Eu observei.

Kirishie saiu toda sapeca de seu quarto. Sempre me perguntei como seria o quarto dela mas nunca me importei muito em olhá-lo. Balançava um papel branco em suas mãos, ajeitando os oculos com a outra.

"Stark, eu falei com a Sociedade. Creio que não estamos em apuros."

Light estreitou os olhos, apanhando o papel das mãos da ruiva "E por que estariamos? Ninguém morreu ainda."

"Ainda?"

"Não ligue para ele, Lotti." Kirishie disse, correndo até a estante. Abaixou-se e retirou uma pequena chave dourada que residia, secretamente, entre seus seios, enfiando-a na fechadura de uma das gavetas ao pé do movel.

"O que está fazendo, senpai?"

"Sate to..." murmurou, tirando um pequeno livro de capa preta da gaveta. Entregou para Stark e pôs a contemplá-lo, como uma criança "Em palavras basicas, a nossa Lotti é isso."

"O que é isso?"

"Um manga! Você lê de trás pra frente."

"Está dizendo que a Lotti é uma invenção maluca dessa sua cultura doente?"

"Ah, hidoi yo!" Kirishie quase engasgou, franzindo o cenho.

Ei! Não somos doentes, okay?!

Stark suspirou e correu os olhos pelas paginas. Olhava de Charlotte para o livro, depois para Kirishie. Começou a rir, entregando o livreto para a morena, que estava com as mãos estendidas, esperando-o. "Você tem certeza, Kirishie-senpai? Isso é maluquice demais. Não foi o que eu previ."

"Hontou desu!" ela insistiu "Não sei o porque, mas ocorreu um pequeno erro na... Assimilação dela. Os ouvidos se fecharam, não os olhos."

"Talvez seja pela ligação que ela tinha com sons." ele se voltou para Charlotte, sorrindo "Lotti, você se lembra de como era facilmente influenciada musicalmente?"

"Como sabe disso?" Charlotte perguntou, sem emoção alguma

"Nós sabemos muito sobre você. A lua e as corujas tem olhos, e ouvidos." Kirishie respondeu. Temos bocas também, como qualquer um.

"Ela provavelmente fechou o 'ponto fraco' dela, para que não houvesse resistencia. Isso é incrivel."

"O que é incrivel?" Charlotte indagou "Eu estar sendo um parasita?"

"As duas são parasitas, já que nem você e nem ela deveriam estar nesse corpo. Já que ele morreu." Kirishie explicou com certa simplicidade, tomando o livro das mãos da garota e guardando-o na gaveta.

"Creio que ainda estou confusa sobre tudo isso."

Eu podia ver a visão da garota se tornar cada vez mais e mais embaçada, como se ela estivesse chorando por muito tempo. Com olhos tão inchados, que mal podia enxergar.

"Por que isso está acontecendo?"

"Lotti, há coisas que nossos olhos..."

"Não venha com esse papo de olhos, sua ruiva maluca." protestou, em uma indignação que não transpareceu "Por que eu continuei surda, e agora estou ficando cega? O que eram aquelas pinturas? Por que eu estou aqui?"

"Ehh... Ela viu?" Kirishie perguntou ao garoto, e ele assentiu "Então, talvez eu deva ser um pouco mais bruta."

"Kirishie..."

"Charlotte." ela começou a verbalizar com um sorriso quase sadico no rosto. Num instante, toda a meninice da ruiva havia desaparecido "Você está morta. Morreu há muito tempo, tanto para esse mundo, como para a memoria das pessoas mas algo te puxou e te manteve presa até agora. Tão presa que você não foi embora." ela cruzou os braços, esperando que ela esboçasse alguma emoção, tendo um resultado negativo "As vezes, alguns espiritos 'vingadores' se apossam de corpos que foram 'desapropriados'. É pratico, é quase uma reclagem; e usam esses corpos para se vingarem e você, atashi no ichigo-chan, é um desses espiritos."

"Isso eu sei. Eu quero saber por que ela não morreu. Por que estou perdendo a visão."

"Não fale como se você fosse uma só. Estão coexistindo agora, não existe mais só a Charlotte, ou a Charlotte que sabia." Stark comentou, se dirigindo à cozinha "Falando nisso, vou preparar um lanche. Ainda tem aquele molho estranho e agridoce daquele dia?"

"Acho que sobrou um pouco na porta da geladeira!" ela gritou, sentando-se no sofá logo em seguida. As pupilas de Charlotte a seguiram. Eu vi elas se tornando vazias. Pouco a pouco, perdiam a cor. Como um lago enlameado que, lenta e dolorosamente, se torna limpido. "Charlotte, não aja como se não doesse. Eu sei que doi. Eu conheço muitos casos como o seu. Não finja ser a Charlotte que você não é."

"Mas eu..."

"Você não é." ela retrucou. Seus olhos se tornaram tão inexpressivos quanto os de Charlotte. A voz dura e seca. A ruiva se levantou e empurrou a garota para o sofá, colocando as mãos na cintura "Ela é uma besta, Charlotte. Um animals selvagem. Não estaria tão controlada se fosse ela. Não estaria fechando os olhos à sua volta, como está fazendo. Consegue ver? Eu sei que não. Mas consegue sentir? Consegue sentir seus olhos se fechando para o mundo em que está? Não, você não está deixando-o para trás; está apenas fechando o olhos, pois não pode ver nesse plano. E está abrindo os olhos para onde você realmente está. Em lugar nenhum, porque há muito, Charlotte já morreu."

Ela permaneceu silenciosa até seus orbes adquirerem a cor do nada. Um amarelo-esbranquiçado que se misturava ao branco do olho. As pupilas não se moviam, e sua boca estava levemente aberta. Ela respirava com dificuldade aparente. Uhn... Sempre são dolorosas, as vezes em que percebemos a verdade. Sentia dores no pescoço, seus pulmões ardiam e a cabeça parecia explodir. Sentiu-se tonta, e os musculos retesarem pouco a pouco em uma sequencia dolorosa. Arranhava o proprio pescoço como se uma força invisivel a estrangulasse. A ruiva apenas a observava, assim como eu. O tom infantil de volta ao seu rosto.

"Doloroso, não? Doi ainda mais quando você mesma se destrói"

Os olhos cegos se reviravam e o corpo começou a espasmar. De repente, parou. Depois, se balançava como se sofresse solavancos, ou algo muito forte atingisse seu abdomen. Um grito sufocado, inaudivel, arranhou para fora de suas garganta enquanto os olhos focalizavam o nada. Por fim, caiu no sofá, aparentemente sem vida.

Stark reapareceu instantes após, carregando um prato com pãezinhos recheados com o estranho molho. Colocou um na boca e reparou em Charlotte "O que aconteceu?"

"Ela se matou." Kirishie respondeu, muito simples

"Mas de novo?" indagou, engolindo a comida "Quantas vezes mais até ela se adaptar?"

"As duas tem um genio forte, precisam lidar com suas diferenças." a ruiva umedeceu os labios, subindo as escadas "Eu vou tomar um banho. Toda essa preocupação com a Sociedade me cansou, e muito. Tome conta dela, Stark."

Sem poder protestar, o garoto sentou e começou a beliscar os petiscos.

_____

Era tarde da noite, mas eu ainda observava.

Não porque eu queria, mas esse era o meu trabalho.

E costumam nos dar muitos trabalhos na Socidade, muito incomodo.

Charlotte ainda estava desacordada. O pulso tão fraco que se eu me descuidasse, não conseguiria sentí-lo. É incrivel até que ponto podemos nos auto-destruir.

"Nenhuma mudança?" Kirishie perguntou, ajeitando o cinto do roupão. Stark negou "Devia ir para casa, sua familia não está preocupada?"

"Não posso deixar você aqui, afinal..."

"Está tudo bem, ela está selada." Light elevou uma sobrancelha, pasmo. Eu tive quase a mesma reação também, não se sinta só "Eu tive de fazer, caso ela despertasse isso aqui viraria um caos! Você sabe disso, eu fiz o mesmo com você."

"Sim, mas eu não tenho uma besta lutando contra mim para tomar posse do proprio corpo!"

"Não fale assim dela, coitada. É só uma criança selvagem que precisa ser adestrada"

"Não se adestram pessoas, Kirishie." a ruiva deu de ombros, levando o bule até à xicara do rapaz "Mais chá?"

"Por favor." respondeu, mordendo um biscoito "Já que estavamos falando sobre isso, por que não conta um pouco conseguiu... Me selar?"

"Eu precisaria de um livro só sobre você para falar sobre isso. Melhor deixarmos para outra hora." ela riu-se, servindo-se de chá "Apesar de você e Charlotte serem experiencias diferentes, no fundo são iguais. Se apossaram de um corpo que ninguém usaria."

"Mas eu prevejo o futuro e..." ele hesitou, corrigindo-se "Previa, no caso. Não mato ninguém."

"Você matou a Charlotte, quando previu o futuro dela. E eu, quando a assisti morrer." explicou, olhando furtivamente para os pães "No final, somos todos assassinos."

"Você pode fazer alguma coisa sobre isso?" questionou, admirado.

"Claro que posso. Eu posso fazer qualquer coisa. A maioria delas, talvez. Desde que eu possa dizer 'hocus pocus.'

"Kirishie..."

"Mas eu não posso intervir nisso. A Sociedade me puniria, pois minha única tarefa é assistir ela."

"E... Acho melhor irmos acordá-la... Não é bom que ela fique tanto tempo assim."

A ruiva assentiu, limpando os labios com um guardanapo de papel. Ambos se levantaram da mesa e voltaram para à sala. Charlotte ainda estava lá, imovel e desacordada. Ambas estavam alias, pois ambas lutavam e estavam cansadas.

Kirishie se aproximou, ajeitando as vestes e os cabelos da morena. Stark afastou um pouco a poltrona e sentou-se nela. Um sorriso ansioso brotava em seus labios.

Kirishie também se afastou. Os labios se moviam com firmeza "Abra seus olhos, minha besta."

Imediatamente, o calor voltou ao corpo de Charlotte. Como uma cobra se desenrolando, ela elevou o tronco até se colocar sentada no sofá. Os olhos se abriram revelando orbes de um vermelho-rubro, que pareciam flamejar, cravados no rosto palido.

Alargou os labios em um sorriso doente, puxando a manga da veste clara. Antes que pudesse reagir, Kirishie levou o braço à sua frente, dobrando os dedos, como se possuisse garras. Repuxou o nariz, sorrindo em seguida "Espero que se lembre que você está selada, e sob minha direção. Apenas lhe chamei para isso. Alguém precisa domar esse animal selvagem."

A garota permanecia silenciosa, com a boca ficando cansada de sorrir. Kirishie levou a mão até seu rosto, as longas unhas esmaltadas de verde bem proximas dos olhos. "Será que você está cega mesmo..."

Rapidamente, Charlotte agarra o pulso da ruiva, torcendo com certa violencia "Não seja burra, é claro que estou cega. Mas não quer dizer que não posso te ver."

"Yoshi... E por que não me solta? Eu disse que você precisa ser a-des-tra-da." retrucou em tom brincalhão, tentando se afastar da morena. Massageou o pulso algumas vez, enquanto olhava para Stark. "Eu fui designada pela Sociedade para lhe assistir. Creio que já saiba o que você é, quais são seus objetivos."

"Espero poder contar realmente com a sua ajuda, Kirishie. Essa garota é um saco de ossos e não sei porque estou aqui ainda."

"Uma alma não pode transitar entre corpos ao bel-prazer. Precisa ter uma abertura, e Charlotte está... Selada." completou com um sorriso quase infantil "Que tal amanhã, você colaborar e não tentar me matar de novo, assim podemos treinar esse saco de ossos, huh? Que tal?"

Charlotte assentiu. Kirishie estendeu o braço e estalou os dedos. A morena inclinou o corpo para trás e duas labaredas totalmente avermelhadas pareceram sair de seus olhos, puxando-a para frente. Foram parar na mão de Kirishie e desapareceram em seguida.

"Whoa, levou a sério essa coisa de domar!" exclamou Light, se aproximando.

"Domar o quê?" Charlotte perguntou, bocejando em seguida

"Acho bom a senhorita olhos de vidro descansar bastante. Amanhã o dia vai ser muito longo." o rapaz expôs, fazendo menção de sair.

"Pois você não deveria falar nada, seu cabelo é da mesma cor dos olhos dela e isso é desde que você nasceu." Kirishie riu, ironica. Pois bem, que os olhos de Lotti estão pra lá de claros, mas não chegam a ser transparentes. Nem feitos de vidro.

Mas isso não teve sentido algum. Qual o problema desse garoto?

"Oh, senpai..." ele recuou, mirando a última porta "Quando a Tsuki deve aparecer?"

"Uhn, você sabe..." ela começou, ajudando Charlotte a se levantar do sofá "Você sabe como ela adora os capitulos finais."