Algo que pode acontecer com qualquer um, aconteceu com Luca naquela noite.

Ele não gostava de Shoujo pelo fato de nunca ter visto mais de um e não ter gostado desse único. Ele sempre foi o maior fã de Gore, Seinen e Shōnen mas quando viu aquele anime, acabou gostando. Os personagens eram divertidos e seus sentimentos em geral, ele entendeu, pois estava mais maduro que quando teve a primeira experiência com animes do gênero.

Estava rindo alto em muitas cenas, acompanhando Kimiko que também tinha seus gritinhos fangirl toda vez que o casal principal ou os secundários faziam algo fofo.

Incomodou-o ver o jeito que ela mordia o lábio lentamente quando Nobara comentava ou fazia algo pervertido relacionado a outras garotas e também ao ver seus gritinhos histéricos e comentários desnecessários quanto a relação de estreita amizade de Miketsukami e Natsume, dois homens. Provavelmente estava pensando coisas que não existiam, algo normal para as fujoshis, vendo duplo sentido em tudo. Coisas que nunca tinham deixado-o incomodado pois tinha amigas menos íntimas que gostavam de yaoi e também eram fangirls, mas ao seu ver era pedir demais ele não ficar irritado com o fato de sua amada estar gostando de meninas por causa de um gênero de mangás e animes fictícios.

De qualquer forma, ela estava mais interessada e achando mais fofo as relações entre Roromiya - sua personagem preferida - e Watanuki, além do casal principal, Miketsukami e Ririchiyo, duas relações héteros. Sua mente gritava para não nutrir esperanças por algo de tão bobo, mas era impossível.

Os dois, durante o anime todo, ficaram reclamando e torcendo para ver a relação de Ririchiyo e Miketsukami se acertar e finalmente verem ambos ficarem juntos (coisa que como na maioria das vezes demorava séculos ou nem acontecia). Era frustrante ver todas as tentativas silenciosas e sem intenção de os juntar (algo inocente, que geralmente acontecia nos Shoujos, e até nos Shōnen) sempre falharem e estas o lembravam de sua própria situação.

– Finalmente o último episódio! - Comemorou Kimi, se afundando e aconchegando ainda mais na cama, satisfeita. - Agora eles ficam juntos, você vai ver!

Os dois viram o episódio em silêncio, ansiosos demais pelo desfecho para rir ou dar gritinhos animados (no caso da garota). A parte esperada finalmente chegou: Lá estava Ririchiyo no parquinho, falando com Miketsukami pelo celular. Finalmente ela se havia se dado conta de seus sentimentos. Assim que o garoto apareceu, se seguiu a declaração da menina, feita gaguejando. E então o beijo! Kimiko, feliz com o desfecho do relacionamento até o momento, olhou para Luca com um sorrisinho, ainda com a cena rodando e a voz do garoto preenchendo o quarto.

Luca não soube o que o moveu naquele momento, se foi a cena que ali passara ou o sorrisinho que a sua amada lhe apontava vindo de tão perto, apenas se sentia entorpecido e perdido nos pensamentos e sensações, distante demais para pensar em seus movimentos. Quando se deu conta do que fazia, seus lábios estavam colados aos de Kimiko em um selinho. Ela mantinha os olhos arregalados, não parecendo mais do que puramente assustada com o ato repentino, paralisada. O loiro também se encontrava no mesmo estado.

Ela se afastou repentinamente alguns segundos depois e com a afobação, caiu da cama. Luca sentiu o peso da rejeição dada a súbita separação dela e seu olhar horrorizado, enquanto sentada no chão do quarto e a mão sobre a boca. A música da encerramento do anime preenchia o cômodo acompanhado das cenas que iriam encerrá-lo de vez mas nenhum dos dois prestava atenção. Estavam com os olhos presos um no outro.

– Kimiko, eu...

– L-Luca... Eu n-não sei o que você-cê desejava conse-seguir com isso, mas... - Ela soluçou, baixando o rosto, começando a chorar. Completou a frase tão baixo que quase ela mesma não foi capaz de ouvir - Sa-Saia daqui.

– O quê?

– S-S-SAIA, LUCA!! O MÍNI-NIMO QUE VOCÊ-CÊ PO-ODE FA-FAZER POR MIM É ME-ME DEIXAR SOZI-SOZINHA.

Já passavam das três da manhã, ele estava só de calça moletom, teria que acordar os pais para entrar em casa pela porta da frente e então passar um frio tremendo até chegar em sua cama para então deixar seus pensamentos atormentá-lo a noite toda. Podia ter ficado e se declarado, tirado a dúvida que rondaria a cabeça da menina por toda aquela noite e lhe tiraria o sono, mas ainda tinha medo de sua reação então apenas lhe pediu desculpas e saiu do quarto com a cabeça baixa.

Desceu as escadas encarando os cômodos mergulhados em uma escuridão e silêncio frio e se dirigiu até a sala de jogos, saindo da casa pelo mesmo lugar que entrara. Kimiko, que o seguira ainda chorando e soluçando, fechou a porta de madeira do cômodo deixando aquela área sem contato com o resto da casa.

O garoto bufou do lado de fora, tremendo e se abraçando para evitar o frio cortante da noite. Pulou o muro, indo bater na porta de casa e chamar pelos pais. Chamou e bateu na porta por muito tempo mas ninguém atendia e tampouco houvera algum sinal de vida dentro da casa. Seus pais tinham saído com Lia e deixado-o, pensando que iria dormir na casa da ruiva sem problemas, trancando-o fora da casa.

Ele grunhiu, sentindo o peito ferver de raiva e então deu um chute com força na madeira grossa da porta, torcendo o pé.

– PORRA. - Gritou, caindo de bunda ali mesmo, enquanto segurava o pé machucado que doía como se tivesse quebrado.

Agora ele não podia nem mesmo entrar na sala de jogos da casa dos Murakami para dormir mais confortável e quente. Nem tinha condições de ir até o extremo fundo de sua casa para dormir na churrascaria coberta. O máximo que conseguiu, pulando em um pé só, foi chegar até a árvore que mais cedo usara para pular do seu quarto para o da amiga e ali se acomodou, encostado no tronco velho enquanto segurava o pé com uma mão, tentando se aquecer com a outra.

Tudo o que desejava é que aquela noite vil acabasse logo, enquanto tremia e se encolhia de dor.

Seu azar de "péssimo em nível sobrenatural" passou para "péssimo em nível sobrenatural no ártico" em segundos, isso se esses graus de medição de azar existiam. Ele não queria descobrir, pois existindo ou não, ele estava passando por eles.

~ Nyah! Nyah! ~

Luca milagrosamente caiu no sono em algum momento, a hora já próxima das cinco da manhã. Perto do meio-dia, Lia havia ido procurá-lo na casa de Kimiko e não o encontrando lá passou a procurá-lo. Já era de tarde quando a pequena o encontrou dormindo naquele ponto, todo encolhido.

– O quê houve? - Ela perguntou assustada ao conseguir acordá-lo, depois de boas sacudidas.

– Por onde eu começo? - Ele respondeu com uma segunda questão em tom sonolento e baixo, enquanto fungava. Além de com o pé torcido, tinha ficado gripado - Me ajuda a en- ATCHIM! - ... E estava tossindo.

– Se segura em mim. - Pediu, se ajoelhando e passando o braço dele por seu ombro.

Usando a irmã menor como apoio para se levantar e para andar, com dificuldade, pode entrar em casa. Quando já se encontrava deitado no sofá, a mãe do garoto entrou na sala observando-o preocupada e avançando para tocá-lo, enquanto fazia diversas perguntas. A primeira coisa que fez foi pôr a mão em sua testa e então disse:

– Febre. Parece que vai ficar de cama por alguns dias.

Ele tossiu, engasgando. Aquilo soou como uma sentença de morte aos seus ouvidos. Luca odiava parar quieto, ainda mais por estar doente.

– Vem comigo, querido. Vou cuidar de você enquanto eu posso. Logo eu vou sair para trabalhar e até lá você tem de ter melhorado pelo menos um pouco. Será triste ficar sozinho nesse estado...

– Ele não vai, senhora Lórien. - Respondeu Kimi em tom decisivo, parada na porta de entrada, com Lia segurando sua mão. A menina não tinha ficado parada quando chegara com o irmão, imaginou o que tinha acontecido rapidamente e foi tentar resolver. - A culpa dele estar assim é minha e eu me comprometo a cuidar dele.

O coração de Luca, petrificado depois da rejeição de mais cedo, voltou a bater forte novamente cheio de esperança.

Ela ainda gostava dele!

Não estava tudo perdido!