As Aventuras de Rin Casaco Marrom escrita por Sem Nome


Capítulo 27
Aquele em que Rin encontra velhos amigos.


Notas iniciais do capítulo

Eu sei que demorei. Mil perdões!
E este é o meu presente para o Uchiha Angel! Feliz aniversário!
E eu queria agradecer à Bia Kagamine pela recomendação!
Vocês dois são demais! X3



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Rin verificou se o casaco estava bem preso ao galho de árvore e se a forma em que estava pendurado dava a impressão de haver uma pessoa em pé o vestindo. Quando ficou satisfeita com seu trabalho, tratou de se esconder atrás de um tronco caído qualquer. Apertou o punho da aspada de madeira com força, o couro estava frio pelo suor. Esperou.

Esperou.

Esperou

Soltou a respiração, decepcionada. Ele já devia ter sentido o cheiro. Levantou-se, alerta. E como uma resposta para suas indagações, uma sombra rápida como um raio saltou por entre as árvores e a jogou no chão, tirando-lhe o ar dos pulmões.

Rin tentou usar a espada de madeira com escudo, mas Len foi rápido em desarmá-la. Prendeu-a no chão pondo-se em cima dela e segurando seus braços. A menina bufou e relaxou o corpo, vencida. Len sorriu vitorioso e mordeu seu pescoço de leve.

– Onde eu errei? – quis saber.

– Ficou onde o vento arrastava seu cheiro para mim – explicou, sem deixá-la ir.

– Mas coloquei meu casaco para enganá-lo.

– Só funciona quando você fica longe dele.

O rapaz soltou seus braços e ela abraçou a cabeça dele. Agradecia aos deuses que até agora não havia se deparado com um adversário que se orientasse pelo faro. Deveria ser a centésima vez que era arremessada ao chão por Len naquela manhã. Mas não seria Len quem a atacaria na vida real, e uma mordidinha não seria tudo que receberia.

Contorceu-se para sair de baixo do louro. Ficou de pé e examinou suas roupas e corpo sujos de terra. Len se levantou em um salto e foi buscar o casaco preso no galho.

– Vamos tentar de novo? – ele levou a peça de roupa até o nariz.

– Não, temos que arrumar nossas malas – Rin tomou o caminho de volta para a estalagem – E tomar um banho. Estamos fedendo.

Ele assentiu e acelerou o passo para acompanhá-la. Tomou a mão dela na sua e pôs-se a observar os passarinhos que pousavam nos galhos de árvores. Rin explicou que era a época de reprodução e que eles se reúniam aos montes.

O terreno era plano, mas a erosão expôs várias pedras e raízes, por isso Rin andava observando os próprios passos. A viagem até o Ferro Velho seria longa, e não era barato pegar um trêm até lá. Menos viável ainda era comprar cavalos (o grupo era grande, e a montaria ficaria muito cansada se tivesse que trasportar duas pessoas ao mesmo tempo). A única opção era andar a pé, pelo o menos, na maior parte do trajeto.

– Eu não acho que você esteja fedendo – Len quis quebrar o silêncio. Passou um braço pela cintura de Rin e aproximou o nariz do cabelo dela.

Ela torceu o nariz, sorrindo. Claro, para ele, se o cheiro fosse natural era um cheiro agradável. Suor e terra não o incomodavam, ao passo que perfume forte era o suficiente para afastá-lo.

– Fico lisonjeada, mas ainda quero um banho – apoiou a cabeça nele – Faz bem. Impede que fique doente.

Os dois atravessaram a cidadezinha e chegaram à estalagem imaginando que os outros já estivessem arrumados e prontos para partir. Felizmente, parecia que ainda estavam se preparando também.

Rin desdobrou o mapa assim que entrou no quarto. Marcou o melhor caminho a se tomar e calculou quanto teriam que gastar com comida.

– Ferro Velho – já havia estado lá duas vezes. Era a cidade mais rica e influente do mundo. Tinha um pouco de tudo lá, pessoas de todos os tipos – Como vamos roubar um dos sinos? Quantos guardas devem haver lá?

Engoliu em seco. Esperava que Miku e Kaito tivessem alguma ideia.

. . .

Meiko avançou, sua espada atingiu o escudo de Rin com tanta força que a loura sentiu o braço ficar dormente, os ossos vibrando com o impacto. Não teve escolha senão tentar acertar a professora com a própria espada, um golpe fraco e inexperiente, mas que ao menos foi o suficiente para afastá-la.

– Não ataque para assustar, ataque para acertar! – instruiu, o vento levando a sua voz embora – Poderia ter lhe arrancado o braço!

Rin resfolegou, cansada. Avançou correndo e, com toda a força que seu corpo permitia, desveriu um golpe na vertical, mirando na cabeça. Se não soubesse que Meiko era perfeitamente capaz de defender-se, jamais faria tal coisa. Por mais que fosse fraca, a lâmina poderia atravessar o crânio da vítima.

Meiko usou a espada esquerda para parar o golpe. Para a surpresa de Rin, assim que as armas se encontraram, pareceu que sua espada tivesse absorvido todo o impacto. Como resultado, a lâmina rachou e quebrou um pouco no local onde bateu com a de Meiko.

Qualquer ataque, por mais delicado que fosse, reduziria a arma à um monte de estilhaços. A morena encostou a lâmina no pescoço de Rin, encerrando o longo treino.

– E você está morta – embaiou a espada e enxugou a testa com as costas da mão – Melhorou um pouco, mas ainda comete erros de iniciante. Apenas mire na cabeça quando a guarda do adversário estiver vacilante.

Rin sentou-se nos cascalhos e olhou o mundo ao redor. Não era à toa que chamavam aquele trecho de Estrada das Pedras”. Havia pedrinhas cobrindo o chão até onde a vista alcançava e as poucas árvores que surgiam no caminho estavam desprovidas de folhas.

O único lugar onde as pedras não se encontravam era onde haviam aberto caminho para a estrada. O chão nu era cinza e craquelado, e rezava a lenda que as pedrinhas marchavam para cobrí-lo, porque todo o ano era preciso uma manuntenção na estrada, para retirar as pedras que a cobriam.

Seu olhar se encontrou com o de Neru, observando de longe os acontecimentos, e seu rosto queimou de vergonha. Não se importava que Len presenciasse suas derrotas, e os irmãos quase nunca tinham paciência de assistir à uma luta inteira. Mas nunca conseguia dizer se a arqueira tinha pena dela, achava-a patética ou se simplesmente queria aprender mais sobre lutas com espadas.

Meiko lhe tirou a atenção, colocando-se ao seu lado com a espada quebrada no colo.

– Acha que é possível consertar? – indagou Rin.

– Difícil – Meiko foi direta – Provavelmente está quebrada por dentro. O ferreiro teria que derretê-la e, confie em mim, é mais barato comprar uma espada nova. É um prcedimento que só vale a pena quando a arma tem um valor sentimental. Uma herança de família, por exemplo.

– Diabos.

– Não pragueje por algo tão pequeno. Foi barata, podemos conseguir outra.

Rin examinou a própria mão. Estava cheia de calos, mas sabia que eles logo sumiriam, como qualquer outra injúria que viesse a ter. Mais uma maravilha de sua pequena habilidade, mãos macias.

– É canhota? – mudou de assunto.

– Por que pergunta?

– Você se defendeu com a espada da mão esquerda – lembrou.

– Ah. Creio que nunca me viu escrevendo.

A loura parou para pensar. Não, nunca vira Meiko escrevendo, nenhuma vez. Fez que não com a cabeça.

– Posso escrever com as duas mãos. Posso lutar com as duas mãos – explicou – Por isso me saio melhor com duas espadas.

– É ambidestra! – exclamou – Então é por isso que nossas lutas são tão desiguais!

– Mas não tenho um escudo. E não acho que o fato de eu usar as duas mãos com maestria seja o motivo para suas derrotas – provocou – Estamos a caminho da cidade mais importante do mundo. Tem de tudo lá. Quem sabe você não se depara com uma arma que lhe seja mais confortável?

– Talvez – Rin se pôs de pé e ajudou Meiko a se levantar – Como a sua espada não quebrou? É muito mais fina que a minha.

– Você não pode comparar uma lâmina feita por um ferreiro qualquer em uma cidade que não investe em força militar com as minhas espadas – a morena limpou a sujeira das roupas – Elas são feitas com o melhor dos aços, derretidas com fogo de dragão.

– Jura? – a menina ergueu uma sobrancelha.

– Não, mas gosto de imaginar que sim – riu.

Neru, como sempre, abaixou um pouco a cabeça para recebê-las.

– Quanto tempo ainda falta para chegarmos ao Ferro Velho? – perguntou, prendendo o cabelo no penteado usual.

– Só mais dois dias, se partirmos logo – Rin procurou Miku e Kaito ao longe, e acenou para que voltassem.

Deram continuidade à viagem, por muito tempo tendo apenas as pedrinhas para encarar. A loura chutou algumas rochas, entediada. Pulou de susto quando Neru se aproximou, furtiva como uma sombra.

– Lutou bem, pequena – elogiou.

– Mas perdi – rebateu Rin.

– Perdeu porque se distraiu. Se tivesse derrubado Meiko com o escudo no momento em que a espada rachou, ela teria caído sem dúvidas. A guarda esquerda estava frágil.

– Ah... – a mais nova cruzou os braços, sentindo-se tola por não ter pensado naquilo – Não importa. Tenho certeza que Meiko teria achado uma maneira de bloquear o golpe. Ela sempre tem cartas na manga.

Neru deu de ombros.

– Talvez tenha razão. Só estou dizendo que havia uma saída.

E, com alguns passos mais lentos, deixou-se tornar a última da fila. Solitária como lhe era confortável. Aquela foi a última vez que as duas se falaram na viagem inteira. Rin passou a maior parte do tempo com Len ou Meiko. Os irmãos estavam estranhamente distantes. Até a morena comentou a falta de ânimo dos dois.

Deixaram para trás um caminho de pedras e uma árvore ou outra. Abutres voavam por cima de suas cabeças. Eram poucos os animais que sobreviviam ali.

O Ferro Velho era uma península, mas não tiveram que pagar para atravessar o estreito, imposto comum em outras cidades com localização parecida.

E a grande cidade surgiu, com suas torres rasgando as nuvens, fazendo chover. Era escuro, telhas negras, tijolos cor de vinho. As pessoas vestiam preto, como se para se camuflar por entre os becos e ruelas. Mas seus rostos eram felizes, agitados, elétricos.

Era comum que nas periferias as pessoas tentassem vender qualquer porcaria, mas ao mesmo tempo ter escondidas nos casacões pedras valiosas e joias de ouro puro, apenas esperando pelo interesse de algum comprador.

– É por isso que nobres alugam um meio de trasporte qualquer para chegar logo ao centro – entendeu Meiko – Isto aqui é um verdadeiro formigueiro.

– Mas nós, meros mortais, temos que ir andando – riu Rin – Sei quem pode nos ajudar com o relógio. Ou pelo o menos nos dar um lugar para dormir sem pagar.

Ela guiou os outros, orientando-se pela memória. Procurou nas lembranças o último lugar onde os vira. Próximo à um teatro. Mas eles nunca passavam muito tempo em um só lugar.

Entraram em uma rua larga, a calçada tomada por vendedores ambulantes. Len se encolheu, incomodado pela a gritaria. Rin puxou a barra de sua camisa, temendo que ele se perdesse, e indicou-lhe que entrariam em um buraco no chão. Ele se esforçou para ler placa azul com letras brancas. “MERCADO SUBTERRÂNEO 27”.

O buraco era fundo, mas havia uma escada que os levava para o destino. Em alguns degraus dormiam pessoas com cheiro ruim, magras e em posição fetal. Algumas tinhas cachorros cochilando ao seu lado. Os deugraus eram feitos de metal esburacado, e seus passos ressoavam pelo tunel.

As paredes do tunel estavam sujas, e algumas das luzes que iluminavam o caminho haviam sido quebradas ou roubadas. Fora isso, no entando, era uma passagem larga e agradável de se descer.

Quando a escadaria chegou ao fim foi possível ver que se tratava de um mercado de comida. As pessoas, mais preocupadas em mastigar do que em falar, eram mais silenciosas, para a felicidade do louro.

– É melhor que fiquem aqui – disse Rin. Ela parecia se esforçar para escutar algo em especial – Eu vou procurá-los. Volto assim que os encontrar.

Não se importando com o pedido que foi feito, Len fez questão de seguí-la. De início ela não percebeu, mas quando parou de andar de repente, o rapaz esbarrou em suas costas. Rin fingiu raiva, mas segurou sua mão de qualquer jeito.

– Está ouvindo? – a loura perguntou – Essa música de violão?

Len não sabia direito o que era um violão, mas sem dúvidas escutava uma música. Fez que sim com a cabeça, e a menina passou a caminhar com mais calma. Apoiados em uma parede de tijolos, uma dupla de pele e cabelos escuros, os dois tocavam um instrumento que não se parecia em nada com a caixa mágica de Rin.

– Bruno! Clara! – ela chamou.

Os dois pararam o que estavam fazendo, olhos arregalados. Sorriram, surpresos e abriram caminho por entre a multidão.

– Rin! – o homem tirou o chapéu – Rin Casaco Marrom! Há quanto tempo!

– Como cresceu! – a moça a examinou dos pés à cabeça – Agora só precisa colocar um pouco de carne nesses ossos.

– Estou trabalhando nisso, juro – e estava mesmo, Len sabia. Porém os treinos lhe tiravam todo o peso que conseguia ganhar com a nova dieta.

O homem de chapéu coçou a barba do queixo, olhando sem disfarçar para o louro.

– E você é... – quis saber. Len não sabia que deveria se apresentar, até que Rin lhe sussurrou um “ele quer saber seu nome”.

– Eu sou o Lendário Senhor das Feras – depois completou – Len.

– Meu nome é Bruno Caçador de Males – apertou a mão do rapaz com firmeza – E aquela é Clara, a Intérprete de Cartas.

– Eu vejo o futuro – ela endireitou o colar de bronze com pedras falsas – Posso ver o seu, se quiser.

Rin a acotovelou.

– Não nuble a cabeça dele com mentiras.

– Mentiras? – ofendeu-se – Só porque não acredita, não quer dizer que não seja verdade.

– Não quero interromper a conversa – começou o de chapéu –, mas Rin deve estar aqui por uma razão. E essa razão provavelmente não é ver o futuro. Estou certo?

– Sim, perfeitamente – ela limpou a garganta, mas o homem a interrompeu novamente.

– Se quiserem passar uma temporada em nossa casa, são bem vindos.

A menina soltou um “ah” e olhou de relance para Len. Ele sabia o porquê. Ela estava se sentindo culpada pelo número de pessoas que trazia consigo e pelo o fato de que a dupla não poderia voltar atrás com a oferta. Não esperava que seria tão fácil.

– Sobre isso... – coçou a cabeça – Somos seis...

Era evidente que os dois não haviam gostado da revelação. Fizeram uma rápida careta que não pôde ser ocultada. Olharam de relance um para o outro.

– Bem – foi a moça do colar que quebrou o silêncio – Acho que ainda assim podem ficar. Mas infelizmente não temos condições de alimentá-los, sabe disso. Quase não podemos alimentar a nós mesmos. Terão de conseguir a própria comida.

– É mais do que suficiente – garantiu Rin, em um gesto de agradecimento – Providenciaremos nosso próprio alimento. E posso dormir na mesma cama que Len, se isso for otimizar o espaço disponível.

Os dois assentiram em colocaram os instrumentos em sacolas especiais. Len cheirou o ar, e percebeu que ambos cheiravam a pimenta e nozes. Tinham marcas estranhas nos braços e pescoços. Rin lhe disse que eram tatuagens, e que ficariam lá para sempre. Até o homem usava uma pedra pendurada na orelha. O louro se perguntou se ele não tinha medo que a puxassem em uma luta.

Os quatro caminharam pelo o mesmo percurso pelo qual a dupla viera. A loura conversava casualmente com o Homem do Chapéu e a Moça do Colar, ambos os lados colocando as novidades em dia.

Len escutava histórias repetidas por parte de Rin. Havia pouco tempo, pediu para que ela lhe contasse um pouco de seu passado. Dissera-lhe que havia passado a infancia em uma casa cheia de outras crianças sem pais. Dissera-lhe que havia estado em muitos lugares diferentes, havia conhecido muitas pessoas interessantes, havia aprendido várias coisas importantes.

Gostaria de ter vivido algumas dessas experiências também, em vez de ser trancado em uma caixa gigante, que ainda o aterrorizava em sua mente e pesadelos, fazendo-o acordar no meio da noite, suado e resfolegando. Embora odiasse admitir, era comum que fizesse xixi na cama.

Rin o ajudava a limpar, agora que passava algumas noites ao seu lado. Na primeira vez, enquanto lavavam os lençóis, perguntou o que o havia assustado tanto nos sonhos. Len tentou explicar da maneira que menos o fizesse parecer um bebê medroso, na tentativa de salvar o restinho de seu orgulho. Sem sucesso, acabou tropeçando nas palavras, sem saber direito por onde começar. Nunca teve tanta vergonha na vida.

Mas quando o episódio se repetiu por mais duas vezes (que a menina tenha presenciado), ele pôde perceber que ela estava ficando preocupada. Por isso, decidiu tentar manter a calma e tentar mais uma vez relatar o que lhe perturbava no sono. Rin não podia fazer muito além de abraçá-lo.

Assim que avistaram os outros quatro, Rin os apresentou, agradecendo mais uma vez a hospitalidade. A nova dupla os levou para um lugar distante de onde estavam. Foram obrigados a subir mais escadas, atravessar pontes e se meter no meio de multidões.

Por fim, chegaram a um verdadeiro cone gigante de casinhas empilhadas uma em cima das outras. Len não sabia listar todos os materiais de que eram feitas (havia de todos os tipos), mas até onde foi capaz de perceber, eram construídas com tijolos, madeira, pedra e metal. A tinta era velha, e as cores, desbotadas. Pórem, era fácil de diferenciar o lilás, laranja, verde, amarelo, azul e vermelho.

Eram empilhadas de modo que a casa superior tomasse a metade da casa inferior. Tinha que olhar para cima para enxergar a ponta do cone. Não era mais uma casinha, e sim o que parecia um observatório de metal.

– Tem um mercado lá em cima – informou a Moça do Colar – Facilita nossas vidas.

A casinha que lhes era destinada ficava mais ou menos no meio do monte. Tiveram que escalar pedras e subir escadas de madeira. Quando finalmente chegaram à uma moradia laranja com porta preta, o Homem do Chapéu a destrancou com uma chave dourada, revelando uma sala fundida com uma cozinha suja.

A iluminação era constituída de velas. Nenhuma lanterna estava a vista. Não havia sofá, apenas uma mesa de madeira no centro. Mas o que realmente impressionou Len foi a desordem caótica do lugar. Ele não era um mestre da limpeza, mas o estado da sala faria qualquer um acreditar que sim.

O cheiro de mofo e comida velha invadiu suas narinas e por um momento achou que fosse perder o equilíbrio. Ficou feliz ao ouvir um deles dizer que os quartos onde ficariam seriam menos entulhados.

Os cômodos era pequenos, e alguém teria que dividir a cama com outra pessoa mesmo se Rin não tivesse oferecido. O quarto era cheio de caixas empoeiradas e não tinha janelas, mas o cheiro era mais suave. As paredes improvisadas eram de madeira. Finas, permitiam que a pessoa ouvisse qualquer conversa na casa.

Rin pôs a vela em uma das caixas. Len deitou-se no saco de dormir e tirou as botas e a jaqueta. Todos estavam exaustos pela viagem, e ele tinha certeza que dormir seria a primeira coisa que fariam. Mas a menina o surpeendeu quando disse que estava de saída.

– São meus amigos – sussurou, para que ninguém ouvisse –, mas nada disto sai de graça. Sempre se ganha mais dinheiro com mais gente tocando – endireitou o acordeom – Esta noite, vamos examinar o relógio. Ver o que podemos fazer.

Len a viu sair do quarto e ouviu seus passos se afastarem, em conjunto com os passos dos outros dois. Tirou a camisa amarela, remendada com vários pontos de costura, e tratou de dormir um pouco, enrolado em cobertores que coçavam e pinicavam.

Não teve pesadelos. Seus sonhos foram sons e cheiros, mas nenhuma imagem. Sons de água em um rio, cheiro de leite.

A sensação foi de que havia passado apenas alguns minutos dormindo, mas Rin jurou que haviam se passado mais ou menos três horas. Ela o acordara com o velho truque de fazer cocégas em seus pés.

– Vamos? – questionou, ele ainda estava grogue de sono – Os guardas já devem estar sonolentos.

Quem deve estar sonolenta é você, a repreendeu na própria mente enquanto se vestia, não descansou nem por um minuto.

O mundo lá fora estava frio. Os ventos penetravam na carne e se escondiam nos ossos. Len soltou os cabelos, protegendo as orelhas e o pescoço. Começou a choviscar quando os dois haviam acabado de chegar ao centro da cidade. Rin os cobriu com um guarda-chuva preto.

Era tarde, quase ninguém permanecia nas ruas. As únicas almas vivas à vista eram de homens que andavam, cheiravam e falavam engraçado.

– Teríamos ganho mais dinheiro se tivéssemos saído mais cedo – Rin lhe contou a história de como tiveram que atravessar quase toda a cidade para ganhar alguns trocados – Mas o frio não ajudou. A maioria das pessoas foi para casa.

Len observou as rachaduras no chão de pedra. As lojinhas deixavam uma luz fraca acesa para que os pedestre pudessem ver os produtos mesmo com as portas fechadas. Placas de metal que indicavam os nomes das lojas balançavam. Ele imaginou se elas não se soltavam a caíam nas cabeças das pessoas.

Logo o rapaz enxergou, erguendo-se mais alto que os outros edifícios, a ponta de uma torre. Era enorme e escura. Banhados pela luz da lua, corvos festejavam em seu telhado e em seus demônios de pedra, que observavam o chão, mesclando-se à escuridão da construção e fazendo parecer que ela se mexia e gritava.

Teria avistado-a muito mais cedo se não fosse a névoa de chuva que cobria o mundo como uma cortina. Os dois apertaram o passo.

– O Grande Relógio fica neste parque – explicou Rin, fazendo esforço para que a voz vencesse a chuva enquanto passava pelo pequeno muro do jardim.

O louro teria tirado os calçados para sentir a grama na pele, mas a chuva ficava mais forte e a lama se acumulava. A torre, como dissera Rin, ficava no centro do parque, rodeado por árvores com folhas vermelhas e caídas.

– Andemos em silêncio – disse a loura – Não deveríamos estar aqui.

A entrada se resumia em uma porta dupla de madeira grossa. Obviamente, o Grande Relógio não havia sido construído para ser tão famoso, levando em conta seu acabamento pouco elaborado. Por ironia do destino, ele se tornara um simbolo da cidade.

Rin tentou empurrar as portas. Como esperado, trancadas. Olhou ao redor, sua visão caindo em um enorme buraco no canto da porta esquerda.

– Ratos – riu Rin – Enormes.

Ofereceu o guarda chuva para o companheiro. Rastejou, apoiada nos cotovelos. A passagem era grande o suficiente para que ela entrasse, mas não Len. Ele escutou o clique de uma tranca se abrindo, indicando que ele agora podia adentrar na escuridão.

Fechou a porta atrás de si. A única luz existente vinha do buraco de ratos. As pupilas do louro se dilataram ainda mais, acostumando-se ao novo ambiente. Rin acendeu uma lanterna a óleo, o mais longe possível dele, para não incomodar sua visão.

Mas quando a luz revelou os arredores, quase saltou para trás de susto.

Havia oito mesas dispostas de modo que formassem uma espécie de retangulo. Em cada uma, jazia dezenas ne instrumentos cirúrgicos, espalhados desordenadamente. Um pequenini pote com água vermelha.

E, ao lado de todas essas coisas, estavam cadáveres humanos. Alguns tinham a pele arrancada, mostrando ossos e tendões. Outros, tinham um corte na barriga, exibindo estômago e outras vísceras.

A mão trêmula da menina obrigou a lanterna a iluminar um quadro negro. Ele estava coberto de desenhos elaborados do corpo humano, com longas explicações os acompanhando.

– É uma escola – entendeu Rin, suspirando de alívio – São corpos de pessoas que já haviam morrido.

A torre era larga o suficiente para separar cada andar em diversos quartos, e a dupla não conseguiu entender porquê não havia uma escada em lugar algum. Até que descobriram uma porta atrás de uma estante cheia de livros de medicina.

Entraram em um quarto cheio de caixas de madeira. No canto, uma escada de metal em espiral subia até desaparecer por uma passagem quadrada no teto de madeira. Rin abriu uma das caixas antes de se dirigir à escada. Encontrou frascos com líquidos que não conhecia (e alguns ratos também). Perdeu o interesse rapidamente.

Foi a primeira a subir na escada enferrujada. Pulou duas vezes, testando se era seguro. Como a estrutura não desmoronou, assumiu que surportaria Len.

Mas quando ele pôs um pé no primeiro degrau, um som de martelo resoou, fazendo com que cobrisse os ouvidos e se ajoelhasse no chão. O ruído parecia estar vindo do teto, mas o rapaz estava muito atordoado para olhar para cima. Ouviu a voz de Rin, mas não entendeu o que dizia.

E o som de martelo se repetiu. Repetiu-se mais onze malditas vezes. Ele contou.

Depois que o som se foi, o mundo nunca lhe pareceu tão silencioso.

– É meia-noite – Rin o acalmou – Não tem com que se preocupar. Foi apenas o relógio.

– Não vejo porquê não devo ficar preocupado – resmungou – É um relógio mau.

– Ele foi feito para a cidade inteira escutar – justificou. Depois um pensamento lhe atingiu – Não vimos nenhum guarda até agora.

Len deu de ombros, subindo os degraus até ficar ao lado dela.

– Isto é muito estranho – insistiu.

Mesmo assim, os dois foram a caminho da passagem no teto. Era uma escada perigosa, por isso foram devagar. E Len sentiu um cheiro forte. Vinha de algum lugar perto das caixas. Parou, segurando a mão de Rin.

A menina fez um gesto que indicava que era melhor que descessem de novo. Mas não houve tempo para isso. No momento que Rin iluminou o local de onde vinha o cheiro, um pedaço de metal já havia golpeado a escada, que rangeu e cedeu, fazendo os dois caírem no chão.

A lanterna se apagou, e só o que podiam usar para se guiar era a luz de carvão queimado originada da coisa que os atacara.

Deveria ter o dobro do tamanho de Len e cinco vezes o seu peso. Era feito de metal e lata velhos. Pelo o que se via, deveria ser uma fornalha por dentro. Fumaça e foligem lhe escapavam por qualquer orifício que possuía. As únicas coisas que o faziam parecer humano eram os enormes e pesados braços, a pequenina cabeça, com olhos vazados para ficarem vermelhos com o fogo, e as pernas finas.

Seu braço produziu o terrível som de metal se arrastando contra metal. Estava claro que seu alvo era Len. A sala era pequena, não havia para onde correr, por isso ele teve que segurar o golpe. O impacto quase o derrubou, e o montinho de metal continuou colocando força no braço, tornando as coisas mais difíceis. Se não fosse capaz de superar sua força, seria esmagado.

As botas escorregavam. Devia tê-las tirado quando teve a chance.

O cheiro de fumaça o fez tossir e lacrimejar, invadindo seus pulmões e olhos. Empurrou o braço, que empurrou de volta com o dobro da força. Não estava em uma boa situação.

E a pequena queda de braço que travava o fez esquecer completamente que o monte de metal tinha outro braço. Nem foi capaz de saber o que lhe atingiu quando foi jogado contra a parede, a parte direita de seu corpo latejando.

Tossiu, sem ar. Assim que levantou-se, mais um golpe o fez cair no chão. E esse golpe foi seguido de outro e mais outro. Não conseguia se defender e sabia que, se continuasse assim, perderia a consciência em pouco tempo. A dor o deixou incapaz de fazer qualquer coisa.

E, de repente, os ataques cessaram. Os movimentos do monte de metal tornaram-se mais lentos. Havia algo presso entre suas rodas com dentes.

Len viu, com seus olhos ardendo e visão turva, Rin segurando um bastão de madeira de modo que ele prendesse a parte de dentro do inimigo. O som de madeira quebrando, porém, indicava que isso duraria pouco.

Len cambaleou até a menina. Não percebera que sua boca e nariz sangravam até que viu seu sangue pingar no chão, mais vermelho que a luz que saía do monte de metal.

– Vamos – puxou Rin pelo casaco – Vamos embora, Rin.

– Não posso – ela fechou os olhos. Não era possível enxergar com tanta fumaça – Se eu soltar o bastão, ele vai voltar a atacar.

E nem precisou soltar. O objeto se partiu em dois, não suportando o fogo e a pressão. O monte de metal se virou. Seu alvo era outro dessa vez.

Len empurrou a menina, tirou as botas e pulou no inimigo. O calor era forte, mas não o suficiente para queimar. Tentou socar cravar as unhas na carapaça de metal, mas a máquina não sentia dor. Tudo o que conseguiu foi uma mão sangrando.

A próxima coisa que sabia era que o puxaram e o jogaram no chão mais uma vez, mas agora com as costas para cima, o rosto pressionado contra o piso. Viu o braço erguendo-se mais uma vez. Fechou os olhos.

Rin procurava mais alguma coisa que pudesse parar a máquina mais uma vez. Suas mãos trêmulas tatearam o chão com afinco, mas de nada adiantou. Olhou para a luta novamente. A máquina o empurrava para baixo, sufocando-o. Ele tentava se libertar.

Len morreria se não fizesse nada.

Len morreria.

Guarde seu desespero para quando ele for útil. Quase pôde ouvir a voz de Neru em sua cabeça.

– Já entendi, já entendi! – repetiu. Entendera mesmo?

Respirou fundo o ar pesado.

Quem era seu inimigo? Uma máquina.

O que mantém vivo? Carvão queimando.

Ponto fraco? Água.

Levantou-se. Sabia o que fazer.

Correu até a outra sala. Pegou um dos potinhos com água ensanguentada da aula de medicina. Era perfeito para chamar a atenção da coisa. Guiada pela luz da lua que vazava do buraco de ratos, voltou para a outra sala. Sabia que Len não estava morto, já havia mudado de posição, mas ainda era espancado com crueldade.

Rin não conseguiu mirar direito, porque o inimigo se movia demais. Jogou o recipiente da melhor maneira que pôde, para sua satisfação, atingiu a fornalha interna da máquina. Parte das chamas se apagaram, o carvão, molhado.

O monte de metal virou-se mais uma vez, e a menina quase pôde jurar que seus olhos vermelhos observavam sua alma.

– Vem me pegar – provocou, mesmo sabendo que o monte de metal não a ouviria de verdade.

A máquina deixou Len em paz. O rapaz não tinha certeza se conseguia se levantar.

Rin percebeu que seu inimigo se movia mais rápido do que aparentava ser capaz. Não precisou esperá-lo, como acreditara que precisaria. Correu, atravessou mais uma vez a outra sala, dessa vez mais rápido do que nunca. Abrir a porta a atrasaria, por isso rastejou mais uma vez pelo buraco.

Agradeceu aos céus que ainda chovia lá fora. Na verdade, a chuva era torrencial. Não via nada mais além de seus braços esticados. Parou de correr e virou o corpo, para ver o que acontecia. A porta dupla havia sido quebrada, mas não havia mais nenhuma máquina a perseguindo ferozmente.

Seu plano havia funcionado.

A chuva apagou o resto das chamas da máquina. Seus movimentos aos poucos foram tornando-se mais lentos, mais lentos. Conseguiu chegar até poucos centímetros de distancia da menina, mas o sistema entrou em colapso pela água. E lá ficou, parado com uma estátua.

Rin observou um símbolo de metal que havia sido grudado no peito do guarda. O brasão da cidade.

Suspirou, aliviada. A próxima coisa que lhe veio a mente foi Len. Quando entrou mais uma vez na torre, o encontrou apoiando-se nas mesas de corpos, com as botas nas mãos. Ela o acalentou e ofereceu apoio para andar.

Estava claro que não conseguiriam obter o sino naquela noite. Tampouco descobriram algo de útil. Mas Len estava vivo, e isso era o suficiente para alegrar a menina.

Olhou para trás uma última vez antes de serem engolidos pela água que caía das nuvens. Viu diversos olhinhos vermelhos que penetravam na alma.

Acho que vou precisar de uma espada maior.


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Notas finais do capítulo

SteamPunk