As Aventuras de Rin Casaco Marrom escrita por Sem Nome


Capítulo 29
Aquele com o presente de quem já se foi


Notas iniciais do capítulo

Quem quer ver o guarda da veia, levanta a mão!



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– Vamos, Neru – Rin fez mensão de ajudá-la, mas a própria Neru fez que não com a cabeça – Não posso deixá-la aqui!

– Nunca... – parou para puxar um pouco de ar – Nunca disse que queria ser deixada para trás... Só... espere um pouco mais.

Miku se sentou perto da arqueira, as costas apoiadas na parede. A postura de ambas lembrou Rin do esqueleto do outro lado do quarto. Afastou esses pensamentos o mais rápido que pôde.

Ela tinha razão quando deduziu que havia janelas no terceiro andar. Estavam abertas e o ar frio cantava. Deveriam ter sido construídas havia pouco tempo. O homem morto provavelmente havia se matado (levando em conta o sangue na faca), mas pular da janela teria sido menos doloroso.

Balançou a cabeça, nem se importaram em tirar a ossada. Imitou Miku, sentando-se do outro lado de Neru.

– Se quiser, podemos dar um jeito de levá-la lá para baixo.

– Já disse que não é necessário – resmungou, manchas escuras se formavam abaixo de seus olhos – Só peço alguns minutos.

A loura mais nova encolheu-se no casaco, murmurando um baixo “Você pode morrer por causa disso”.

Passou um tempo esperando algo que não conhecia. Por um minuto pareceu-lhe que o único que tinha vida naquela sala era o esqueleto. Mas quando olhou para o lado, engasgou de susto e se levantou em um pulo.

– Neru! – chamou.

A pele da arqueira estava tão pálida que a menina temeu ser capaz de enxergar seus orgãos e ossos. A gritaria chamou a atenção de Miku, e sua expressão indicava que estava em dúvida entre preparar uma vela ou ajudar Neru a se deitar.

Rin desfez os feixes das roupas de Neru, revelando o feio corte. Não sabia o que poderia fazer para salvar a moça, mas talvez pudesse estancar o sangue. Procurou nos bolsos um rolo de ataduras, e as aproximou do machucado.

Porém, a mão fria e trêmula de Neru segurou seu pulso com força inacreditável. Sentiu sua circulação ser interrompida.

– Não – rosnou a arqueira. Seus dedos deixaram marcas no braço da menina.

O que ela está fazendo? Rin passou a mão pelos cabelos, preocupada. Temia que Neru estivesse enlouquecendo devido à perda de sangue. Lembrou-se de si mesma delirando da última vez que levou um golpe desses.

– Rin, veja só! – Miku engasgou.

– O que? – a menina indagou. Não via nada de especial. Pórem, quando a esverdeada jogou luz no ferimento, ela sentiu seu coração parar por um segundo – Pelo palácio...

A carne e a pele aos poucos se tornavam mais grossos, mais ásperos. As partes separadas mais uma vez se encontraram, formando uma grande cicatriz, que parecia que iria romper-se mais uma vez. Aos poucos, entretanto, até a cicatriz ficou mais pálida, até que não conseguissem identificar onde o ferimento algum dia esteve.

Rin sentiu como se tivessem jogado um balde de água morna nela, e depois de segundos, um balde de água gelada.

– Você também... – olhou para Neru, mas a arqueira parecia tão cansada que nem sabia se era capaz de falar.

– T-também o quê? – resfolegou. Sua mão pálida rastejou em direção a aljiva, parecendo uma aranha careca, branca e trêmula. Sacou uma garrafinha menor que seu punho fechado, mas precisou de ajuda para tirar a rolha. Pelo o cheiro, era bebida. Rin não sabia dizer qual.

– Isso de sarar rápido – explicou Miku – Mas o de Rin demora mais.

– A-ah... – recordou Neru, bebendo tudo em uma virada de cabeça. Esperou que fizesse efeito, e seu rosto ganhou cor. A última coisa que queria era se embebedar, mas aquilo era capaz de acordar um morto, e precisava de energia – Meiko mencionou... mencionou alguma coisa.

– Achava que era a única – confessou Rin, ajudando a outra a se pôr de pé.

A arqueira balançou a cabeça negativamente. Cambaleou, acostumando-se com os sentidos mais lentos.

– Longe disso – esticou os braços, sentindo a vida lhe ser devolvida – De onde venho, havia outros. Mas admito que fora de lá, jamais conheci alguém que tivesse esse truque na manga. Tirando você, agora.

Rin mordeu os lábios, tentando não parecer muito esperançosa. Falhou, eles se moveram sozinhos.

– Onde? Onde você nasceu? – a voz saiu mais desesperada do que desejava, mas a notícia a abalou de forma profunda.

– Uma cidadezinha no sul. Uma porcariazinha no mapa. Vivíamos de animais e plantações. Não eramos muito chegados ao comércio – Neru ergueu uma sobrancelha, braços cruzados – Não tínhamos um nome. Ninguém achava que precisávamos de um.

Rin engoliu em seco, mãos apertavam a gola do casaco.

– Não sei de onde vim. Me acharam em um rio. No Vilarejo de Menta.

A arqueira assentiu, compreendendo.

– Quantos anos tem?

– Dezessete – ao ver o rosto desapontado de Neru, já soube que não era boa notícia.

– Sinto muito, pequena, teria lembrado-me de você – balançou a cabeça – Não se podia fazer nada naquele lugar sem que todos soubessem. Sou cinco anos mais velha, e teria lembrado se alguém tivesse partido com uma criança. Mais ainda se a tivessem jogado no rio – depois repetiu – Sinto muito.

– Não tem culpa – assegurou. Avistou a próxima escada que deveriam subir. Parecia menos usada que as outras, sinalizando que quase ninguém passava do segundo andar.

Neru observou com o canto do olho Miku sacando uma chave de fenda.

– Ameaçador – riu.

– Se posso enfiar no olho de alguém, é uma boa arma.

Subiram a escada, Rin liderando o caminho. Desejou ter trazido uma chave de fenda como Miku. O escudo era uma boa defesa, mas lhe faltava uma arma. Seus passos ecoaram no metal. Respirou fundo e espiou o que as esperava no quarto andar.

– Oh... – estranhou, surpresa – Acho que eles ficaram sem imaginação...

– Por que? – Miku se espremeu ao seu lado. Entendeu o que a mais nova quis dizer quando só o que viu foi um quarto cheio de espelhos. Era como uma tentativa falha de um labirinto de espelhos. Dava para ver que havia algumas curvas, mas nada complicado.

– Tem alguma armadilha – Neru coçou a cabeça – Eles não são tão burros.

– Talvez tenham ficado com pena de nós – Miku se adiantou, checando se os medos de Neru tinham fundamento – Sabe, as três ordinárias do grupo, sem a ajuda do resto. Merecemos um pouco de piedade.

Neru fechou a cara, não gostando nem um pouco de ser depreciada daquela maneira. Talvez só não tivesse dado um tapa na cabeça da pirralha porque de algum modo ela havia xingado a si mesma.

Deixaram que Miku, a mais confiante no momento, seguisse na frente. Como havia previsto, nada de inconveniente lhes ocorreu. Chegaram na próxima escada em poucos minutos. Ainda assim, as mãos de Rin estavam geladas. Não podia ser assim tão fácil.

Rin repetiu a tática de dar apenas uma olhadela tímida no andar de cima. O resultado não foi diferente. Só o que mudou foram algumas curvas a mais e alguns becos sem saída, mas o quebra cabeça espelhado continuava simples de ser decifrado.

O sexto andar repetiu a fórmula. Mas nele o grupo se perdeu uma ou duas vezes. As passagens se tornavam mais apertadas, mais confusas, e elas deram as mãos para não se confundirem com os milhares de reflexos e acabarem se separando.

No sétimo tentaram quebrar os espelhos, na esperança de se confundirem menos. De nada adiantou, eram resistentes, quase inquebráveis.

O oitavo já as estava confundindo tanto que tiveram que parar e tentar descobrir se já haviam passado por aquela mancha no chão ou aquela rachadura no teto. As passagens eram estreitas, e por vezes tinham que se espremer para passar. Parecia que se moviam, querendo esmagá-las.

Rin não era claustrofóbica, mas não podia esconder que estava com falta de ar.

– Estamos andando em círculos – Miku garantiu – Esse lugar não pode ser tão grande. É só uma ilusão, os espelhos o fazem parecer maior.

– Não entendo – Rin cruzou os braços – Por que não colocam mais máquinas para nos atacar? É muito mais seguro do que simplesmente construir um labirindo.

– Eles querem apostar no nosso medo, Rin – explicou a esverdeada – Aquelas máquinas devem ser caras, mais caras que estes espelhos inquebráveis – lembrou quando tentou quebrar um deles, para fazer um buraco na parede – Nossa iluminação é péssima, fomos atacadas por aranhas de metal, estamos cansadas e nervosas. Perder-se em um labirinto sinistro nessas condições é mais do que a maioria das pessoas pode aguentar.

– Ah... – a menina corou. Nunca a diferença de idade entre ela e Miku fora tão evidente.

Neru semicerrou os olhos. Aproximou-se de um dos espelhos, até que seu hálito embaçasse o vidro.

– Estão escutando isso? – perguntou às outras.

– Pode parar – resmungou Miku – Não tem graça, e estamos tentado achar uma saída.

– Posso não estar completamente sóbria – rebateu Neru –, mas não sou louca. Venha cá e ouça.

A ladra obedeceu, seguida por Rin. Pressionaram os ouvidos na superfície fria do espelho. De fato, escutaram algo se mexendo do outro lado, o que fez um arrepio subir pela espinha de ambas.

– Não tem janelas aqui – sussurrou a mais nova. Neru a silenciou colocando o dedo na frente dos lábios.

Deram as mãos mais uma vez, decididas a andar o mais silenciosamente possível. Tinham que encontrar uma saída, evitando o outro lado da parede. Mas não sabiam que caminho tomar para fazê-lo.

– Fiquem longe dos espelhos – Rin observou sua própria imagem pálida. Se ainda tinha alguma gordura de criança na face quando encontrou o não livro na Cidade dos Peixes do Sul, ela havia sido eliminada completamente nos últimos meses. Mais algum tempo, e seria uma adulta completa.

Continuaram caminhando sem rumo, apostando na sorte. Não escutaram mais o barulho de metal contra o piso de madeira, e acharam passagens novas. Em alguns momentos foram obrigadas a engatinhar para atravessar um arco espelhado muito baixo. Começavam a achar que não enfrentariam problemas.

Isso até Miku se aproximar de um dos espelhos.

– Estou ouvindo de novo – apertou a chave de fenda com mais força. Antes que pudesse encostar o rosto no vidro, um som cortante de algo se quebrando a petrificou no lugar – Quebraram um espelho do outro lado...

Confirmando o que disse, o reflexo da esverdeada foi quebrado em mil pedacinhos, começando pela cabeça. Não preciso dizer que não foi uma previsão muito empolgante. Pulou para trás antes que tivesse uma ideia concreta do quê destruiu a parede.

Os cacos cobriram o chão, tornando-o por si só uma armadilha dolorosa. Mas as três prestavam atenção apenas naquilo que segurava uma foice em uma mão e uma agulha enorme na outra. Uma máscara de madeira cobria seu rosto, e uma capa longa e fedida, seu corpo e cabeça.

– É humano? – murmurou Rin. Os movimentos pausados e mecânicos lhe diziam que não, mas o equilíbrio e a velocidade eram naturais para ela.

– Para o chão! – Neru obrigou as duas a mergulharem, quase sendo atingidas pela lâmina da foice.

A agulha não era menos perigosa, fincou-se no chão, poucos instantes depois de a arqueira desviar. Maldito, atacava pelo mais forte.

– Rin, ideias! – Miku a levantou pelo casaco, rápida como uma flecha.

– Ele não tem pontos fracos! – a menina observou as costas de espinhos rasgando o manto e o soco que Neru lhe deu da máscara, apenas para ganhar uma mão sangrando e um rosto de engrenagens para apreciar.

A mais velha segurou a mão dolorida. Rin tinha razão, flechas não seriam úteis.

– Corram – engasgou.

Foi uma péssima ideia, mas era a única que tinham. A cada momento uma delas esbarrava em uma das paredes de vidro. Era confuso, era escuro e era apertado. Por vezes Miku escutava a foice assobiando em suas costas, por pouco a deixando viver.

Não prestava atenção no caminho, apenas seguia Neru, e quando a mesma parou de correr, soube que estavam com problemas. Mais um beco sem saída. Virou-se, e viu o que não queria ver, a máquina vindo em sua direção com pés ocultados pelo manto. Seria a primeira.

A máquina preparou a agulha, e Miku viu algo que antes estava escondido. Não havia mãos. As armas prendiam-se diretamente aos braços de metal enferrujado com a ajuda de parafusos. Apertou a chave de fenda, a respiração presa na garganta. Se era realmente rápida, esta era a hora de provar.

Rin foi a primeira a esbarrar-se no espelho. Olhou por cima do ombro, vendo a máquina preparar a agulha, andando com seus passos idênticos, calculados e velozes. Era possível escutar as engrenagens e o metal raspando contra metal. Deveria ser mais aperfeiçoado que as outras, pois soltava menos fumaça, economizando carvão.

Ergueu a agulha, e a mais nova teve certeza de que Miku não escaparia. Parecia que seu estômago havia sido trocado por uma pedra de gelo naquele momento. A arma desceu.

O resto aconteceu tão rápido que Rin achou que fosse sua mente brincando com ela. Miku flexionou os joelhos e, em um salto habilidoso, desviou da ponta fina da arma. Segurou o braço enferrujado da máquina e quando a foice ameaçou cortá-la, mergulhou no chão, prendendo a agulha na madeira e a foice no vidro quebrado.

– Vamos ver como se sai sem isto – rosnou, encaixando a chave de fenda no parafuso. Em poucos segundos, era a nova dona daquilo que há pouco tempo quase a matou. Infelizmente a foice já havia sido tirada do vidro antes que pudesse fazer o mesmo com ela – Afastem!

Neru puxou Rin, as duas pressionaram as costas nos espelhos. Já estavam convencidas a deixar Miku cuidar disso. A máquina seguiu a ladra até perto do espelho que as prendia. Eram confundidas pela ilusão de ótica, mas o montinho de metal não. O braço sem arma continuava movimentando-se como se tivesse uma, atacando o ar sem motivo, e isso era uma vantagem, uma abertura na defesa.

Era a vez da foice de atacar, e Miku estava contando com isso. Batia no espelho de leve. Se aquilo se orientava por vibrações, seus pés leves chamariam menos atenção que as pancadas no vidro. A próxima coisa que sabia era que o espelho tinha sido quebrado, a máquina estava confusa e que agora havia uma nova passagem.

– Vamos, antes que ele se levante – as outras a seguiram pelo buraco. Com alívio, viram a escada para o nono andar. Pularam pelo montinho de metal, caído e procurando apoio – Sete anos de azar, amigo.

– Miku, nós amamos você! – riu Rin.

Para seu desgosto, o nono andar ainda era o mesmo labirinto, provavelmente mais complicado.

– Ótimo – a menina olhou em volta –, o que há neste? Paredes que se me... – antes que pudesse terminar a frase, pareceu que seu chão havia sumido. E foi exatamente isso que aconteceu. Se Neru e Miku não tivessem sido rápidas o suficiente, teria caído no oitavo andar de novo, em cima de espelhos. O que não teria sido muito macio.

As duas a puxaram de volta. Ninguém falou nada, as mãos geladas de todas elas já dizia o suficiente.

– Mais cuidado – a voz de Neru foi um sussurro. As três viraram-se, escutando algo subir as escadas – Ele está vindo.

Não tiveram escolha além de correr, cada uma se protegendo como puderam; Rin com seu escudo, Neru com a fé de que ainda teria energia para se curar caso o pior acontecesse e Miku com sua agilidade. A arqueira ficou atrás da fila, com uma flecha pronta.

Saltaram de vários outros alçapões, e Rin acionou várias armadilhas de agulhas que caíam do teto, mas seu escudo foi o suficiente para protegê-la, com exceção de um outro, que arrancou logo depois.

A máquina estava muito próxima, esbarrando-se nos espelhos, perseguindo-as como se fosse viva. Neru atirou em sua testa diversas vezes, esperando provocar um curto circuito, mas isso só ocorreu na sexta flecha, que prendeu duas engrenagens. Pelo visto, todas estavam ligadas de alguma forma, por isso a máscara existia. Proteção.

Os sinos soaram, ocultando o som de seus passos, fazendo toda a torre ecoar, tremer, ganhar vida. Era uma boa hora para se esconder. Tinham apenas doze badaladas para fazê-lo.

Rin olhava para trás constantemente para não se perder das outras. Tinham que ficar juntas. Um vento frio fez com que os pêlos em seus braços se arrepiassem. Pôs as mãos nos bolsos. De onde vinha esse vento? Será que havia janelas? Portas? Saídas?

Animada, acelerou o passo. Não adiantava tentar falar, os sinos ainda estavam na metade das doze badaladas, e superavam sua voz facilmente. Estava na frente, Neru e Miku a seguiriam. Olhou para trás mais uma vez, confirmando.

Continuou seguindo a brisa fria, rastejando no chão por passagens cada vez menores e espremendo-se entre paredes cada vez mais estreitas. O vento soprou novamente, bagunçando seus cabelos. Agora foi obrigada a abraçar a si mesma.

– Como está gelado lá fora – vapor saiu de sua boca, para sua surpresa. A temperatura havia caído tanto assim? Ninguém respondeu sua pergunta.

Parou de correr, quase perdendo o equilíbrio. Iluminou o caminho. Nada de Neru, nada de Miku, nada de máquina. Não havia ninguém além de seu próprio reflexo assustado. Reflexo. Devia tê-lo visto e achado que as outras ainda a seguiam. Era muito difícil saber o que era real e o que era imaginário ali.

– Neru! Miku! – não responderam. Esperava que ainda estivessem juntas e que não tivessem sido atacadas de novo. Só o que podia fazer era continuar e rezar para não encontrar a pessoa errada.

Viu mais uma minúscula passagem espelhada. Achou impressionante que tanto ar pudesse circular por ela. Rastejou pelo que pareceu a centésima vez aquela noite. Deu de cara com um octógono de espelhos, que lhe pareceu assustadoramente com uma arena da luta.

Então percebeu. Não havia nenhuma saída lá, com exceção daquela pela qual entrou. Como era possível haver ar circulando? Como se para deixá-la ainda mais curiosa, o vento tornou a envolvê-la.

Foi tão poderoso que ela teve que proteger os olhos com o braço, e tão cortante que o frio atravessou suas roupas. Vapor saía agora de seu nariz quando respirava. Parecia ficar cada vez mais forte, ininterrupto. Sentou-se, sem nunca abrir os olhos, e tomou a forma de uma bolinha, guardando calor. Tremia, seus dentes batiam.

– Vou congelar... – murmurou – Meiko, como a queria aqui. Vou congelar...

Mas não congelou. O vento parou de açoitá-la antes mesmo que se sentisse sonolenta. Devagar, desembrulhou-se, olhando para cima. O ar ainda estava frio, mas soube que o gelo que se formou de novo em seu estômago não vinha de fora. Vinha de seu pavor.

Não estava mais só.

– Len? – engasgou, sua visão estava embaçada, não conseguia ter certeza de nada. Era como se fosse uma miragem. Não tinha reflexo, não tinha sombra.

No entanto, logo percebeu que o problema não era sua visão. E que aquele definitivamente não era Len. A figura olhou em seus olhos, interrompendo o que quer que estivesse fazendo. Eram olhos tristes e pálidos, tão pálidos quando o resto do corpo. Vestia couro e peles, mas nem mesmo as roupas pareciam reais. Forçar a vista só piorava as coisas, mas a imagem estava tão desfocada que Rin achou que estivesse ficando cega.

A moça a fitava como quem olhava um pedaço de pão, imaginando se valia a pena comer ou não; um pouco de curiosidade, mas nenhum outro sentimento arrebatador. O recíproco não era verdadeiro, claro. Convencida de que a menina magricela não era ameaça de verdade, voltou mais uma vez sua atenção para um embrulho que trazia consigo.

– Ah... – a voz da menina morreu ao tentar escapar pela garganta. Não era preciso ser um gênio para saber que uma criança devia estar ali.

A radória estava sentada no chão, pernas cruzadas, embalando o embrulho com carinho perto do peito, para que ouvisse as batidas de seu coração morto. Ao contrário de todo o resto, o manto parecia concreto, real.

– Deuses – murmurou Rin – Estou ficando louca.

Mas de alguma forma (de alguma forma fúnebre e terrível), a visão a deixou feliz por Len. Significaria isso que sua mãe olhava por ele? Será que a mãe de Rin olhava por ela, onde quer que estivesse? Ignorou esses pensamentos antes que eles se tornassem aterradores demais. Olhos marejados piorariam ainda mais sua visão.

O embrulho era feito da pele de algum animal. Não sabia bem qual, mas com certeza era enorme, maior que um leão ou tigre, com pêlos macios e negros como pixe. Sem refletir a luz, parecia absorvê-la por completo, como um buraco negro em forma de cobertor.

Era lindo.

Retirando coragem de onde nem sabia que tinha, esqueceu onde estava, esqueceu o medo. O espírito era muito parecido com Len para causar-lhe medo. Deu um passo atrás do outro. A radória não pareceu se importar, apesar de perfurá-la com o olhar vigilante de mãe.

A ansiedade a dominava enquanto esticava o braço, os dedos roçando na pele macia. Achou uma brecha, e abriu o cobertor. Esperava encontrar um rosto rosado e gordinho, talvez com fios louros grossos e arrepiados cobrindo-lhe os olhos azuis, ainda sem chifres, ainda sem dentes, ainda pequeno e frágil.

Porém, nada viu nada lá dentro, só mais pele. Engoliu em seco, apalpando o embrulho, em busca de alguma coisa, qualquer coisa.

– Não tem nada aqui – sentiu-se obrigada a falar, ainda não desistindo - Ele não está aqui.

A moça nem mesmo abriu a boca, mas seus olhos tristes mostraram algo que palavras não podiam. Esperança.

Esticou o pescoço, mostrando uma cicatriz. Parecia ter sido feita por um facão. Um facão inexperiente, de caçador que ainda está aprendendo a caçar. Lento e doloroso.

– A criança vive – Rin entendeu, abraçando a si mesma e engolindo a saliva grossa – Sinto muito.

Nada foi dito.

– Você... Você quer que eu conte, não é?

Nada foi dito.

– Você não podia ter aparecido para Len? Ele teria gostado de vê-la.

Nada foi dito.

– Qual é o seu nome?

Nada foi dito.

– Entende o que digo?

A radória se levantou preguiçosamente, fazendo a menina se afastar. Ela a olhou nos olhos uma última vez. Apontou para o teto com um gesto de cabeça, sem nunca desviar o olhar. Rin seguiu a instrução, e viu uma passagem no teto. Sorriu, só podia ser o último andar. O andar dos sinos.

– Como sabia? – engasgou. Estava sozinha. Mas a pele estava caída no chão, como um presente sombrio, para mostrar que aquilo acontecera de fato. Rin a apanhou, e a apertou contra o peito. Resfolegou, olhos bem abertos. Desesperada, gritou: – Espere! Volte! Você precisa me ajudar! Precisa ajudar Len!

Andou em círculos, impaciente, mas o fantasma não voltou.

– Não restou ninguém para ajudá-lo! – continuou, a voz embargada. Sofria por Len, e pouco importava se alguém a ouvia ou não. Precisava tentar – Eu não posso ajudá-lo com isso! Não posso ensiná-lo a ser o que ele é! Não sou um de vocês! – ajoelhou-se, calando-se. Pensou no quê havia acabado de dizer, a realidade a atingindo como uma pedrada – Não sou um de vocês... Deuses, não sou um deles...

Cobriu o rosto com as mãos. Não chorou. Não fez nada. O manto repousava em seus joelhos.

– Por favor, volte – implorou uma última vez – Por favor.

Tirou as mãos do rosto quando escutou pancadas do outro lado de uma das paredes. Levantou-se em um pulo, dobrando a pele. Não iria querer rasgá-la. Escondeu-a o melhor que pôde dentro do casaco.

As pancadas se tornavam mais fortes. O espelho rachava, cacos caindo no chão. Rin ficou quieta, suando frio. A foice surgiu, primeiro a ponta, depois o cabo, depois quem a segurava.

A máquina não perdeu tempo dessa vez, mas Rin percebeu o quanto estava danificada. Peças lhe faltavam, mancava e tinha os movimentos lentos. Miku saltou do buraco da parede, com Neru logo atrás.

– Deuses, achávamos que estivesse tendo um filho, com tanta gritaria – Miku riu, confiante. Tinha a agulha em mãos, mas a mais nova percebeu que era a chave de fenda que era segurada pela direita, a dominante.

– Ela é melhor do que eu pensei – Neru mudou de assunto – Sente-se e observe.

O monte de metal desafiou Miku. Pelo visto era uma luta equilibrada, porque a ladra tinha cortes rasos na barriga e ombros, sem falar nos lábios inchados e sangrando.

– Os cacos fizeram isto – limpou o sangue da boca, como se lesse sua mente – Mas estou quase acabando com esse aí, mas ele gosta muito da foice.

De fato, se Miku conseguisse tirar-lhe a foice, estaria desarmado. A menina não podia parar de pensar que Len talvez não fosse capaz de vencer essa batalha. Como o destino tinha um humor estranho.

A máquina ergueu a arma que sobrava, e a ladra estava tão concentrada em atacar que se atrapalhou, quase sendo atingida pela lâmina que quebrava o chão resistente, e logo depois uma parede de espelho, em um golpe rápido.

Pelo o menos era menos um reflexo com o qual Miku se confundiria. A esverdeada saltou em suas costas, sem se importar com os espinhos que perfuravam sua carne. Mordeu os lábios, se pudesse soltar a cabeça, o resto do mecanismo seria prejudicado.

Mas a máquina sabia desse fato também. Saltou com suas pernas de metal tão finas quanto os braços, abrindo mais corte na barriga e peito de Miku. Ela soltou um grito, sem aguentar por muito tempo. Soltou-se, caindo de costas.

O monte de metal brandiu a foice, abriria um buraco em seu coração naquele momento. Mas Neru foi mais rápida. Com três tiros foi capaz de prender mais uma vez uma engrenagem, fazendo os movimentos congelarem em intervalos regulares.

Miku se pôs de pé com dificuldades, seu corpo doía. Não alcançava a cabeça da máquina pela frente, e não tinha muito tempo até que ela acordasse.

– Aqui – Rin lhe deu o escudo – Proteja o corpo com isto.

Ela entendeu, sorrindo. Usou o escudo como proteção para o abdomen, sem se importar com espinhos agora. As outras duas agarraram o braço que segurava a foice. O montinho voltaria a se mexer logo, e demorava para soltar todos os parafusos.

Neru e Rin quase foram tiradas do chão quando isso aconteceu, mas mantiveram-se firmes. A cada minuto que se passava, a máquina lutava com mais vigor, movimentando as pernas e os braços. Pulava, chutava, socava. Era incrível que Miku ainda não havia sido derrubada.

Uma segurava o braço, e a outra, a foice A ferrugem impregnava suas mãos. Rin, que antes estava congelando, agora morria de calor.

– Vamos, Miku – Neru rosnou, suas mãos escorregando.

– Quase lá, quase lá! – e como para provar o que dizia, uma cabeça macabra com engrenagens em vez de pele caiu em seus pés, em um baque metálico.

O resto da máquina parou de funcionar, desmoronando no chão. Miku devolveu o escudo ensanguentado para Rin, trêmula e gelada. Mas extremamente feliz.

– Viram isso? – procurou apoio – Eu matei isso! Era maior que eu três vezes! Eu matei isso!

As outras duas riram. Rin achou que ela merecia um abraço, e Neru achou que ela merecia umas batidinhas nas costas.

– Kaito nunca vai acreditar em mim. Nenhum deles vai acreditar em mim – falou no abraço, mas não importava. Nunca se sentira tão forte. Tão feliz.

– Formamos um belo time – disse a mais nova, olhando de Neru para Miku.

– Melhor que o deles – concordou Neru.

– Muito melhor que o deles – completou Rin.

Miku enquietou-se, o sorriso morrendo. Libertou-se do abraço, estranhamente... vazia.

– É... – forçou um sorriso – Um belo time.

– Vamos – propôs Rin – Vamos pegar um sino.

As duas passaram a planejar como subiriam até o décimo e último andar, mas Miku ficou de fora da conversa. Perdida em seus pensamentos e sentimentos.

O que nós fizemos? O que eu fiz?

. . .

– Miku, você não consegue nem mesmo desligar um tomagotchi – Kaito pôs as mãos atrás da cabeça, duvidando das notícias –, imagine uma máquina daquelas.

– Mas eu consegui – rebateu Miku – Se você não estivesse tão ocupado preso no teto, teria visto.

Neru sentiu-se obrigada a intervir. Achou que sua palavra seria levada mais a sério.

– Tudo o que ela diz é a mais pura verdade. Não teríamos passado do oitavo andar sem Miku.

Meiko bagunçou os cabelos de Rin.

– Olhe para você, fazendo amigas novas – passou o braço pelos seus ombros – Cresce tão rápido!

A loura riu, mas seu olhar caiu em Len. Sentiu a garganta apertar, lembrando do embrulho nos braços da mãe. Pôs a mão dentro do casaco, sentindo a pele de animal escondida. Não era um deles. Como iria ajudá-lo?

Caminhavam em direção à casa de Bruno e Clara. Dormiriam antes de seguir viagem. Rin se sentia mal por deixá-los assim tão rápido, mas ficar poderia ser perigoso para eles e para o grupo em si. O tempo estava agradável, frio mas não muito úmido. Gostou de andar com calma, calada.

– Bruno? Clara? – chamou, assim que abriu a porta, estranhando encontrar luzes apagadas. O casal era do tipo coruja, a noite era sua hora.

Acendeu a lanterna a óleo, e quase a deixou cair quando viu os dois amigos algemados no chão, com as bocas bem fechadas com panos. Antes que pudesse gritar, sentiu uma dor profunda no rosto. Alguém lhe socara.

Não esperavam um ataque, estavam com a guarda baixa.

Foi jogada para fora da casa, e algemas prenderam seus pulsos. Procurou os outros com os olhos. Vários homens fardados foram necessários para desarmar Meiko e algemá-la (claro, ela não deixou que isso acontecesse sem deixar várias mão decepadas de presente). Neru também foi socada e lançada ao chão, cansada demais para lutar. Mas o que mais partiu seu coração foi Len.

Foram preciso o triplo de guardas que prenderam Meiko para que puxassem correntes que foram jogadas ao seu redor, em uma espécie de rede mais resistente e pesada. Do mesmo jeito, Rin achou que só aquilo não seria o suficiente para prendê-lo. Puxava, chutava e mordia, recusando-se a ser preso, dominado por um medo primitivo, familiar. Mais homens agarravam as extremidades das correntes.

As correntes roçavam sua roupa, queimando-lhe a pele, senão rasgando-a.

– Parem! – gritou Rin – Estão machucando-o!

Pareceu que alguém lhe deu ouvidos. A próxima coisa que viu foram dardos acertando o pescoço do rapaz. Ele parou de lutar, desmontando no chão. Uma multidão se formava ao redor deles, sem saber o que acontecia.

Um par de botas conhecido surgiu no campo de visão de Rin. Alguém agarrou a gola do casaco, pondo-a nas pontas dos pés.

– Como você cresceu, graveto.

Rin não soube o que a desesperou mais: ver seus amigos serem vencidos com tanta facilidade, ver o guarda da veia mais uma vez, ou ver Miku e Kaito serem escoltados gentilmente para longe deles.

. . .

Olá, como vão vocês?

Faz muito tempo que não conversamos abertamente, não é mesmo?

Serei breve, juro.

Não gosto de trazer más notícias, mas sou obrigada a dizer:

Muitas coisas ruins estão para acontecer.


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