As Aventuras de Rin Casaco Marrom escrita por Sem Nome


Capítulo 20
Capítulo 20


Notas iniciais do capítulo

Capítulo 20 :3



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/385034/chapter/20

Capítulo 20

Aquele com o arqueiro.

.

Quantas coisas já se passaram.

Quantas coisas já fizemos.

Mas agora, veja só.

Temos um novo terreno.

.

O novo pedido não será fácil.

Precisará de mais alguém.

Me responda uma coisa, Rin.

Que gosto seu sangue tem?

.

Eles são grandes.

E eles são muitos.

Tantos os gigantes.

Quanto os insetos imundos.

.

Como o próximo pedido.

Quero uma simples folha.

Da maior árvore do mundo.

.

Rin soltou a respiração, repetindo o novo pedido do não livro dezenas de vezes na própria mente. Dessa vez sabia exatamente para onde ir. Na verdade, qualquer pessoa no mundo saberia para onde ir.

Floresta dos Gigantes, a maior floresta do mundo. Não em extensão, mas em... tamanho.

Já estavam longe dos Desertos Gelados, em um pequeno amontoado de casinhas. Estavam acampados no celeiro de um fazendeiro, em troca de fazer a colheita do dia por ele.

Abandonaram os desertos por três motivos: um, não queriam estar em nenhum lugar perto daqueles religiosos radicais. Dois, a cidade, como dissera Meiko, era muito cara, e até uma garrafa de leite custava o mesmo que uma refeição quente em locais normais. E três, os funcionários do dono do hotel receberam o aumento e voltaram ao trabalho.

A menina observou as estrelas pela pequena janelinha do celeiro. Uma coisa que percebeu desde a primeira vez que passou a noite em cidades pequenas é que as estrelas eram sempre mais brilhantes e numerosas do que nos grandes povoados. Só depois ficou sabendo que era devido à total escuridão noturna que deixava as estrelas brilharem por si só, coisa que nas cidades grandes não ocorria, com todos seus postes de iluminação ligados a todo momento.

Seus braços estavam doloridos pelo trabalho e o monte de feno no qual estava deitada pinicava e coçava, mas estava tão cansada que não demoraria para dormir naquela noite. Além do mais, o sempre presente cheiro de vacas e galinhas, por mais nauseantes que pudessem ser, trazia uma certa sensação de paz e conforto para Rin.

O único que não havia trabalhado naquele dia era Len, cujo braço estava imobilizado e enfaixado.

– É nessas horas que eu queria que Luka tivesse juntado-se a nós – bocejou.

– Falou comigo? – Miku virou-se para encará-la de seu monte de feno.

– Não, só estava pensando alto – esclareceu, sussurrando para não acordar os outros – Achava que todos estavam dormindo.

A esverdeada deu de ombros, mas antes que pudesse voltar à sua posição inicial, Rin voltou a falar.

– Miku, pode me dizer o motivo de você de repente decidirem juntar-se a nós?

– Quer dizer que não confia em mim e em meu irmão? – mesmo estando escuro, Rin pôde ver o ultraje no rosto de Miku. E talvez até um pouco de raiva.

– Confio – disse a menina, mas logo depois se corrigiu – Quer dizer, não totalmente... Mas não pode me culpar. Achava que nos odiavam, mas quando disseram que queriam vir conosco fiquei só um pouco... confusa, vamos dizer assim.

– Bem, para falar a verdade – Miku tinha que inventar uma desculpa convincente, e rápido – Eu a invejo, Rin. Não sabe quanta sorte tem? Você parece saber sobre tudo! Já foi para tantos lugares, viu tantas coisas, conheceu tantas pessoas! E eu? Nunca saí daquela maldita ilha, esó o que fiz foi roubar e observar novas rachaduras se formarem em minha parede.

– Então por que simplesmente não foi embora? – essa era uma das coisas nas pessoas que confundia (para não dizer irritava) Rin. Querem e podem fazer algo, mas nunca fazem, mesmo que nada as estejam prendendo.

– Muitas vezes pensei em fazer isso – continuou – Mas como? Não sei nada sobre nada. Então pensei: “O melhor modo de começar é acompanhando um especialista”. Kaito não queria vir, mas eu lhe disse que partiria com ou sem ele, e ele cedeu. E aqui estamos.

– Você já não havia pensado nos perigos que passaria? – Rin impressionou-se com a coragem de Miku.

– Quem tem medo de cair não aprende a andar – salientou a esverdeada.

A loura se aconchegou o melhor que pôde no feno, pensando se deveria ou não agradecer pelo fato de Miku invejá-la, mas a mesma falou primeiro.

– Escute – acrescentou – Sei que só nos deixou acompanhá-los por causa das habilidades de kaito. Mas eu ainda me provarei útil. Você verá.

A menina não podia negar a verdade naquelas palavras. O dom de Kaito poderia ser de grande ajuda, e se Miku tivesse se oferecido sozinha, haveria uma grande chance de Rin não ter aceitado a oferta.

Mas ficou feliz em saber que a esverdeada se esforçaria para ajudá-los de algum modo.

Com esses pensamentos felizes, fechou os olhos e deixou o sono dominá-la.

. . .

– Vamos precisar de um arqueiro.

Rin esperou até que estivessem na estrada de terra, andando sem rumo, para contar a novidade.

– O que? – Kaito arqueou uma sobrancelha – Por que?

– Porque na Floresta dos Gigantes existem insetos do tamanho de um homem que podem sugar todo o seu sangue, e é melhor matá-los ainda no céu com uma flecha do que cara a cara com uma espada – Mordeu a parte de dentro da boca – E o não livro disse que precisaríamos de mais alguém.

– E você acha que alguém vai aceitar nos ajudar sem motivo algum? – insitiu Kaito.

– Vou oferecer uma recompensa – a menina observava as pegadas de animais e pessoas na terra batida.

– E onde encontraremos um arqueiro? – dessa vez foi Meiko quem perguntou.

– Deve estar havendo algum campeonato em alguma cidade grand... – ela deixou a frase inacabada, pois um insetinho pousou em seu pescoço, e a assustou – Como os insetos deste lugar são estranhos – observou depois de afastá-lo. De fato, ele parecia mais uma bolinha de fumaça preta do que um besouro.

Balançou a cabeça e tentou lembrar onde havia parado.

– É melhor irmos para uma cidade do sul, sabe. Eles têm costume de realizar campeonatos de tiros – a loura começava a perceber o quão difícil seria conseguir ajuda de um arqueiro depois de informá-lo o destino.

– Como quiser, líder – Meiko deu uma risada e desarrumou os cabelos de Rin.

– Líder? – assustou-se.

– Você tem boas ideias, sabe se comunicar direito, e foi quem nos meteu nesta bagunça – explicou a morena – Ou seja, líder.

Foi com certo desespero que Rin percebeu que ninguém iria fazer objeção, que aparentemente todos concordavam com a decisão. Engoliu em seco, de repente o peso em suas costas aumentou em cem vezes. Se alguma coisa acontecesse com algum deles, seria tudo culpa dela.

– Eu não concordo com nada disso – disse, mas ou foi baixo demais e nenhum deles escutou, ou todos simplesmente decidiram ignorá-la.

. . .

Rin sentia como se estivesse voltando para o começo de tudo aquilo. As cidades do sul tinham quase as mesmas características, próximas de rios, ruas de pedras cinza, pessoas educadas.

– Estamos perto da minha casa, não? – Meiko observava a conhecida paísagem pela janela do trêm.

– E perto da Cidade dos Peixes do Sul – lembrou Rin, mesmo sabendo que iriam para as Terras dos Ursos – Vocês já assistiram à um campeonato de arco e flecha?

– Como poderíamos? – Miku respondeu, sem tirar os olhos da janela – Nada de interessante acontecia na nossa cidade natal.

– Acho que vão gostar – disse a menina – Não pelo campeonato em si, mas pela comida grátis. Eles adoram frutas.

Não demoraria muito para o trêm parar na estação mais próxima. Não era dentro da Terra dos Ursos, mas bem próximo, e ainda poderiam comprar doces na loja da estação.

Rin distraiu-se com o velho yo-yo e jogando conversa fora com Meiko. Len tentou encontrar um lugar confortável em seu ombro magro, mas acabou desistindo e apoiou a cabeça no banco do trêm.

Eventualmente, um forte apito soou, indicando que a viagem havia acabado. Rin saltou do trêm e apontou para um pedaço de terra próximo a um rio. Era difícil de ver, pois o sol já estava se pondo, mas em compensação, criava uma bela mistura de laranja e roxo.

– Logo ali – apontou para as casinhas refletidas no rio – Vocês vão ver, é um lugar bem bonito.

As coisas não pareciam ter mudado muito desde a última vez que viera pela última vez. A mesma grama alta que ondulava com o vento como se fosse água verde, as mesmas casinhas de pedras cinzas e telhados que chegavam quase até o chão, as mesmas mansões com trepadeiras bem cuidadas enfeitando as paredes, o mesmo castelo que podia ser visto em qualquer ponto.

– É só andar por esse caminho – referiu-se a estrada ampla de terra –, falar com o duende, passar pela ponte e estamos lá.

– Duende? – Miku coçou a cabeça.

– É, ele serve como cão de guarda – explicou Rin, esperando Meiko voltar da lojinha da estação com os doces – Ele sabe se você é um fora-da-lei – ela viu os dois irmãos empalidecerem, por isso acrescentou –, mas não serve para nada, porque é fácil de subornar.

Assim que a morena retornou com o saco de doces, Rin pediu para que lhe entregasse o saco de balinhas coloridas e, durante quase todo o caminho, se dedicou à separar as balas verdes do resto. Mesmo o por-do-sol estar encantador devido à falta de árvores ao redor, ela não tirou os olhos da tarefa.

E foi mais ou menos na hora que chegaram à grande ponte de pedra que ela fechou o pacote cheio de balas verdes. A ponte tinha postes iluminados, para não ficar na completa escuridão noturna, e nesses postes, um pouco acima, havia os estandartes verdes com o brasão da cidade, uma cabeça de urso preta, com a boca aberta e dentes à mostra.

Foi só colocar um pé na ponte, que foi possível escutar passinhos apressados e agitados.

– Minha nossa, olha a hora! – resmungou uma vozinha rouca e ao mesmo tempo fina, se é que isso era possível – Será que não poderiam ter chegado mais cedo?!

O brilho dos postes revelaram, assim que este saiu de baixo da ponte, um homenzinho corcunda, de olhos pequeninos e pretos, mais parecidos com bolinhas de gude, nariz maior que o rosto, dentes quebrados e amarelados. O macacão estava rasgado e surrado e não usava calçados, revelando as unhas grandes tão amareladas quanto os dentes.

Olhou para o grupo de cima para baixo, mostrando-se insatisfeito com o que via. Mas mais insatisfeito ainda ainda quando deu uma boa olhada em Rin.

– Você – apontou para a menina – Você abriu a gaiola da porca que seria a principal refeição do dia da Deusa da Caça quatro anos atrás.

– Ela tinha filhotes – Rin deu de ombros, imaginando a vida feliz que a porca e os porquinhos deveriam estar vivendo agora – A Deusa da Caça deve ter achado hilário. Você ainda não está magoado com isso, está, Duende?

Duente fez uma careta e cuspiu no chão.

– Para sua sorte, isso não faz de você uma criminosa, ainda que aquela noite na cadeia tenha sido merecida – disse ele, tirando um carrapato de dentro do chapéu vermelho que usava –, portanto, não posso impedir que siga seu caminho, muito embora quisesse – Pôs-se a mastigar o carrapato, e olhou para os outros – Agora vejamos o que trouxe com você.

O homenzinho jogou-se de cara no chão, e com as mãos e pés, rastejou até as botas de Kaito. Cheirou a bota esquerda como quem sente o aroma de uma flor das mais perfumadas e, mesmo quando o azulado balançou o pé, na esperança de o duente largá-lo, o bichinho manteve-se firme.

Quando acabou seu importante ritual, Duende encarou Rin com um misto de vitória e antipatia no olhar.

– Ladrão – declarou, saboreando cada sílaba – Não pode entrar.

Ele passou para a próxima da fila, Miku. Ela pareceu ainda mais incomodada com a criaturinha presa ao seu pé, mas não tentou afastá-lo, já sabendo ser inútil.

– Ladra – repetiu, ainda mais feliz – Não pode entrar.

Foi só quando Duende passou para as botas de Len, que Rin percebeu o erro que cometeu em não trazer mais balinhas coloridas. Ela havia esquecido totalmente o fato de ele ter matado sabe-se lá quantas pessoas no passado. Só podia esperar que Duende reconhecesse o fato de o rapaz não ter feito nada daquilo de propósito.

– Olha só, que maravilha – pelo o visto ele não perdoou – Assassino. Não tem jeito de um assassino entrar na nossa bela e justa cidade.

Rin xingou em silêncio, pensando no que mais poderia dar ao duende para que autorizasse a entrada de Len. Mas pelo o menos Meiko entraria de graça.

Ou pelo o menos era isso que ela pensava.

Os punhos da morena se fecharam com força quando a coisa começou a cheirar sua bota. Nunca teve tanta vontade de pisar em alguém.

Bem, na verdade, teve.

– Parece que você tem um péssimo gosto para amigos – o homenzinho parecia apenas dirigir a palavra à Rin – Assassina. Desculpe-me terá que continuar sozinha.

– Como? – os olhos de Rin se arregalaram – Assassina? De jeito nenhum! Você deve ter cometido um erro!

– Foi exatamente isso que os médicos disseram para sua mãe quando você nasceu! Escute, eu não cometo erros, e é melhor esse bando de criminosos darem meia volta agora! – Rin teria perfurado aquela criatura nojenta com a espada pela piadinha envolvendo sua mãe desconhecida (era um de seus pontos fracos) se não estivesse tão pasma com a revelação.

– Assassina? – tentou ler alguma coisa nos olhos de Meiko, mas só o que pode ver foi um “explicarei mais tarde” – Assassina de pessoas?

– De pessoas bem humanas – emendou Duende.

Kaito e Miku entreolharam-se. Poderiam cortar a tensão com uma faca de manteiga se quisessem. Len não pareceu se importar (quem era ele para julgar?).

– Aqui – suspirou a loura, abrindo o pacote de doces verdes – Deixe-os passar, e eu lhe darei isto.

– Hum... – Duende coçou o queixo – Eu não costumo aceitar suborno mas... que proposta tentadora...

Em um rápido movimento, arrancou o saco das mãos de Rin e deixou os irmãos passarem.

– Isto paga pelos ladrões – colocou um punhado de doces na boca – E quanto aos assassinos?

A menina passou a mão pelos cabelos, tentando pensar em algo nem muito caro, nem muito barato para dar em troca da passagem de Len e Meiko, mas antes que pudesse chegar à uma resposta, o próprio Duende deu uma sugestão.

– Eu adoro música, sabia?

– Não lhe darei meu acordeom! – adiantou-se.

– Claro que não quero seu acordeom, sua boba! – irritou-se o duende – Quero que toque para mim! O que eu faria com uma coisas dessas? Meus braços nem chegam até as duas extremidades!

Rin bufou, apesar de estar um pouco envergonhada por não perceber que a criaturinha realmente não poderia fazer nada demais com um instrumento com quase seu tamanho.

– Duas músicas.

– Cinco!

– Duas!

– Quatro!

– Três!

Foi a vez de Duende bufar, mas acabou concordando. Três músicas já era o suficiente. Rin disse que os outros podiam seguir em frente, que elas os alcançaria, mas Len decidiu ficar também, para ouvir a caixa mágica.

Rin imaginava quantas vezes mais o acordeom a salvaria.

. . .

– Sua raiva já passou? – Meiko questionou calmamente, bebericando seu copo de vinho diário.

– Não estava com raiva – Rin cruzou os braços – Só estava um pouco perplexa.

A morena deu de ombros. Estavam na cobertura de um pequeno restaurante que vendia basicamente sanduíches e bebidas. Era um lugar agradável, com fotografias antigas e gente feliz. A mesa era grande e caberia mais pessoas nela, porém Meiko disse aos outros que queria desculpar-se com Rin por tê-la feito tocar para aquele bichinho asqueroso.

– Ainda é minha amiga? – quis saber Meiko, e o silêncio da outra não a deixou feliz – Devo lembrá-la que Len muito provavelmente matou muito mais do que eu, e isso não a impediu de beijá-lo – e riu um pouco – Não que eu queira beijá-la. Você é bonita, mas não faz meu tipo.

– Não foi culpa dele – ela ignorou a última parte – Não sabia o que estava fazendo

– Veja que bom – a moça mais velha cantou vitória – Eu também não sabia. Tinha uns oito ou nove anos, na verdade. E não fui eu que matei. Foi o fogo – a última parte foi sussurrada, como se ela estivesse falando consigo mesma – O fogo me protegeu pela primeira vez.

Rin ergueu as sobrancelhas, intrigada.

– Quem você matou? Colegas de brincadeiras?

– Claro que não – outro gole – Se esse fosse o caso, não teria me perdoado tão rápido. Não, quem eu matei, talvez até merecesse morrer.

A menina se apoiou os cotovelos na mesa, indicando que queria ouvir o resto. A outra suspirou.

– Muito bem, mas não me peça para repetir – esticou as pernas e fechou os olhos, pensando por onde deveria começar – Eu tinha uns oito ou nove anos, como disse. Havia fugido de casa, mas não toda aquela história de fugir de casa e me esconder na casinha do cachorro, se é isso que está pensando. Não mesmo. Já havia me afastado quilômetros e quilômetros do meu antigo lar. Tinha joias comigo, trocava por comida e lugar para dormir.

Ela parou e olhou para a lua lá em cima.

– Eu então cheguei em uma cidade do litoral. Tinha um porto lá. Planejava comer peixe, lembro claramente. Tudo parecia muito bem – continuou depois do que pareceu minutos – Mas eu não sabia que era um ponto de chegada de escravos. Talvez eu não tivesse ficado muito abalada se não estivessem fazendo nada. Mas estavam fazendo um deles dançar, com chicotes. Naquela época já tinha as espadas, ganhei-as de presente na idade em que meninas normais ganham bonecas. Me senti poderosa e o mandei parar - riu, como se estivesse contando uma história de outra pessoa - Não era a única que tinha espadas, pode ter certeza.

Rin queria parar de olhar para o rosto de Meiko, mas não conseguiu.

– Eu não sei o que estavam planejando fazer comigo – o tom de sua voz era sombrio, e sua expressão também – Matar-me, torturar-me ou vender-me como escrava também. Eu não sei. Graças aos deuses que nunca descobri. Só sei que lutei. E lutei bem, até. Ganhei isto - apontou para uma cicatriz pequenina no pescoço - Ia perder, de qualquer modo. Eram muitos, e perder muito sangue não exatamente ajuda. Acho que apaguei, ou talvez não, foi tudo muito confuso depois. Estava rodeada de corpos queimados no minuto seguinte. É isso, rápido, fácil. Foi a primeira vez que as espadas pegaram fogo, mas ele não se distribuiu do jeito que deveria, e pareceram mais uma piada do que armas ameaçadoras. E foi a primeira vez que consegui incendiar algo vivo.

Parou, encarando a mais nova, mas esta não disse nada.

– Os escravos foram bons comigo. Alguns cuidaram dos cortes. Deram-me uma casa por um tempo, nas cabanas que construíram depois. Não nos falamos mais, uma pena.

A menina engoliu em seco, e sem saber o que fazer, pegou na mão de Meiko. Estava quentinha comparado com a sua fria.

– Meiko – chamou atenção – Por que fugiu de casa?

– Isso é uma história para outra noite. Por hora, absorva esta última por inteiro – colocou uma rolha no vinho – Prometo que lhe contarei toda minha vida, mas são episódios que exigem intervalos.

Rin balançou a cabeça, sem pedir de novo.

– Então – a morena achou que seria uma boa hora para descontrair o ambiente entre as duas – Mereço um beijinho?

. . .

Haviam se passado duas semanas. O torneio de arco e flecha não durava mais que uma tarde, e as pessoas da cidade inteira se amontoavam para presenciar os arqueiros tentarem fazer com que suas flechas acertassem o alvo. Ricos e pobres, negros e brancos, todos juntos para torcer para seu arqueiro favorito.

O grupo mais uma vez teve que conseguir trabalho, mas o torneio, enfeitado e divertido compensava tudo.

Qualquer um podia inscrever-se, mas o público era exigente e atirava frutas e vegetais nos inexperientes, então novatos eram raros. Mas o prêmio era um troféu de ouro puro, que quem ganhasse podia manter, ou derreter o ouro para fazer outra coisa, por isso era concorrido.

Havia todos os tipos de provas no campeonato. Alvos em movimento, pular e atirar, flechas de fogo, três flechas de uma só vez, atirar com vento forte, e até atirar de cabeça para baixo.

As pessoas batiam palmas e gritavam, vaiavam e jogavam coisas, comiam e dançavam. O rei e a rainha observavam tudo de camarote, ao seu lado, os ursos gigantes reais de estimação.

Kaito e Meiko mal se importaram com a revelação de Meiko, só perguntaram se era seguro ficar perto dela, e quando a resposta foi positiva, nem questionaram. Agora comiam o quanto podiam, e ainda guardavam uma quantidade generosa para mais tarde. Em um dado momento, até viram Duende correndo por entre as pessoas, ainda comendo doces.

Rin só pegou uma laranja para comer, prestando bastante atenção nos arqueiros e suas atitudes. Chegaram bem cedo para ocupar um bom lugar na arquibancada. Aquele que mais se destacava era também o que mais se gabava e menosprezava os outros. A menina não queria nem pensar na possíbilidade de ter que pedir sua ajuda e, se tivesse mesmo que fazê-lo torceria para que não aceitasse.

Odiaria ter que confiar sua vida à um homem daqueles.

O único problema era que ele era extremamente habilidoso com o arco, e parecia brincar com as flechas do mesmo modo que uma criança brinca com seu boneco favorito. Fazia os outros parecerem pequenos e desajeitados. Nem mesmo a chuva fina e constante era capaz de o atrapalhar.

– Maldição – murmurou.

– Eu sei – Meiko concordou – Ele é orgulhoso demais, e quando eu falo uma coisa dessas...

Mais uma prova, mais uma vez o homem se destacou. Mais elogios a si mesmo, e como ninguém era pário para ele, como era o melhor arqueiro do mundo. E o pior é que o público gritava em concordância, alimentando o ego do homem.

– O campeonato está quase acabando – Rin roía as unhas, enquanto olhava para o sol quase se pondo – Precisamos de um milagre!

Nesse momento, o público calou-se. A menina não entendeu o motivo no começo, mas então avistou uma figura atravessar o campo dos arqueiros lentamente. Estava usando uma capa de chuva, por isso Rin não conseguiu ver como era. Levava um arco consigo, por isso imaginou que fosse um competidor.

– Como?! – o narrador do campeonato exclamou depois de o arqueiro ter falado alguma coisa para ele – Você quer participar?! Agora?!

O público segurou a risada.

– Garoto, não acho que possa vencer à essas alturas! – riu o narrador com sua voz grossa e alta de sempre – Na verdade, acho que não poderia vencer de qualquer modo! Como?! Quer tentar de qualquer modo?! Muito bem, se quer comer sopa de tomate no jantar! Diga seu nome, meu jovem! Não para mim! Para o povo!

O rapaz lentamente tirou a capa e, para a surpresa de todos, longos cabelos louros caíram como uma cascata até as costas de uma menina com os olhos mais dourados que Rin já havia visto.

– Neru, meu nome é Neru! – declarou, com bastante orgulho – Apenas Neru!

Ela tirou a capa de chuva, e mostrou-se adequadamente vestida para o campeonato. Mas o público ainda não acreditava que a moça poderia vencer, cochichavam e riam.

– Pelos deuses, meu bom homem! – o arqueiro do ego enorme chamou o juiz e narrador, apesar de estar na verdade dialogando com toda a plateia, rindo e ironizando – Por que deixou que uma moça delicada com essa competisse?! Seus dedos não devem conhecer nada mais que veludo fino! Poupe-a da humilhação que lhe espera, desclassifique-a! Se uma moça dessas me vencer, juro que vendo minha casa e tudo dentro dela!

Neru foi até o homem, com passos que lembraram bastante dos de Meiko, calculados, decididos, elegantes. Olhou para a plateia e, sem mudar de expressão, devolveu o insulto, mas de modo muito mais fino.

– Espero que goste de dormir no chão, meu caro.

Ela nem esperou que o homem terminasse sua última provação, foi até a primeira (a mais simples) e tomou a posição adequada. Respirou fundo e esqueceu de que havia pessoas ao seu redor, desejando mais que tudo no mundo que errasse.

Respirou fundo e pôs a flecha na corda.

Respirou fundo e cantarolou na própria mente uma velha canção que sua mãe costumava cantar para que dormisse.

Respirou fundo e fez o que sabia fazer de melhor.

Não precisou de muito tempo para terminar todas as etapas do campeonato. Não precisou de muito tempo para que suas flechas estivessem todas em seu lugar de honra, no centro do alvo, às vezes sozinhas, às vezes atravessando outras.

Não apenas acertou seus próprios alvos, mas também o de outros arqueiros, só para que o homem do ego engolisse suas palavras. Os outros arqueiros que foram humilhados pelo mesmo agora gritavam e comemoravam, sem se importar com a derrota, desde que o vencedor não fosse aquele que os derrotou.

Eles próprios tiveram o maior prazer em arrancar o troféu das mãos do homem do ego entregá-lo à Neru. Alguns beijavam seu rosto duas vezes e falavam alguma coisa incompreensível, mas que deveria ser um elogio.

Ela recebeu o prêmio com um misto de alegria e estresse, pois sabia muito bem que era o começo de muito trabalho. A plateia, sem importar-se mais com o fato de o arqueiro do ego ter perdido para uma estrangeira qualquer, gritava de excitação.

Rin, quase pulando de alegria, puxou a manga de Meiko, que também mostrou-se impressionada. Até Miku e kaito pararam para ver o que acontecia.

– Ela é perfeita para o trabalho! – saltou para fora da arquibancada quando percebeu que Neru já corria para ir embora, antes mesmo de falar com os reis – Vamos Len, vamos falar com ela!

Milagre tinha um novo nome. E era Neru, apenas Neru.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Mais um integrante forte para o grupo, Neru.A história da Meiko ainda vai ser toda explicada :)