eu olhei para os lados a procura do ser. Mas não havia nenhum sinal dele.

Praguejei alto. Entretanto, logo me dei conta de que a criatura havia me levado até as portas do jardim real, as quais estavam abertas. Era como se ela quisesse que eu fosse até lá.

Soltei uma respiração. "Isso não vai terminar bem", pensei conforme avançava rumo ao jardim.

Assim que pus os pés no local, cobri o nariz com as mãos. Havia uma excessiva quantidade de energia maligna no ar. Isso fazia com que o nariz de um humano ardesse.

Uma ventania álgida fez com que o meu corpo inteiro estremecesse. Se eu ficasse ali por mais tempo provavelmente pegaria um resfriado.

Então eu ouvi. Era uma série de uivos, guinchos, gargalhadas. Esses sons incomuns ecoavam sombriamente na noite gelada e vinham de algum lugar do jardim.

De todos os barulhos que ouvi, o que mais me assustou foi o dos Taikos.

Eu nunca tinha presenciado uma guerra na vida. Apesar disso, eu sabia que os tambores Taikos eram tocados para motivar exércitos e marcar o passo da marcha quando se estava prestes a entrar no campo de batalha. Era um som agourento, frenético e sinistro.

Relembrei, apavorada, a conversa de Sesshoumaru e o seu informante sobre o rei dos Youkais do Norte estar esperando apenas a chegada do inverno para atacar. Será que a fortaleza estava sendo atacada?

Desesperada, corri pelo jardim pálido e de árvores secas. O que me guiava era o som dos Taikos e das vozes. À medida que me aproximava da origem dos ruídos, a energia maligna que pairava no ar se tornava mais densa. Respirar era quase insuportável.

A verdade era que eu deveria estar usando um capuz, pois o meu kimono alaranjado me destacava como um ponto de luz. Mas não tinha o que fazer. Ao menor sinal de movimento, eu me escondia atrás de um tronco de árvore e pousava a mão no cabo da katana.

Subi uma colina coberta de gelo e então me deparei com uma cena curiosa.

Em uma área remota do jardim havia uma grande fogueira. As chamas altas lambiam o negrume da noite e a fumaça cinzenta era soprada pelo vento.

Ao redor da fogueira estavam os youkais convidados. Era um ambiente selvagem e ritualístico. Ali não havia reservas, nem boas maneiras. Os youkais agiam de forma animalesca.

Procurei os tambores e notei que pequenos meio-youkais os tocavam. Então, não era uma guerra e sim, um ritual. Seria o Pacto de Sangue ou esse já tinha ocorrido? 

Busquei Sesshoumaru com os olhos e o identifiquei do outro lado da fogueira. De um lado estavam as candidatas à esposa (o que me fez concluir que a esposa ainda não tinha sido escolhida), assim como Sesshoumaru, Arina e a Grande Bruxa. No outro, o restante dos convidados que dançavam, guinchavam e urravam sob o brilho do fogo.

Sesshoumaru possuía um semblante sério e estava mais bonito do que nunca. Não existia nada de humano nele. Havia um brilho diferente nos seus olhos. Alguma coisa selvática e perigosa. E as suas presas estavam mais pontiagudas. Observei que uma de suas mãos estava enfaixada, o que significava que o Pacto de Sangue já tinha ocorrido.

Eu não tinha muito conhecimento a respeito desse assunto. Tudo o que sabia era que, nesse pacto, os deuses eram invocados e o youkai jurava, perante às divindades, que iria proteger os seus domínios com a própria vida. Para selar o juramento, o youkai cortava uma parte do seu corpo e permitia que o sangue fluísse pela terra.

Um juramento como esse jamais poderia ser quebrado.

Então, era isso: um rito já tinha sido realizado, o Pacto de Sangue. Estava faltando a escolha da esposa. 

A Grande Bruxa aproximou-se de Sesshoumaru e deu-lhe algo para beber.

Então, a escolha seria feita agora? Eu não tinha muitas informações acerca de como os youkais escolhiam suas parceiras. O máximo que sabia era que a escolha acontecia de forma inconsciente. O próprio Sesshoumaru me alertara de que não estaria consciente e, por isso, era preciso que eu estivesse longe. Porém, eu não queria me afastar. Estava curiosa demais. 

Certamente, Sesshoumaru estava odiando se submeter a esses ritos. Mas, se ele queria ser levado a sério pelos senhores feudais de sua espécie, teria que jogar de acordo com as regras deles. Não tinha outro jeito.

Ao analisar a fila de noivas ansiosas, senti o meu coração se partir. Esse matrimônio iria afastá-lo de mim de uma vez por todas e eu não queria perdê-lo. Por um instante, desejei ter o poder de Arina ou, quem sabe, de Inu No Taishou para enfrentar toda essa multidão e tirá-lo de lá.

De repente, Sesshoumaru olhou em minha direção e eu me escondi atrás da colina. Era como se ele pudesse ouvir meus pensamentos.

Quando voltei a contemplar a fogueira, constatei que Sesshoumaru sumira do meu campo de visão. Esgueirei-me para trás de uma árvore na intenção de vê-lo novamente, mas sem sucesso.

Subitamente, senti um forte aperto no meu braço. Numa fração de segundos, desembainhei minha katana, pronta para lutar com a criatura que me segurava.

— Rin, acalme-se! Sou eu, Daisuke! — disse uma voz familiar.

Soltei uma respiração aliviada à medida que fitava o rosto de Daisuke. Ele parecia preocupado.

— Graças aos deuses é você, Daisuke! — falei, sorrindo.

O semblante do youkai continuou sério.

— Senti o seu cheiro. O que está fazendo aqui?

— Eu... Eu ouvi os tambores e... — balbuciei.

Daisuke voltou a me segurar pelo braço e começou a me arrastar para longe da fogueira.

— Não importa. Você precisa sair daqui — disse ele, puxando-me pela neve.

— Por que preciso sair? Eu não entendo...

O youkai de vestes negras parou o trajeto e olhou para mim.

— Sesshoumaru vai escolher a sua esposa nesse exato momento. Você sabe o que isso significa? — perguntou ele.

— Que ele vai escolher uma esposa? — falei como se fosse óbvio.

— Ninguém lhe explicou como funciona o ritual de acasalamento?

Ritual de acasalamento? Precisei de alguns segundos para processar.

— Tudo o que sei é que Sesshoumaru fará a escolha de modo inconsciente — respondi. — Eu o vi beber alguma coisa.

Daisuke assentiu.

— Mas até que ponto você sabe que ele estará inconsciente?

— Não faço ideia! Não conheço tanto assim as tradições dos youkais! — rebati, impaciente.

— Maldição! — murmurou o youkai. — Muito bem. Você está certa. Sesshoumaru não estará consciente. Mas é mais do que isso. Após ingerir a bebida preparada pela Grande Bruxa, ele será guiado pelos seus instintos que o farão escolher entre as candidatas a fêmea mais fértil para acasalar. É assim que se faz entre os youkais, pois se a escolha for inconsciente isso diminui o risco de rivalidade entre os clãs. Portanto, o Sesshoumaru desse ritual não é o mesmo que você conhece. É uma criatura perigosa que não raciocina. Ele não é capaz de distinguir ninguém, nem mesmo sabe quem é.

Daisuke me segurou pelos ombros e me encarou diretamente nos olhos.

— Compreende o que eu quero dizer, Rin? — indagou com seriedade. — Enquanto Sesshoumaru estiver sob o efeito da porção preparada pela Grande Bruxa, ele não passará de um garanhão a procura de uma fêmea para copular. É por isso que você precisa sair daqui. Se ele sentir o seu cheiro...

Engoli em seco.

— Quer dizer que Sesshoumaru pode me machucar?

— É claro que ele jamais faria isso se estivesse em seu estado natural — Daisuke apressou-se para explicar. — Mas, como eu disse, esse não é o Sesshoumaru que você conhece. Você precisa ir sair daqui o mais rápido possível!

Então, ouvimos um rugido selvagem ecoar pelo jardim. Nós nos olhamos, assombrados.

O ritual tinha começado.

E, de repente, tudo fez sentido. A ordem de Sesshoumaru para que eu permanecesse no meu quarto, a exigência de não abrir a porta para ninguém, o líquido que o vi ingerir na fogueira. Mas alguém fora até mim com intuito claro de me fazer interferir no ritual. Maldição! Por que Sesshoumaru não me explicara? Por que me deixara ignorante sobre o que iria acontecer?

Eu estava prestes a partir dali quando a voz de alguém rompeu o silêncio que se estabeleceu entre mim e Daisuke:

— Ora, ora se não é Daisuke e a fêmea humana.

Meu amigo e eu olhamos para trás e nos defrontamos com três youkais de coloração esverdeada. Eles estavam vestindo requintados kimonos de seda, o que me fez constatar que pertenciam à nobreza. 

Num movimento involuntário, segurei a bainha da katana, mas a mão de Daisuke rapidamente pousou sobre os meus dedos, contendo-me. Lutar contra os três youkais iria levar tempo e eu precisava partir imediatamente.

— O que querem? — questionou Daisuke.

— Sesshoumaru é mesmo esperto — comentou um dos youkais encarando-me com um olhar lascivo. — Guardou o melhor só pra ele.

— Perguntei o que querem — repetiu Daisuke, exibindo dentes pontiagudos.

O youkai de tonalidade esverdeada ergueu as mãos num gesto de paz.

— Calma, amigo — disse ele, sorrindo. — A gente só quer participar da diversão.

— Se querem diversão estão procurando no lugar errado. Deveriam estar na fogueira — falei, enraivecida. Eu sabia muito bem o que eles estavam insinuando.

— Eu gosto do jeito dela — comentou outro youkai.

— Vamos lá, Daisuke. Deixe a gente brincar com ela também — pediu o youkai esverdeado. — Nós prometemos não contar nada pro Sesshoumaru. Acho que ele é meio ciumento.

— Escutem, não sou nenhuma prostituta! Exijo que os senhores me respeitem, caso contrário cortarei os três em pedacinhos! — exclamei, furiosa.

— Ouviram a moça. Ela não está interessada. Portanto, estamos indo embora — disse Daisuke, conduzindo-me para longe do festim. 

De imediato, os três youkais barraram a nossa passagem. Minha paciência estava se esgotando! Daisuke não queria lutar com eles para ganhar tempo, mas eles estavam sendo muito insistentes!

— Essa vadia não vai a lugar algum! Entregue-a para nós, Daisuke, e o deixaremos ir! — esbravejou o youkai esverdeado.

Sorri, irônica.

— Não vou a lugar algum? E quem é que vai me impedir? Vocês? — questionei com os braços cruzados.

O youkai esverdeado soltou uma risada sarcástica.

— Você tem coragem, humana — afirmou ele. — Mas logo iremos ensiná-la a ordem natural das coisas.

— E qual é a ordem natural? — perguntei, mantendo o sorriso cínico.

— Que nós somos superiores e você, inferior — respondeu o youkai.

— Isso é o que veremos — falei, animada para dar uma lição nos três imbecis. 

Mas, antes que o conflito se iniciasse, ouvimos o som alto de um rosnado entre as árvores. No mesmo instante, uma sensação de perigo percorreu o meu corpo. 

Rapidamente, procurei com o olhar a origem do som e foi nesse momento que avistei uma grande criatura saltar em nossa direção. Dei um pulo para trás e senti minhas costas se chocarem contra o tronco de uma árvore. 

Tratava-se de um enorme cão branco. Ele postou-se diante de nós. O pelo eriçado o tornava ainda maior e os olhos escarlates pareciam estar em chamas. Ele possuía um olhar feroz e os dentes estavam à mostra.

Era Sesshoumaru.

Por uma fração de segundos, eu o temi. Eu nunca o tinha visto tão atemorizador. Os youkais verdes abraçaram-se e gritaram de puro medo. Foi quando entendi que a atenção de Sesshoumaru estava voltada para eles.

Eles se ajoelharam na neve, desesperados.

— Sesshoumaru, perdão! — suplicou o youkai que tinha proferido ameaças. — Foi só uma brincadeirinha! Nós não queríamos machucar a fêmea humana!

— Só se divertir um pouquinho com ela! — completou o outro.

— Cala a boca, idiota! 

Sesshoumaru rugiu ainda mais irritado. Quando ele fez menção de atacar os três youkais, eles berraram novamente e fugiram, o que foi uma péssima ideia, pois Sesshoumaru poderia alcançá-los facilmente.

Foi então que percebi que a fuga deles seria uma excelente distração. Assim que o meu olhar encontrou o de Daisuke, eu me dei conta de que tínhamos pensado a mesma coisa.

No instante em que a fera partiu para atacar os fugitivos, aproximei-me de meu amigo.

— Essa é a minha chance  — falei, nervosa. — Preciso voltar ao palácio.

— Sesshoumaru quer afastar os machos da fêmea — explicou Daisuke. — Depois que ele acabar com aqueles três, ele virá até mim. Eu tentarei segurá-lo. Por isso, fuja. Não pare de correr até estar no palácio. 

Assenti e, sem perder tempo, corri o mais rápido que pude rumo ao edifício. Contudo, a neve limitava os meus movimentos, tornando-os vagarosos. Após atravessar a colina, um pensamento me ocorreu: Sesshoumaru aparecera para mim. Isso significava que ele tinha sentido o meu cheiro e me escolhido? Meu coração bateu ainda mais forte. Ele tinha me escolhido?

Parei de correr e, com a respiração descompassada, olhei para trás. Eu podia ouvir rugidos distantes. Sim, Daisuke era um youkai forte. Entretanto, jamais conseguiria deter Sesshoumaru. Ele poderia acabar morto se tentasse! 

Levei minhas mãos em concha até a boca e procurei aquecê-las com a minha respiração. Estava tão frio que os meus dentes batiam. 

Minha mente encontrava-se num estado de verdadeira confusão. Eu deveria voltar ao palácio ou ajudar Daisuke que estava se arriscando por minha causa?

Sesshoumaru era agora uma fera perigosa, porém eu não conseguia temê-lo. Sabia que, em algum lugar, ele estava lá e que não me machucaria. Talvez, se eu tentasse me comunicar com ele, a vida do meu amigo pudesse ser poupada. 

"Mas Daisuke pediu para você voltar para o palácio, sua tonta!", disse uma vozinha na minha cabeça. Eu queria retornar ao palácio? Será que, no fundo, eu queria ir até Sesshoumaru? Eu estava desorientada. Os meus sentimentos eram nebulosos. O que eu realmente sentia por Sesshoumaru?

Confusa, refiz o caminho de volta à fogueira. À medida que percorria as terras alvas, meu cabelo era violentamente vergastado pelas rajadas de vento. Eu não conseguia pensar em nada. Era como se uma força oculta fizesse com que os meus pés se movessem. Quando atingi uma aproximação considerável, pude ouvir exclamações e rosnados. O pavor me inundou. Será que eles estavam feridos? Preciso pará-los!

Ao subir a colina, avistei as duas feras rugindo uma para outra com uma cólera animal. Daisuke, que agora possuía a forma de um imenso felino de pelo negro, sangrava. As gotas de sangue escarlate maculavam a brancura da neve. E logo notei que Sesshoumaru também estava ferido. Havia marcas de garras em seu pelo, mas, em comparação a Daisuke, ele estava menos prejudicado. 

Assim como no salão, os youkais convidados estavam em volta de Sesshoumaru e Daisuke. A diferença era que, agora, eles mantinham uma distância segura. Incomodou-me constatar que a carnificina que ocorria era, para os membros da nobreza youkai, um espetáculo divertido. Eles riam e torciam para Sesshoumaru matar Daisuke. Por isso, eu os odiei ainda mais. 

Nesse momento, fiz com que minha presença fosse notada. 

— Sesshoumaru! — bradei.

Instantaneamente, o foco dos youkais se desviou para mim. Arina, que assistia o conflito na multidão, assumiu uma expressão furiosa. Os convidados se entreolharam sem emitir um único som. 

— Eu não ordenei que você a tirasse da celebração?! — vociferou Arina para Katso que estava postado ao seu lado. Ele parecia se divertir com a cena.

— E eu tirei, senhora. Mas parece que a obediência não é uma das qualidades dela — falou Katso com sorrisinho debochado.

Arina soltou uma respiração.

— Então eu mesma irei tirá-la daqui! 

— Senhora Arina — disse a Bruxa, o que fez com que a mãe de Sesshoumaru cessasse os movimentos. — Devo lembrá-la que não devemos interferir no ritual. Durante o período em que o senhor Sesshoumaru estiver inconsciente, ele será um instrumento dos deuses. Eles irão guiá-los até a esposa adequada.

Arina riu, venenosa. 

— Por favor, Venerável. Nós sabemos muito bem o que é que está guiando Sesshoumaru. Os deuses nada têm a ver com isso. 

— A senhora não pode interferir. Essa é a tradição — declarou a Grande Bruxa. 

Quando Sesshoumaru fixou os seus olhos rubros em mim, eu me senti um coelho diante de um predador. Alguma coisa no olhar dele fez com que minha face esquentasse. 

Daisuke, que detinha a aparência de um felino, parecia não compreender o que eu estava fazendo ali. E eu não conseguia me mover, nem dizer nada. 

daimyo da ilha Miyake aproveitou que o adversário estava distraído e cravou com força os dentes na perna dele. Sesshoumaru rugiu de dor. E, num movimento rápido, ele capturou Daisuke pelo pescoço e o lançou para longe, fazendo com que o corpo do youkai se colidisse com uma árvore. 

Gritei o nome de Daisuke. Porém ele não reagiu. Continuou caído na neve. 

Agora não havia nada entre mim e o grande cão que me fitava com os dentes à mostra. Por conta da tensão, senti o meu corpo enrijecer e o meu estômago revirar. Eu tinha que encontrar um jeito de me comunicar com ele. Sesshoumaru estava ali em algum lugar. Eu só precisava fazê-lo voltar a si. 

Mas... Como? 

Reuni toda a coragem que tinha e me aproximei de Sesshoumaru. Nesse instante, o único som que ecoava no ambiente era o dos meus passos na neve. A cada passo que dava, eu sentia a intensidade dos olhares dos youkais convidados. 

Quando atingi uma curta distância de Sesshoumaru, ele ergueu a cabeça para o alto e uivou. Mas um uivo diferente. Bestial. O youkai estava manifestando para os supostos rivais que eu pertencia a ele. 

Minha mente entrou em pânico por alguns segundos. O que eu tinha feito? Eu interferi no ritual. Sesshoumaru deveria ter escolhido uma esposa de sua própria espécie. Certamente, o verdadeiro Sesshoumaru irá me odiar por isso. Eu tinha o desobedecido. Meu coração martelou fortemente. 

"Talvez, tudo possa ser consertado se ele recuperar a consciência. Quando ele voltar ao seu estado racional, talvez ele possa escolher uma esposa, uma das candidatas...", pensei enquanto contemplava o Dai-youkai. 

— Sesshoumaru — chamei baixinho. — Por favor, você precisa recuperar a lucidez. 

Ele fixou o olhar vermelho em mim. Ergui a mão em sua direção no intuito de tocá-lo. Sesshoumaru baixou a cabeça e eu afaguei o pelo de sua face. Era bom tocá-lo, pois ele era quente. Sesshoumaru aproximou o focinho de mim a fim de capturar o meu cheiro. O movimento brusco e repentino me fez cair na neve. Dei uma risada conforme o acariciava. 

Agora estava mais claro para mim que Sesshoumaru nunca me faria mal. Eu não o temia. E sabia que podia fazê-lo recuperar a consciência. 

— Sesshoumaru. Sou eu, Rin — falei, sentada na neve. — Eu sei que você consegue me entender. Ouça, você precisa retomar o controle da sua mente. Você se lembra de quando nos conhecemos? Eu era tão pequena que não me recordo muito bem. Mas, contei para mim mesma tantas vezes essa história que nunca esqueci. Eu era só uma menina quando o encontrei na floresta, ferido, e então eu o alimentei. Eu não tive medo de você, nem nunca teria. Acho que, no fundo, eu sempre soube que o nosso encontro mudaria minha vida para sempre. 

À medida que falava, notei uma centelha de compreensão em seu olhar. Aos poucos, o impulso primitivo cedia lugar à razão.

Na multidão, Arina questionou, inquieta:

— O que diabos ela está fazendo? 

— Está domando a fera — respondeu a Grande Bruxa. 

Sesshoumaru afastou-se de mim. Minhas palavras estavam surtindo efeito. 

— Quer ouvir algo engraçado? — prossegui, levantando-me da neve. — Quando você desapareceu, eu me agarrei a cada lembrança sua. Mas, às vezes eu pensava que você era só uma invenção minha ou que não passava de um personagem das histórias que contávamos para as crianças ao redor da fogueira. Para elas, era incrível o fato de que a aldeia de Vovó Kaede tinha sido salva por youkai. Parecia loucura. Então, eu dizia que era verdade e que eu conhecia o youkai Sesshoumaru. Ele fora o meu salvador tantas e tantas vezes. Só que, em determinadas circunstâncias, eu tinha a impressão de que você era uma invenção. Por isso, fiquei tão feliz quando o vi de novo, depois de tantos anos. No meu íntimo, eu pensei: veja só, Rin. Ele é real! E ainda continua o mesmo, como se tivesse congelado no tempo...

Ao som da minha voz, a besta cambaleou e, de súbito, assumiu uma fisionomia humana. Mais especificamente de um homem. Hesitei me aproximar, mas assim que me deparei com o olhar dourado de Sesshoumaru fui até ele. 

Dai-youkai olhou ao redor, atordoado. Ele não sabia onde estava, nem o que tinha feito. Encarei o belo rosto de Sesshoumaru e segurei sua mão, atraindo sua atenção para mim. Havia um ferimento em sua perna e arranhões nos braços, em virtude do confronto com Daisuke. Contudo, nada mais importava. Aquele era Sesshoumaru. 

— Rin... — murmurou ele, confuso.

Eu sorri. 

— Está tudo bem — disse, tranquilizando-o.

Quando avistou os ferimentos no próprio corpo, ele indagou:

— Está ferida? 

Balancei a cabeça, negando. A sua expressão preocupada encheu meu coração de ternura e, sem que pudesse me conter, abracei-o. 

Era bom sentir o calor que emanava dele. De início, imaginei que ele não iria corresponder o enlace e, sinceramente, pouco importava para mim. Até que eu senti sua mão afagar levemente o topo da minha cabeça. O toque me deixou surpresa, pois não estava esperando.

Então, ouvimos sussurros, o que me fez lembrar de que tínhamos plateia. O corpo de Sesshoumaru ficou tenso e eu me desvencilhei. 

Ele pousou as mãos em meus ombros.

— Rin, o que aconteceu? — quis saber.

Eu corei. 

Droga. Eu tinha que falar. 

— Algo que não deveria ter acontecido... — comecei a explicar, mas logo fui interrompida. 

A multidão que nos assistia foi tomada por um alvoroço. Não demorei muito para detectar o motivo. Tratava-se da Grande Bruxa. As suas órbitas amareladas adquiriram um aspecto branco, como se estivesse em transe. Arina bradava para que todos se afastassem e lhes dessem privacidade. Assim, os youkais se encaminharam de volta à fogueira. 

Sem perder tempo, Sesshoumaru e eu fomos até a Grande Bruxa. Quando ficamos diante dela, observamos que a youkai murmurava repetidas vezes:

— É no solstício de inverno, durante a hora do morcego... É no solstício de inverno, durante a hora do morcego...

Após se certificar de que não havia ninguém por perto além de mim e sua mãe, Sesshoumaru questionou, severo:

— Diga, bruxa. O que você vê?

Ninguém ousava emitir um único som. Meu corpo inteiro tremia de medo e aflição. 

— É no solstício de inverno, durante a hora do morcego — respondeu a a Bruxa, com timbre mais arrastado e tenebroso. — Eles invadirão o palácio.

Os olhos de Sesshoumaru se arregalaram e o rosto de Arina empalideceu.

— Eles, os seguidores de Dahlia... As raposas do norte — continuou a youkai. 

— O que elas querem? — perguntou Arina.

— Morte — disse a Grande Bruxa. — Vejo destruição. O palácio de Sesshoumaru consumido por línguas de fogo. E vejo a humana de pé ao lado de uma raposa espectral. Diante dela está Eiji Izumisawa, daimyo dos Youkais do Norte. A humana está usando um colar com uma pedra de Gisho.

Arina me lançou um olhar acusatório, mas não disse nada. 

— E quanto ao senhor do palácio? — questionou Sesshoumaru. 

— Ah... O daimyo Sesshoumaru, descendente do Grande Cão, não resistirá o ataque e morrerá defendendo os seus domínios — sentenciou a Bruxa. Em seguida, ela abriu os braços para o alto e repetiu: — Os deuses me revelaram esta noite que, no solstício de inverno, Sesshoumaru honrará o Pacto de Sangue e morrerá pelas suas terras num Grande Sacrifício. 

Era como se eu tivesse caído numa espécie de limbo. Tudo em minha volta não parecia real. Nem mesmo Sesshoumaru que continuava fitando a Bruxa com feições duras e analíticas. Os meus olhos ardiam e eu não conseguia respirar, pois o ar ficara preso em meus pulmões. 

Com os dentes arreganhados, Arina aproximou-se da Grande Bruxa. Quando se pronunciou, o seu grito era rouco, como se tivesse saído das entranhas da terra:

— Sua insolente, charlatã, mentirosa! Como ousa proferir tamanha asneira?! Sesshoumaru, ela precisa pagar! Chame os servos e ordene que lhe arranquem a língua! 

— Os meus poderes vêm dos deuses, senhora — disse a Grande Bruxa solenemente. — São eles que me deram o dom da Visão. Quando a senhora questiona a veracidade daquilo que vi não está questionando a mim e sim, os deuses.

Era como um sonho. Não parecia real. Procurei desesperadamente o olhar de Sesshoumaru e, assim que os nossos olhares se cruzaram, eu lembrei das palavras de Vovó Kaede sobre encontrar o próprio destino. 

Conforme fitava os orbes áureos do youkai, eu soube que o meu destino estava ligado ao dele. Sempre estivera. E agora eu iria perdê-lo? Isso não podia ser verdade. 

Então, eu percebi, como se os deuses tivessem me revelado naquele instante, que Sesshoumaru era o homem com quem eu havia sonhado mais cedo. O rosto misterioso pertencia a ele. Sesshoumaru era o meu destino.

E eu era o dele. 

 


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Notas finais do capítulo

É incrível como a Arina não tem um minuto de paz hahaha. O que acharam? Comentem!!