Passaram-se 3 semanas. Talita não conseguiu descobrir se o irmão estava metido naquela história do Guto. Nos últimos dias ele estava bem ocupado com as aulas que antecipou no cursinho. Afinal, ele e Julie ficariam 15 dias sem comparecer ao curso. E Talita estava fazendo as provas finais do 3º bimestre. Estava sozinha em casa, quando o Correio chegou com um pacote enviado pela agência Tourxêntric, endereçada para o irmão. Assinou os papéis que o carteiro lhe entregou e foi pra dentro. Não precisou pensar muito pra decidir abrir o pacote. O mesmo não estava tão bem lacrado. Com uma caneta ela conseguiu abrir o pacote soltando a cola sem deixar nenhum vestígio. Depois fecharia de novo e pronto.

Pareciam instruções para preencher algum formulário pela Internet. Entrou no seu quarto e ligou o notebook. Foi na página indicada e fez conforme pediram. Entrou na página Viagens para o exterior. Depois entrou em Inglaterra e cadastre seu perfil. “Interessante. Pra que alguém vai preencher um questionário antes de viajar?”. Na página do cadastro pediam login e senha. Cada um dos 4 tinha sua própria senha. Ela pegou a sua e entrou pra ver o que era.

1ª parte – nome, idade, estado civil e outros dados pessoais.

2ª parte – questionário

1- O que espera dessa viagem excêntrica?

2- Tem medo de alguma coisa?

3- Está ciente de que o pagamento é adiantado?

4- Está ciente de que poderá deixar o local no momento que quiser e o hotel não devolve pertences esquecidos caso o hóspede o abandone antes da data de partida?

5- Está ciente de que não poderá usar aparelhos elétricos e eletrônicos no hotel?

6- Você prefere eventos noturnos ou diurnos?

Era uma infinidade de perguntas esquisitas. “O que será que o Nicolas está aprontando hein? Essa viagem... sei lá. Tá me parecendo uma furada.” – Talita resmungou. Ela ficou olhando pra tela e pensando no que ia fazer. Decidiu não fazer nada, só ler. Ficou muito intrigada com aquelas perguntas. Então deu uma lida com mais atenção no site. E tinha uma notinha. ‘não é possível alterar as respostas depois de confirmadas’. Ela mordeu os lábios calculando o que isso queria dizer. Um estalo de maldade em sua cabeça com essa ideia “escolher alguns eventos pra cunhadinha? Por que não?”. Talita era a rainha das trapaças. Não tinha consciência pesada porque simplesmente não tinha consciência. Ela agia por impulsos e planos pra conquistar o que queria.

“Vamos ver o que a minha amada cunhadinha vai escolher” – pensou alto e foi ticando algumas opções.

– 3 km de caminhada noturna até o cemitério

– passeio do trem da meia-noite

– Visita ao salão dos ossos

– uma noite no sótão da Madame Rochelle.

“Oras... uns programas sem o Nicolas por perto não vão fazer mal nenhum pra essa garota irritante.”

Ela parou de ticar. Estava morrendo de tédio com aquela programação. “O Nicolas me paga por me obrigar a passar 15 dias nesse lugar ridículo!”. Clicou em confirmar.

Fechou o site e colocou tudo no mesmo envelope, que lacrou de novo. Ficando exatamente como tinha chegado. Levou o envelope até o quarto de Nicolas e pôs sobre a mesinha.

Faltava 1 semana para a viagem. Foi pro seu quarto escolher as coisas que levaria e fazer uma lista do que faltava.

Nicolas andava mais ocupado do que o normal, por isso às vezes nem ia na casa de Julie à noite. Mas teriam muito tempo pra aproveitarem juntos na viagem. E só pretendia ficar os últimos 3 dias fora. Depois disso ele não sabia como seria. Infelizmente, queria muito ir pra essa viagem se divertir e passar momentos especiais com Julie. Já tinha certeza de que seriam um casal muito feliz. Mas queria ter alguma intimidade com ela antes. Claro, se rolasse. Porque até hoje ela tinha conseguido fugir nesses momentos e ele respeitava sua decisão. Não queria que ela ficasse com ele com dúvidas. Mas ele tinha paciência com ela. E tinha outro fato que ocupava muito mais sua mente. Ele queria se vingar. Era uma obsessão. Queria se vingar da pessoa que arruinou sua vida, que matou sua mãe friamente.

Nicolas assim que passou a administrar o dinheiro da herança, há pouco mais de 3 anos, havia contratado os serviços de um investigador. Klaus, era um homem muito discreto, quase nunca era visto com ele. Klaus precisava encontrar o homem de quem Nicolas tanto queria se vingar.

E há alguns meses, Klaus rastreou algumas pistas de que esse homem tinha passagem num povoado perto de Wish, onde dali a 1 semana todos iriam se hospedar. Havia muitas evidências de que esse homem tinha estado lá, e essa era a única pista que tiveram em todos esses anos. Nicolas não tinha dúvida, iria matá-lo. Não importava o que pudesse acontecer. Seu ódio era maior. Era um garoto angustiado e torturado pelas lembranças. Seu padrasto sempre se fez de inocente. Enganou a todos. E Talita nunca descobriu a verdade. Por isso Nicolas a protegia tanto, porque quando ela descobrisse que seu padrasto era um assassino, sofreria muito. Mais do que já sofria por saber que seus pais verdadeiros a rejeitaram.

Pra não surtar com esses pensamentos, que até o levaram a cortar os pulsos quando descobriu a verdade, Nicolas resolveu participar mais dos eventos de RPG. Era algo que o fazia esquecer qualquer problema. E não por coincidência, eles viajariam pra Wish, onde aconteceria o Grande Festival de RPG. Nicolas já tinha comprado suas roupas especiais e na viagem iriam alguns de seus parceiros de jogo. Mas Juliana não podia saber disso antes da viagem, senão era até capaz de se recusar a ir. Ela odiava essa sua paixão pelo jogo. Pensava que ele a trocava por isso. Ela até tinha razão, às vezes realmente trocava. Não podia contar antes da viagem. Depois, com seu charme, daria um jeito dela acalmar. – assim ele pensava.

Ao chegar em casa, Nicolas se deparou com o envelope da agência. Estava ansioso pra ler, então rasgou o envelope de qualquer jeito e nem percebeu se o mesmo estava alterado. Ele gostou de tudo, das perguntas, da programação. Teria que mandar a resposta até o dia seguinte. Resolveu levar pra Julie o questionário dela e de Bia. E foi atrás de Talita e pediu pra que ela preenchesse o dela e o seu. Mas, antes de confirmar o dele, queria dar uma olhada. Talita sorriu e pegou os papéis, achando-se importante por decidir o que o irmão faria.

Nicolas se arrumou e foi pra casa de Julie. No caminho ele ligou pra ela.

– Alô – ela disse.

– Oi amor. Tá tudo bem?

– Tá sim, amor. O que está fazendo?

– Estou indo pra sua casa, agora.

– Mas agora! Eu to aqui conversando com a Bia. Nem estava esperando você chegar tão cedo. Nem me arrumei.

– Melhor ainda se a Bia está aí. Preciso falar com as duas.

– Hm. O que é? É sobre a viagem?

–Surpresa. Já estou quase chegando aí. Beijos.

Ele desligou antes dela responder.

– Nossa! Nem esperou eu falar nada.

Minutos depois Nicolas parou na frente da casa da noiva. Estava chovendo um pouco então ele correu e já foi abrindo a porta. Sr. Raul estava na sala e leva o maior susto com a entrada do genro. Olha pra ele com cara feia.

– Me desculpa Sr. Raul. Eu abri porque estava me molhando. A Julie está? (perguntou mesmo sabendo a resposta).

– Está lá em cima. Pode ir lá.

Nicolas subiu e chegou na porta do quarto. Escutou Bia conversando com ela.

– Ah Julie. Acho que isso é encanação sua. Vamos pesquisar aqui, Wish, Inglaterra.

Nicolas ouviu isso e se apressou a bater na porta. As duas olharam pra porta no mesmo instante e ele já foi entrando.

– Oi amor! Demorei?

– Nadinha.

– Oi, Bia! Como vai?

– Ah, tudo bom. Inclusive eu já estava de saída...

– Espera! Eu vim aqui justamente atrás de vocês duas. Quer dizer, usei isso como pretexto pra aparecer aqui e ver minha noiva gata. - E deu um beijo em Julie. Ela sorriu de volta.

– E o que é tão importante pra vir atrás da Bia? – Julie perguntou.

– Nossa Julie! Quer dizer que eu não sou importante é?

Ela riu. – Claro que é! Relaxa!

Nicolas abriu o envelope e pegou os papéis da agência de turismo.

Julie e Bia leram o logo da agência. “Tourcêntric” e se olharam.

– Temos que preencher tudo hoje ainda e confirmar os dados no site da agência. A partir daí eles vão personalizar a viagem.

– E então... Vamos fazer um lanche ou preencher isso agora?

– Ah... Que decisão difícil. – Bia ri.

Os três descem e vão pra cozinha assar uma pizza.

– Isso vai demorar! Vamos aproveitar e já ir adiantando alguma coisa. – diz Nicolas, apesar de também estar com fome.

– Pega lá o notebook pra mim, Bia. – Julie pede. – E o seu Nicolas. Cadê o seu? Só vi o meu questionário e o da Bia.

– Er... Eu pedi pra Talita ir preenchendo pra mim. Depois eu só dou uma conferida.

– Nossa! Que espertão você, hein! – Julie falou com raiva. – Como é que ela vai saber os programas que nós dois vamos fazer juntos?

– Então, eu disse que não era pra ela confirmar nada. Só preencher.

Bia volta com o notebook. Antes que ela pudesse fazer alguma pergunta sobre o local, Nicolas abriu a página da agência e entrou com os dados de Bia.

– Pronto! Agora é só você preencher esses questionários!

– Nossa! Mas isso parece mais um inquérito! Pra que eles querem saber tudo isso?

– Eles vão personalizar a viagem.

....

– Espera! Como assim número do calçado? Estatura? Manequim? Nunca me perguntaram isso em nenhum hotel.

– Isso é outro nível, Bia. Esse hotel é 5 estrelas.

– Ah tá... Me desculpa.

Ficaram os três envolvidos com o questionário e indecisos. Era mais difícil do que parecia. O problema era que as opções não eram uma saída.

– E agora? O que eu escolho? Festa surpresa ou Festa no Salão dos Ossos? – Bia perguntou.

– Ai! Agora até me arrepiou! Sei lá! O que pode ser essa festa surpresa?

– Pode ser qualquer coisa. Pode ser algo PIOR do que festa no Salão dos Ossos.

– Nicolas. Você vai ter que me explicar TUDO sobre essa viagem mais tarde viu. – Juliana o ameaçou.

– Vocês duas acham que eu ia colocar todo mundo numa furada? Eu só escolhi um lugar temático. Lá é um hotel, digamos assim, diferente.

– Obrigada pela explicação. Ajudou muito! – Julie disse.

A pizza ficou pronta e eles deixaram o assunto de lado. Mas passaram a falar sobre os preparativos. Todos estavam eufóricos.

– Não precisamos necessariamente ficar o tempo todo no hotel né, Nicolas?

– Bom. Acho que não! Vou perguntar.

– E o Valtinho, tem visto Nicolas? – Bia aproveitou pra especular sobre o ex.

– Falei com ele esses dias por telefone. (ele se lembrou do telefonema pedindo pra dar um jeito no Boca. Valtinho tinha contato com uns babacas lutadores de jiu-jítsu).

– Ele já sabe que nós vamos viajar? – Bia continuou.

– Sabe. Ele sabe sim, ele até queria que eu o levasse pra ser meu intérprete.

Os três riram.

– Que palhaçada, né! O Valtinho intérprete? De quê? Só se for de malandrês.

Terminaram a pizza e Bia disse que precisava ir.

– Deixa que eu termino pra você então, amiga. Você já falou o principal, eu me lembro de tudo.

– Tá bom. Se não fosse aniversário do meu sobrinho eu até ficava com vocês, mas preciso ir agora. Disse que só ia sair pra comprar o presentinho dele.

– Tá bom. Qualquer coisa eu te ligo.

– Beijos.

– Beijos pros dois.

Nicolas ficou com Julie terminando de responder. Ele sabia que algumas programações ele não poderia acompanhá-la por causa dos eventos de RPG. “Ai! Ela vai me matar!”

– Olha só amor. Não to conseguindo alterar isso aqui. “Caminhada de 3 horas até o cemitério... noturna”. Será que isso é obrigatório? Mas eu lembro que o da Bia ela escolheu outra coisa. Que estranho! Aliás, todos os programas desse hotel estão superestranhos. Pra que eles querem saber do que eu tenho medo?

– Põe qualquer coisa aí, amor. Chegando lá a gente muda.

– Está certo então. Vai olhando o que eu vou marcar. Quando você chegar em casa, ajeita o seu igual ao meu. - “porque é claro que a sua irmã vai fazer tudo errado” – pensou.

Nicolas saiu de lá muito tarde. Chegou em casa, Talita estava dormindo. Entrou na Internet e foi preencher seus dados. Levou um susto. Talita tinha confirmado todas as opções. O sangue subiu pro seu rosto. Ele se levantou e foi direto pro quarto dela. Abriu a porta e entrou com raiva. “Ela fez isso de propósito!”. Já ia acorda-la. Mas ficou paralisado olhando pra cena. Ela dormia abraçada na única boneca que tinha ganhado de sua mãe.

Era quinta-feira. Dia de folga pros três funcionários de confiança do hotel. Félix, Martin e Daniel.

Pra Daniel era só mais uma noite mergulhado em sua solidão. Naquela noite não queria ver ninguém, nem tocar, nem ir pra escuridão dos bares de Wish.

Queria ficar ali mesmo, conversando com seu pensamento.

“Ela deve pensar que eu fugi. Mas... e-eu não tive culpa. Eu não queria que tivesse sido assim. Eu queria explicar tudo pra ela um dia. Queria muito que ela me perdoasse. Não deve ter sido fácil.”

Não era sempre que ele ficava assim tão triste. Só em datas especiais. E hoje era uma.

Geralmente ele era um cara animado, tinha a língua afiada e era muito perspicaz. Era muito assediado, mas quase nunca era visto com alguma garota. E mesmo assim, quando viam, era só por uma noite. Ele não se prendia a ninguém. Os amigos sabiam por que. Mas não podiam comentar nada com ele, que virava uma fera.

– Quando vocês tiverem uma solução, voltem a falar sobre isso! Deixem-me em paz!

Pra quem não o conhecia, esse lado nunca existiu.

Estava parado em uma sacada do hotel, quando Félix apareceu correndo pra falar com ele.

– Daniel! – falou empolgado. – Você não sabe o que eu acabei de ler.

– Ai! Mais um hóspede reclamando daqui?

– Não! Isso aí você sabe que não é problema! O negócio é o pessoal que vai chegar aqui na próxima leva.

– Ai! Em plena folga você vem correndo me falar disso!

– É! Mas tem uma garota! Essa parece que vai ser osso duro de roer. Ela está escolhendo as opções mais radicais da estadia.

– Sério? Adoro quando vêm esses idiotas arrogantes! É a única coisa que me diverte nesse trabalho.

– Pois é! Vai te preparando que essa não tem medo de nada. Aliás, de quase nada. A não ser... de ratos.

– Hahahahahaha. Você tá brincando né? Isso é a coisa mais fácil de arrumar. Qual é o nome dessa criatura?

– Juliana Spinelli.