Noite escrita por Tincampy


Capítulo 20
Procura-se: Azulzinha! parte 2


Notas iniciais do capítulo

Hey, pessoas!
Nyah voltou! :3
Aí está mais um capítulo pra vcs... Acho que já estava na hora de algo assim acontecer. Espero que gostem!
p.s.: Tks, Clock-chan!



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Segui-a por quase uma hora, ela evitou habilmente as ruas movimentadas e não pareceu perceber minha presença. Conseguia distinguir claramente sua silhueta até entrarmos na mata. Essa foi a parte mais complicada. Ela seguiu por uma trilha e eu me forcei a parar e esperar alguns minutos, com os ecos da mata e o barulho de galhos se partindo sob meus tênis, ela com certeza perceberia minha presença. E, cara, eu estava disposto a me manter vivo pelo maior tempo possível!

Tentei distrair meus pensamentos da possibilidade dela ter se enfiado em algum caminho complicado na mata e fui andando pela trilha, torcendo para que todo esse esforço me ajudasse a encontrar a Tabhita viva.

Posso dizer que logo meus esforços despontaram em algo. Ao fim da trilha, via-se uma bela casa de campo. Janelas grandes de vidro temperado, paredes brancas, telhas de barro... Era simples, mas graciosa em sua conjuntura. Cercada por um extenso terreno gramado. Além da casa, havia apenas uma tosca construção de madeira ao fundo, que imaginei ser uma espécie de celeiro. Não havia animais, nem currais, nem nada... Só um jardim na lateral esquerda e o celeiro ao fundo, à direita.

Também era audível o som de água chocando-se, supus que se eu abandonasse a trilha e começasse a seguir para a direita, reto, logo encontraria uma espécie de rio ou nascente de rio. Pareceu um ambiente muito pacífico para uma trupe de vampiros comedores de carne. Mas parte de mim teve consciência de que seria fácil manter pessoas desaparecidas ali. Não havia nada em um raio de quilômetros. Nenhuma construção além da casa no centro da clareira. Só a orla da floresta e a sombra de alguns morros bem distantes.

Ou seja, um grande fim de nada.

Não vi a ruiva em lugar nenhum e parei por alguns segundos tentando pensar no que fazer. Se eu pretendia desencavar um rifle e invadir, essa seria a hora. A não ser pelo detalhe de que eu não possuía um rifle e não achava que nenhuma caneta fosse me ser útil dessa vez. – Ok, mesmo que eu tivesse um rifle... Teria mais chances de quebrar o braço com a força do gatilho do que de conseguir acertar o que estivesse na mira. – Seguir até a casa também não seria uma boa opção; eu ficaria exposto à visão, em campo aberto, por um bom tempo até sequer cogitar a possibilidade de espiar alguma coisa.

Ruminei as possibilidades até decidir-me por tentar contornar a casa pela orla, objetivando me encontrar de frente para os fundos. Na falta de ideia melhor, pelo menos, se eu saísse da floresta e corresse por trás da casa... Seria mais próximo do que se eu o fizesse da posição em que estava, de frente para a fachada.

Saí andando em direção ao rio, tentando fazer uma espécie de perímetro das bordas da mata, para não acabar me perdendo. Logo encontrei o rio, era mais fundo do que pensei. Acho que uns dois ou três metros de profundidade. A água misturava-se ao barro de modo que não pude ver o fundo, mas a correnteza não era tão forte. Seguia quase que preguiçosamente pelo leito intocado.

Mais a frente, um pedaço do rio desaguava em uma inclinação que é puro barro. Como se o rio tivesse desistido de passar por ali há pouco tempo e tivesse deixado um monte de barro para ocupar o espaço. Pensei isso até que, ao olhar mais de perto, vi que o leito havia sido bloqueado por algumas toras de madeira realmente grossas e pesadas. Era recente. Uns dois dias, talvez. O que significa que aquela parte da mata não era tão ignorada afinal e que o quanto antes eu caísse fora, melhor.

Aos fundos da casa, havia um poço cartesiano próximo ao celeiro e uma agradável varanda disposta do lado oposto ao celeiro. Três espreguiçadeiras alinhavam-se, expostas a luz da lua, juntamente com uma mesinha e um enorme guarda sol.

Contei até dez, olhando para os lados a procura de alguma alma viva e corri o mais silenciosamente que pude até a parte de trás do celeiro. De lá pretendia correr até a casa e, sei lá... Espiar? Invadir? Sério, nem eu sei o que eu pretendia, só sei que estava lá com a cara e a corajem, rezando para que meus chutes estivessem minimamente certos e para que eu conseguisse sair de lá inteiro, junto com a Tabhita.

Estava me preparando para lançar-me em outra corrida até a porta traseira, – Talvez eu pudesse dar um jeito de abrir a maçaneta, olhando de longe, parecia meio antiga. – quando ouvi o chiado discreto de um motor e as luzes dos faróis desenharem-se na grama e, em seguida, nas paredes do celeiro. Me arrastei para longe dela no último instante, torcendo para não ter sido visto. De onde estava, não conseguia ver nada direito, só alguns contornos que me permitiram distinguir um jipe de tom escuro sendo estacionado.

— Estou morta! — ouvi uma voz bonita e grave dizer. Daquelas que, ao serem combinadas com as entonações certas, atraem a atenção das pessoas assim que pronunciadas. — Mas estou com muita vontade de desfrutar dessa noite, o que sugere que a gente faça? — seu tom de voz era cheio de riso e ela parecia quase que eufórica.

— A Lavínia chegou. — disse outra voz, masculina, com uma indiferença que era quase um crime frente a animação da primeira. — Temos outras coisas para fazer. Ela não gosta de esperar.

— Sim, sim. — ouvi a mulher suspirar impaciente. — Eu sei, você é mesmo um estraga prazeres, hein? Mande os meninos descarregarem o carro, sim? Eu vou pegar um... — ela disse e sua voz foi desaparecendo junto com o som dos passos pisando no gramado.

Soltei minha respiração, percebendo que meus pulmões já ardiam, em busca de ar e avaliei a situação. Eu estava atrás de um celeiro, de frente para a mata; à minha esquerda estava o carro estacionado e pouco mais adiante, os fundos da casa. Eu poderia cair fora, ou poderia dar um jeito de descobrir algo que prestasse, ainda que não parecesse exatamente fácil.

Comecei a me mexer, já que os tais meninos voltariam, eu não queria estar ali. Seria melhor se eu conseguisse chegar logo até um lugar estratégico antes que alguém voltasse e dificultasse minhas possibilidades de locomoção. Com essa convicção eu espiei o jipe, tinha a coloração verde musgo e não foi um esforço tão grande decorar a placa. Estava na metade do caminho, quando ouvi as vozes se aproximando. Amaldiçoei entre dentes e me enfiei dentro do celeiro, a cobertura mais próxima. Quero dizer, não exatamente a mais próxima, mas era isso ou um barril de... De... Não sei! Sei que aquele negócio tinha um cheiro horrível. Talvez lavagem de vampiro, quem sabe? Na verdade, tentei não pensar nisso, me enfiando atrás de uma pilha de trambolhos. O lugar estava um breu e eu só conseguia distinguir alguma coisa, por causa da porta de madeira entreaberta e dos fiapos de luz de lua que entravam por uma janelinha alta ao fundo.

— Da última vez eu que fiz isso, então essa é sua vez... — dizia em tom de piada.

— Shhhhh! Cala a boca! — ouvi uma voz feminina dizer, diferente da voz grave e mais velha de alguns minutos atrás, essa era mais estridente e jovem.

Quase vomitei meu coração.

Desarregalei meus olhos, – Se eu continuasse arregalando os olhos em cada situação complicada, eles iam acabar saindo. – tentei respirar mais devagar e, rezando para que não tivessem me descoberto, comecei a cogitar as possibilidades de sucesso que eu tinha de sair correndo até a mata e sobreviver.

— Oxi, o que foi, hein, Gabi? — disse o primeiro parecendo intrigado.

— Não ouviu não, pateta? Eu ouvi alguma coisa!

— Ouviu? — o cara riu. — O que você está ouvindo é o seu ego subir demais com os elogios da senhorita Stephanie.

— Ah, cara... Cale a boca!

— Gabi, apenas vamos logo pegar o que a senhorita Stephanie mandou, ok? Não quero nada parecido com o que aconteceu com o Toni, acontecendo comigo... — ele disse e eu ouvi dois apitos baixos e rápidos, do alarme do carro sendo destravado, provavelmente.

— Estou só fazendo o meu trabalho, idiota! — ela disse irritada, com um tom perigosamente baixo. Ok, agora sim eu já estava vomitando meu coração, as tripas, o rim, o fígado... Estava tentando me equilibrar nas geringonças do celeiro a fim de alcançar a janelinha, me espremer e passar por ela e, se a sorte dessa o ar da graça, dar uma de Flash; mas no fundo, uma parte de mim – A completamente descrente. – já estava desejando que, pelo menos, a morte fosse rápida.

A porta do celeiro se abriu e dentre todas as pessoas que eu imaginei que poderiam aparecer e me salvar, – E acredite, eu pensei em muitas. – foi a Ângela que eu ouvi dizer com a respiração entrecortada:

— Oi, Gabi!

— Ângela? — ouvi o cara dizer tão surpreso quanto eu. Sem brincadeira, quase despenquei lá de cima em um monte de ferragens, só por causa do susto. — O que está fazendo aqui?

— Hum? Eu? N-Nada... — ela gaguejou e eu pude imaginar ela tentando pôr as engrenagens de seu cérebro para funcionarem. — Eu só pensei que... Talvez... Você estivesse certa. Vou parar de perguntar sobre meu irmão e todo o resto. Vim agradecer a você, Gabi. Tirando o meu irmão... Ninguém nunca se importou comigo dessa forma. — Ângela disse em um turbilhão e, ainda que eu achasse que tinha algum fundo de mentira ali no meio, ela não parecia estar mentindo. Por alguns momentos, pensei que fosse só coincidência ela estar ali, que não tinha nada haver comigo.

— Ah, Ângela! — disse Gabi com uma voz mais terna. — Poxa, obrigada. Mas você sabe que não deveria estar aqui! — ela sussurrou a última parte e eu fiquei com medo pela Ângela, como se minha situação já não fosse uma merda. — Além disso, as coisas não estão boas... Há algo estranho...

— Para mim não há nada estranho. — disse o cara que ficara quieto até então. — Aí está a coisa estranha que você ouviu, trate de livrar-se dela antes que a senhorita Stephanie descubra.

Peguei minha deixa muito tempo depois do que achei que seria o ideal. Arrastei-me para fora, pela janelinha e meti meu joelho esquerdo com tanta força no gramado, que senti meus olhos revirarem de dor. Corri o mais rápido que pude, consciente de que eles deveriam ter ouvido aquele baque surdo. Corri feito um desvairado, principalmente quando ouvi alguns berros desarticulados logo atrás de mim. Enfiei-me na mata e fui correndo cegamente, tentando concentrar-me no caminho de volta.

Os galhos foram me arranhando e, quando arrisquei olhar para trás, quase meti a testa em uma árvore. Eles não eram visíveis, mas eu ouvia o som da perseguição. Com a agilidade que eu me lembrava de ter visto no Toni... Com certeza eles me alcançariam. Eu tinha, no máximo, mais um minuto ou dois se fosse otimista.

Tipo, muito otimista.

Fui me esgueirando por entre as árvores, tentando achar um caminho que me livrasse ou um esconderijo qualquer... Foi quando pensei no rio, se eu chegasse até o rio, poderia tentar atravessá-lo. Acho que eles não pensariam na possibilidade de eu ter atravessado o rio... Não é? Sendo um bom plano ou não, era o único que eu tinha; então foi isso que objetivei fazer... Até, bom, até o barranco acontecer!

Deslizei antes mesmo que tivesse tempo de soltar qualquer som que expressasse meu susto e acho que isso foi bom. O solo estava meio úmido e eu dei graças a Deus por não ter quase nenhuma daquelas arvores tortas ali. Ser partido ao meio não faz parte dos meus planos para o futuro. Quando senti o solo reto sob meu corpo, tive que fazer uma força enorme para me mover. Pura força de vontade. Avaliei rapidamente os danos, o machucado no meu braço estava todo esfolado e algum sangue escorria por ele.

Entrei em desespero. Ignorando o fato de que eu estava mancando, de que minha cabeça latejava por tê-la metido em alguma coisa durante a queda, de que cada centímetro do meu corpo parecia ser sido atropelada por um trator... O sangue me assustava mais. Porque, bom... Sangue, vampiros, vampiros, sangue.

Esconder-me não seria o suficiente, eu não sei o quão afiado é o olfato de um vampiro... Mas é justo assumir que deixar rastros de sangue nunca é bom, né? Olhei ao redor e mal tive tempo de fazer uma careta antes de me enfiar no poço de lama que eu vira mais cedo. O cheiro era terrível, evidentemente havia algo mais ali do que só barro.

As vozes foram se aproximando. Havia três deles e fiquei o mais abaixado que pude dentro daquela lama toda.

— Ele veio por aqui. — ouvi a voz de Gabi parar em frente ao barranco e dizer.

— Porque ele sairia da trilha? — disse uma voz masculina irritada. — Hein, vampirazinha de merda?

— Seu nariz não serve para nada, é? Ele está machucado. — ela rebateu.

— Ei, vocês dois, acalmem-se! — disse outro cara e percebi que era o mesmo que estivera com Gabi mais cedo. — Ela está com a gente, Sérgio, então apenas contente-se! — Seu sotaque, com traços nordestinos, se destacava ainda mais com as frases enfáticas.

— Humph! Isso é um absurdo! Nojento! Essa coisa... — ele começou a reclamar, então eu ouvi o som de algo forte e substancial se partindo com estalos estridentes e, em seguida, um silêncio expectrante propiciar-se por alguns segundos.

— Vocês dois, parem! Gabrielle, larga isso agora! E, Sérgio, se abrir a boca mais uma vez... Eu, pessoalmente, arranco sua língua e jogo-a naquele brejo ali para fazer companhia ao nosso adorado Toni!

— O quê, o Toni está... — começou a dizer Gabrielle com um fiapo de voz. Lembrei-me da sua foto, a mesma que vira no jornal, e imaginei-a com uma expressão de assombro.

— Tão morto quanto parece, enfiado nessa porcaria de brejo. — disse Sérgio com uma raiva visível. — Aquela vadia da Stephanie...

— Eu não sabia que o Toni... — a voz de Gabrielle nem parecia a mesma de alguns momentos atrás. Por alguns momentos achei que ela fosse chorar.

— Apenas vamos logo.

— Mas e o... — começou a dizer Gabrielle.

— Não entendeu ainda sanguessuga de merda? — berrou Sérgio. — Tá sentindo essa droga de cheiro de sangue? Eu também estou! Tá sentindo esse cheiro podre? Eu também estou! Por que será? Ah, porque a vadia da Stephanie matou o meu amigo e o enfiou em um monte de merda para servir de exemplo! Agora, será que dá para irmos atrás da droga da presa ou não?

— O-Ok. — ouvi Gabrielle concordar e eles foram embora após trocarem algumas palavras que não captei, por estar concentrado demais em assimilar que, além do Toni estar morto, ele estava em algum lugar naquele monte de lama, junto comigo. Empolgante.

Fiquei uns três minutos imóvel, me sentindo estranhamente solitário na floresta escura e silenciosa até que forcei meus músculos a moverem-se. Cogitei ir embora, mas, com mórbida determinação, fui tateando aquele monte de barro até minhas mãos encontrarem algo mais sólido. Fiz algumas caretas de dor e consegui puxar o cadáver para fora. De fato, era o Toni.

Seus músculos estavam rijos, seus olhos ainda estavam abertos em uma mistura nauseante de sangue e lama. Meu almoço foi todo embora, acho que alguma coisa destravou-se dentro de mim naquele momento e eu vomitei tudo, sentindo meu corpo tremer levemente. As lágrimas vieram em seguida, mansas e mornas. Senti-me ainda mais estúpido por ter começado a chorar, mas não tentei me conter em nenhum momento. Eu só conseguia pensar nos olhos tristes da Tabhita, em como ela agiu estranho pouco tempo antes de seu desaparecimento e em como, mesmo percebendo isso, eu nem tentara fazer algo a respeito! Droga! Talvez se...

— Que droga! Se continuar assim, a Tabhita, a Tabhita... — não consegui me forçar a pronunciar mais nenhum som, apenas sustentei o olhar sem destino lançado pelas cavidades ocas e putrefatas que tinham sido os olhos do Toni.

Depois de outros poucos minutos, já com a minha respiração controlada e a minha cabeça no lugar, voltei a estudar seriamente o que restara de Toni. Não sou nenhum perito em cadáveres, mas eu precisava tentar descobrir como ele fora morto. Por mais nojento que fosse, é um tópico importante a ser estudado. Se eu descobrisse como ele morreu, descobriria como matar vampiros. Não que isso tornasse as coisas mais fáceis, mas me daria um norte.

Então, lá estava eu, tirando o excesso de lama do corpo do Toni e tentando achar algum corte visível. Inicialmente não percebi nada, não até... Bom, até virá-lo de costas para cima. Era realmente repulsivo. Os ossos do pescoço foram quebrados de tal forma, que se projetavam para fora, rasgando a carne na base do couro cabeludo.

Trinquei os dentes e, com certo esforço, enfiei o cadáver dentro do brejo novamente. O que quer que Toni tenha feito para que a tal Stephanie, além de matá-lo, o deixasse apodrecendo em um monte de lama, eu não sabia; mas admito que não me senti particularmente compadecido. Arrastei-me barranco acima, consciente do quão nojento eu estava e nem quis olhar para o estado lamentável da minha mochila que estivera nas minhas costas durante toda a incursão.

Descartei logo a possibilidade de voltar pela trilha pela qual viera, não queria arriscar-me a encontrar com nenhum dos meus perseguidores, ainda mais quando eles me chamavam de presa. Portanto, decidi seguir pela orla da mata, até os fundos da casa novamente. Se o carro viera por ali, deveria ter uma estrada por perto e eu me sentiria mais seguro andando em uma estrada do que na trilha para a casa de alguns vampiros.

Pelo menos, se um vampiro me encontrasse na estrada, eu poderia dizer ser um mendigo itinerante procurando fontes saudáveis para banhos medicinais de lama.

Notoriamente coerente, eu sei.

Passando novamente na frente de onde o jipe estava estacionado, mordi os lábios para conter a vontade de ir procurar pela Tabhita. Eu não conseguiria nada ali, não naquelas condições: mancando, sangrando e fedendo. Assim sendo, resignei-me a xingar de um monte de coisas que eu achei que os ofenderia àquele monte de sanguessugas do inferno.

Foi aí que, como a terceira vez dá sorte, encontrei com a Ângela. Já começava a sair da mata e vislumbrar uma estrada de terra, quando avisei seu perfil. Ela estava recostada em uma árvore, na margem esquerda da estradinha. Parecia distante, submersa em pensamentos complicados a julgar pela forma que franzia o cenho.

— Temos que conversar. — eu disse me aproximando.

Seus olhos voltaram-se para mim e passaram de surpresos a aliviados em uma velocidade incrível, o que me disse que ela ter aparecido na hora exata não era apenas mera coincidência.

— Você está vivo. — ela disse como se ainda duvidasse. Acho que até eu ainda duvidava.

— E você tem alguns segredinhos interessantes, Ângela.

Ela fez uma careta e eu não sei dizer se foi por causa do fedor que eu exalava, da minha roupa marrom ou pelo meu tom afiado. Talvez por tudo isso junto.

— É, está bem. — ela disse relaxando os ombros. — Vamos até a minha casa, sim? Você está com um aspecto terrível, precisa de um banho!

Acenei afirmativamente e voltamos em silêncio, seguindo o curso da estradinha de barro. Perguntei-me como ela soubera que eu havia ido parar lá, mesmo que ela tenha omitido algumas informações consideráveis... Ela ainda foi lá salvar minha pele, né?!

Quando finalmente chegamos à sua casa e eu entrei imundo na sala dela, Cris abriu a boca e achei que ela fosse me espancar com o esfregão se a Ângela não tivesse feito um gesto para que ela se acalmasse.

— Não se preocupe, Cris, dessa vez ele foi convidado.

Depois disso, a Ângela mandou a Cris me guiar até um dos banheiros e providenciar para que meus pertences fossem lavados e para que eu tivesse roupas limpas. Sério, acho que esse foi o melhor momento do dia. Enfiei minha roupa imunda na sacola plástica que Cris havia me dado e entrei debaixo do chuveiro. A água quente foi um verdadeiro alívio e tirar toda aquela terra grudada fez-me sentir mais leve.

Dei-me conta de que estava com fome, mas ignorei, concentrando-me em lavar o cabelo pela terceira vez. Não sei se aquele cheiro realmente sairá de mim um dia, mas fiz o melhor que pude. Depois de meia hora de banho, achei que eu já deveria ter uma aparência e cheiro apresentáveis, então saí e vesti as roupas que Cris me deu. Eram meio folgadas, mas serviram bem. Um jeans velho e uma camisa preta escrito: Star Wars; deveria ser do Hector, irmão da Ângela, mas não me detive pensando nisso.

— Sinto que posso respirar o mesmo ar que você agora. — disse Ângela do sofá da sala, ao ver-me descendo as escadas.

— É. — eu disse ainda meio mancando.

— Senta aí, a Cris vai dar um jeito nesses seus arranhões.

— Não precisa, não. Estou bem. — eu disse não querendo chegar muito perto da tal Cris e, além disso, com a Cris por perto eu teria que adiar minha conversa com a Ângela mais um pouco.

— Deixa de ser cabeça dura, Felipe. — disse a Ângela cruzando os braços.

— Ok. — eu disse sentando-me no sofá e pegando o algodão e o frasquinho de remédio dispostos sobre a mesa. — Mas deixa que eu faça isso, não é nada complicado.

— Tá bom.

— E então? — eu disse aplicando o remédio no meu braço e fazendo uma careta de dor.

— E então, o quê? — ela disse com um ar inocente. Lancei-lhe um olhar irritado em resposta e ela pareceu captar o sentido, pois disse: — Ok. Sei que quer respostas, mas não fique com raiva de mim por não ter contado logo, está bem?

— Talvez eu não fique. — eu disse não querendo admitir que eu na verdade não estava com raiva dela, só morrendo de fome, dor em tudo quanto é canto do corpo e, claro, angustiado com o sumiço da Tabhita.

— Bem, começando... Não, eu não estava pelada.

— O quê? — eu disse sem entender direito o rumo da conversa.

— Sabe... Àquela hora... Eu não estava pelada. — ela disse vagarosamente, como se eu fosse alguma espécie de retardado.

— Ok, e daí?

— Mandei que a Cris não deixasse ninguém entrar e... E fiquei nervosa quando você entrou, porque eu não estava sozinha.

— É, tinha uma vampira com você. — eu disse sem rodeios, largando o algodão e o remédio sobre a mesinha.

— Felipe, me desculpe, ok? Eu só não quero que você se envolva...

— Já me envolvi, esqueceu?

— Se envolveu? — Ângela disse com uma raiva que me surpreendeu. — Você não sabe o que é se envolver! — ela disse abaixando a gola alta da camiseta e mostrando um curativo grande do lado esquerdo do pescoço. — Entende agora? Você tem que parar! Pare enquanto ainda está bem! Vá embora dessa cidade maldita enquanto ainda pode, droga! — ela disse com os olhos enchendo-se de lágrimas.

— Ângela, você...

— Sim, Felipe! O tempo inteiro, o tempo inteiro!

— Você poderia ter dito. — eu disse, me sentindo péssimo.

— Não, eu não podia. Ainda não posso, mas isso você não entenderá hoje. As coisas não são tão fáceis assim. Sabe o medo que tive quando descobri que meu irmão pode ter virado um vampiro assim como a Gabrielle? Sabe o quão desesperava fiquei quando fui até a sua casa e não te achei?

— Você foi na minha casa?

— Fui! Me arrependi de ter te expulsado daquele jeito e, bem... Não foi difícil descobrir onde você morava. — ela disse e eu percebi o quão nervosa estava. Não sou só eu que estou surtando, afinal. — Fui até àquela casa só para ter certeza e o que vejo? Você estava mesmo lá! Você tem noção da sorte que teve hoje? Era pra você ter morrido, idiota!

— Sim, eu sei. Mas que lugar é aquele? Alguma espécie de Vampcaverna? — eu disse tentando não me focar muito na parte em que a Gabrielle, a outrora vítima de um vampiro, vinha dando dentadas no pescoço da Ângela.

— Não faço nem ideia, Felipe. Tudo o que sei é que há uma hierarquia e inimizade, mais complicada do que parece, entre eles.

— E o que você acha que a Tabhita...

— Eu acho, Felipe, que você já sabe a resposta. Comida. — ela disse sem tentar soar maldosa, mas o efeito foi o mesmo. — Por um bom tempo tive esperança quanto ao meu irmão...

— E?

— Ele está morto. — Ângela suspirou.

— E você tem uma vampira sugando seu sangue de bagagem.

— Não precisa se preocupar com isso, Gabrielle não fará nada. Agora é melhor você ir embora ou sua mãe vai ficar preocupada.

— Está me expulsando? — eu disse apenas porque queria prolongar a conversa um pouco mais.

— Não, Felipe. Só estou cansada. Ser bolsa de sangue não é exatamente fácil.

Fui embora sabendo que a Ângela ainda escondia um monte de coisas e tendo certeza de que ela não me diria mais nada. Pelo menos, não hoje. Olhando positivamente... – Se é que isso pode mesmo ser encarado como algo positivo. – Na lista de pessoas desaparecidas, sei onde uma delas foi parar.

E ainda tem todo esse lance da Ângela. Fala sério, de todas as pessoas, como que logo ela foi virar uma bolsa de sangue? E se ela está envolvida até o pescoço com uma vampira, por que ela não quer ajuda? Por que disse que estava tudo bem? Além disso, meu Deus, ela praticamente me disse para que eu sente e espere o cadáver da Tabhita aparecer! Não!

Que droga!

Fui andando para casa e só percebi que havia esquecido minhas roupas e minha mochila na casa da Ângela no meio do caminho, mas não estava com nem um pingo de disposição para voltar lá, então apenas segui em frente.

Vampiros podem manipular percepções. A Ângela continua sendo opção confiável? Por outro lado, só não estou à alguns palmos abaixo da terra agora, por causa dela... Grr.

Ao avistar a pousada, me senti um pouco melhor. Por mais que reclamasse, eu passara a considerá-la minha casa, afinal. Tentei me concentrar em coisas normais, como meus primos pulando em cima de mim, a obcessão do meu tio com xadrez, o suco estranho e nutritivo que minha mãe costuma fazer, a presença cada vez menos frequente do meu pai... Eu tinha que voltar lá. Na casa da tal vampira alfa, a Stephanie. Eu não vou simplesmente desistir da Tabhita.

Se as circunstâncias fossem mais convencionais, eu poderia dar um jeito de envolver a polícia. Não seria uma solução perfeita, mas seria melhor do que ir lá sozinho de novo com a cara e a coragem. Mas a forma que aqueles policiais agiram naquele dia... E se esse fosse o caso de todos os policiais da cidade? Eu só estaria me delatando como o cara que quer invadir a propriedade de um monte de sanguessugas. Portanto, o melhor que eu poderia fazer estava longe de ser a melhor possibilidade possível. Só consegui pensar em arranjar ao menos um considerável pé de cabra para, pelo menos, não ter uma morte instantânea. O Toni morreu com os ossos do pescoço quase estilhaçados, então se eu decepasse a cabeça deles... Provavelmente resolveria, mas... Decepar a cabeça de um aprendiz de Hulk é fácil, né?

Abri o portão de casa tentando não pensar na Ângela. Não importa o que ela diga, ter uma vampira metendo os dentes no seu pescoço, não parece bom! Isso não poderia continuar e eu teria que pensar em algo para tirá-la dessa também, querendo ou não. Talvez, se eu conseguisse pegar a Gabrielle, poderia arranjar alguma vantagem na hora de conseguir informações? Não fazia nem ideia de como faria isso, mas uma animação começou a se espalhar pelo meu peito. Se eu convencesse a Ângela a me ajudar a pegar a Gabrielle, eu poderia descobrir algum ponto fraco mais significativo e talvez... Eu pudesse descobrir algo sobre a Tabhita.

Com essa ideia totalmente lógica, mas quase impossível de se executar, eu já estava virando-me para voltar para a casa da Ângela e começando a formular argumentos para convencê-la, quando eu ouvi o Caíque me chamar.

Dizer que ele me chamou é generosidade, na verdade, o moleque me berrou com um desespero evidente e desatou a chorar. Assim que voltei meus olhos em sua direção, compreendi a razão e fiquei estático de incredulidade por um meio segundo que pareceu passar em câmera lenta diante dos meus olhos.

Ouvi a criatura trôpega antes de vê-la. Ela gemia e guinchava descontroladamente, como uma espécie de porco selvagem em desespero. Sua pele era meio pálida e uma infinidade de pústulas avermelhadas, espalhavam-se por todo seu rosto e braços. Não tinha um porte grande como do de Toni ou Carlos, deveria ter a minha altura, pouco mais que um metro e setenta, mas a forma como agia... Sua agilidade era descomunal e mesmo na escuridão parcial da entrada, pude ver presas enormes e esguias que se destacavam nos lábios sujos de sangue.

Eu corri. Meu joelho machucado reclamou, mas eu o ignorei e corri mesmo assim, puxei Caique alguns milésimos de segundos antes das mãos daquela coisa desvairada agarrarem-no.

— Fe-Felipe... Ele mordeu, ele mordeu... — Caique choramingou desesperadamente, enfiando a cabeça no meu peito e agarrando a minha camisa com força, enquanto eu o segurava no colo.

Não tive muito tempo para tentar entender o que Caique estava resmungando, o bicho começou a correr na minha direção, com o corpo meio curvado e os olhos vidrados. Recuei o máximo que consegui, quase tropeçando em um velotrol azul que estava próximo. Sem alternativa melhor, chutei o brinquedo na direção do bicho – Pelo amor de Deus, aquela coisa estava em um nível totalmente diferente! Era completamente animalesca e irracional! – em uma tentativa atrapalhada de atrasá-lo.

E, cara, falhou miseravelmente.

O cara pegou o velotrol e o tacou com tanta força em nossa direção, que o plástico estilhaçou-se ao bater na parede e uma lasca passou raspando na cabeça do Caique. Na verdade, teria decepado a orelha do moleque se a minha mão não estivesse no caminho.

O sangue começou a escorrer. O Caique começou a berrar desesperadamente. E o cara parou. Isso foi o que mais me assustou, há meio segundo ele vinha em minha direção com uma ânsia desesperada e, de repente, parou. Parou e suas retinas dilataram-se olhando para minha mão ensanguentada. Sua respiração vinha acompanhada de guinchos e eu senti meu sangue gelar; o Caique berrando no meu ouvido e agarrando minha blusa era o de menos. Aquela coisa estava se preparando para atacar e eu tinha uma dolorosa consciência da minha ausência de opções de fuga. Há uns poucos passos atrás de mim estava o portão que se dobrava e seguia pela minha direita e, à esquerda, estava a esquina da pousada de dois andares e um velotrol em pedaços. Uma parte do meu cérebro pareceu perceber como aquele bicho parecia ser uma versão mais esfomeada do Toni, outra parte desejou que minha mãe não tivesse ouvido os gritos do Caique ou o velotrol se chocando contra a parede. Desejou que ela estivesse lendo algum romance e ouvindo Beatles, como sempre.

Engoli em seco e segurei firme o Caique, planejando sair correndo para a esquerda assim que o cara se precipitasse para o ataque; era como se estivesse esperando qualquer mínimo movimento meu para fazer o seu e isso era muito mais assustador.

Ficamos assim por uns poucos segundos que me pareceram uma infinidade. Foi aí que realmente começou. Eu ouvi o sino familiar, que é acionado quando a porta se abre, soar. O terlintar ecoou fazendo todos os meus músculos se contraírem e tudo aconteceu tão rápido que eu não tive nem tempo de arregalar os olhos.

O bicho moveu-se em direção ao som e eu o vi pular sobre um turista desavisado, cravando as presas em seu pescoço e arrancando seu braço no espaço de uma respiração. Se ele gritou ou sentiu dor, eu não sei, mas tudo o que restou foi um braço há poucos passos do meu pé e uma criatura raquítica sugando o sangue de um cadáver desesperadamente.

Voltei a mim quando Caique apertou de novo a gola da minha camisa, só então percebi que ele já não berrava mais e que eu o apertava forte demais. Olhei ao redor, a pseudo-coisa não se distrairia com toda aquela abundancia de sangue e carne por muito tempo.

— Caique, — sussurrei acariciando seus cabelos, tentando acalmá-lo. — Lembra que você me disse que era um vampiro? Seja um bom vampiro e me mostre que você é muito rápido, sim? Corra até o meu quarto o mais rápido que você puder!

— Eu não... — ele começou a dizer apertando minha blusa ainda mais forte.

— Você consegue, rapaz. — eu sussurrei novamente, sem tirar os olhos da criatura esfomeada. Tentei me mover o mais silenciosamente que pude para a esquerda, tentando sair de seu alcance, mas o maldito ouviu. Ele tirou sua atenção do cadáver e voltou lentamente o rosto na minha direção, lambendo vagarosamente os dedos sujos de sangue. Soltou uma risada baixa e me encarou novamente, avaliando-me.

Completamente assustador.

Sem saber mais o que fazer, desci o Caique vagarosamente, tentando não atrair sua atenção com movimentos bruscos já que ele não parecia dotado de nada além de instintos. Empurrei o moleque para trás de mim e desejei que ele fizesse o que eu mandei. Se aquela coisa pulasse, do mesmo jeito que pulou no turista, em cima de mim... Hah! Eu não teria a menor chance, muito menos eu com o Caique junto. Só aumentaria a quota de cadáveres.

Esperei que o vampiro fosse fazer algum movimento que sugerisse sua intenção de ir atrás do Caique, mas ele não o fez. Sua expressão era quase... Curiosa? Como se estivesse profundamente entretido com as possibilidades de onde poderia me morder primeiro.

Achei que ele poderia ficar assim por um tempo quase interminável, na verdade, segundos arrastaram-se com uma lentidão angustiante, mas, novamente, o barulho o despertou. Atrás dele, meu vizinho começou a berrar alguma coisa como sempre fazia e, sério, nunca me senti tão feliz por isso. O bicho voltou sua atenção para o outro lado, procurando mais carne, acho, mas não viu ninguém próximo. Nesse meio tempo, peguei a única coisa que achei que me serviria de arma. O guidão do velotrol.

Como se pegasse a deixa, a coisa vampira desistiu de me encarar e veio andando na minha direção, quase que com pressa, fitando novamente minha mão ensanguentada. Rezei para que Caique tivesse mesmo corrido até meu quarto pela entrada dos fundos. Na verdade, desejei um monte de coisas. Desejei que a droga do guidão do velotrol fosse, pelo menos, afiada; desejei não ter que ser o terceiro cadáver do dia; desejei que as luzes da entrada da pousada não estivessem apagadas, assim, quem sabe alguém poderia aparecer com uma arma decente para me ajudar se visse o que estava acontecendo; desejei não morrer... Enfim, a lista era grande e eu quase ri da minha desgraça. Quem é tão afortunado ao ponto de fugir da toca dos vampiros e achar um ainda mais feroz na entrada da própria casa?

Enfim, desejei um monte, rezei outros... Mas a pseudo-coisa veio mesmo assim. Seus movimentos tornaram-se mais rápidos e ele pulou em minha direção com tanta ânsia que, quando desviei, ele meteu a cabeça no portão. O que não pareceu atordoar ninguém além de mim. Putz, se uma portãozada na cabeça não era nada... O que um guidão de velotrol poderia fazer?

Corri para o pior lado possível. Para o lado do cadáver do turista. Para o lado de onde não havia nenhuma saída. Oh, quão inteligente eu sou? Bom, ir para mesma direção que o Caique fora e acabar carregando o monstro para dentro de casa também não me ajudaria...

O vampiro não se deteve muito tempo rosnando para o portão, me encarou novamente e soltou uma risada esganada que fez todos os meus pelos se arrepiarem. E cara, é aí que a coisa piora. Dei alguns passos para trás e quase tropecei no cadáver que me agarrou. – Meu Deus, a droga do cadáver agarrou a minha perna! – Obviamente, me desesperei; mas não tive coragem de tirar os olhos do vampiro enquanto a droga do cadáver aproveitava a minha indiferença para cravar os dentes na minha panturrilha!

Putz, é... Eu até acreditaria em apocalipse zumbi, à partir desse exato momento, se eu não estivesse ocupado demais em meter o guidão na cara do turista desfigurado e torcer para que o vampiro esperasse eu esmagar a cabeça dele antes de me atacar.

Pior merda que já fiz, deveria ter deixado a droga do cadáver me mordendo. Melhor, deveria ter chutado a cara do cadáver sem tirar os olhos do vampirinho à minha frente. Porque essa porcaria esfomeada pulou em cima de mim e eu caí... Onde? – Por que droga no mundo eu não poderia ter caído em cima de um anão de jardim ou qualquer outra merda? – Sim, no pior lugar possível! Em cima da droga do cadáver, não tão morto, do turista!

O único braço restante do turista fechou-se no meu tronco e eu imprensei sua cara no chão com o cotovelo enquanto tentava manter a pseudo-coisa, que tentava meter os dentes no meu pescoço, distante com o guidão de um velotrol. Woah... É, com a droga de um guidão de velotrol!

Parte de mim agradeceu aos céus pelo turista não parecer ser um vampiro tão forte quanto o primeiro. Suas tentativas de resistir ao meu cotovelo eram meio débeis e eu teria dado conta dele sozinho, sem dificuldades, se aquele outro não estivesse enfiando os dentes no meu braço direito. Trinquei os dentes, já meio tonto pela dor e pela força que eu estava fazendo para manter o guidão erguido, evitando que suas presas alcançassem os lugares importantes e com um ímpeto tirado do além, consegui chutá-lo, empurrando-o alguns passos para trás.

Desesperado, pulei para frente quase que imediatamente, tentando sair daquela situação. Minha perna latejou mais ainda com o movimento brusco, mas forcei-a a manter-se em atividade. Se já estava difícil com todos os membros funcionando, imagine se eu começasse a dar uma de: não consigo mais ficar em pé?

Ofeguei esperando a próxima investida do vampiro 1, enquanto o vampiro 2 se levantava de um jeito meio esquisito com um braço só. Foi aí que um negócio muito esquisito aconteceu. O vampiro 2 foi o primeiro a vir correndo na minha direção, com suas presas sujas do meu sangue a mostra, mas – Um mas muito feliz, devo dizer. – o vampiro 1 simplesmente arrancou seu braço restante com uma brusquidão que me deixou estupefato. – Se é que eu ainda era capaz de me surpreender com alguma coisa.

O vampiro 2 gemeu e ficou tentando se levantar enquanto o 1 corria novamente para cima de mim. Meti o guidão do velotrol na sua cara, duas vezes, mas ele continuou me atacando enquanto eu tentava desviar de suas investidas, recuando tropegamente. Daí, cara... – Nunca me senti tão feliz por alguém ter morrido e ter virado vampiro e ainda ter tido os dois braços arrancados. – A droga do vampiro 2 pulou nas costas do vampiro 1 e meteu as presas no pescoço dele.

Woah, o Toni era o quê? Um gatinho perto dessas coisas?

Enfim, ao que pareceu, os dois esfomeados estavam disputando a refeição. — Tipo, no caso, eu. — Como achei que fosse acontecer, o vampiro 2 estava levando uma surra. E cara, sem opção melhor, já que o vampiro 2 ia ajudar... Peguei uma das lascas de plástico do velotrol, uma que parecia afiada, bem... Tanto quanto o pedaço de um brinquedo de plástico pode ser afiado, e tentei calcular o momento certo para enfiá-la no pescoço do vampiro 1.

Os dois engalfinhavam-se e quando ambos caíram, o vampiro 1 com a orelha do 2 na mão, eu meti o guidão do velotrol no cabeça do vampiro 1, fazendo-o cair, de cara, por cima do 2 e enfiei, com toda a força que consegui juntar, a lasca de plástico na base do pescoço dele. Machuquei minhas mãos com a pressão que coloquei e, certamente, só aquilo não seria o suficiente, mas, ao me ver, o vampiro 2 puxou a cabeça do vampiro 1, arrancando-a e jogando-a à alguns passos atrás. Detalhe, ele abriu a boca em um diâmetro humanamente impossível e arrancou a cabeça do vampiro 1, com os dentes!

Eu certamente teria me mijado todo de medo e teria saído correndo se...

1) A minha perna não estivesse lascada até o diabo;

2) Se eu não tivesse vomitado tudo mais cedo e ainda tivesse algum resquício de urina no organismo.

3) Não deu tempo nem de respirar quando ele pulou em cima de mim, quanto mais realizar os dois itens acima.

Enfim, ele me derrubou e rolamos pelo gramado. Minha cabeça bateu tantas vezes no chão, enquanto eu empurrava sua mandíbula para cima, que eu já teria desmaiado se não fosse um gramado. Ele berrava um monte e eu tentei loucamente manter seus dentes longe, admito que o fato de ele não ter braços ajudou. Já estava planejando tentar enfiar os dedos nos olhos dele para ver se me arranjava tempo suficiente de, pelo menos, pegar outra lasca de plástico, quando ele simplesmente parou.

Isso mesmo, a coisa deu tilti. Ele se afastou de mim e gritou. Suas pupilas nem eram mais visíveis e suas veias dilataram-se enquanto ele contorcia-se loucamente e tinha espasmos de dor até que... Nada.

Vendo-o imóvel, quase achei que fosse uma piada. Tomei coragem para me aproximar e então constatar o que já havia suposto. Ele simplesmente entrou em colapso e morreu. Não que eu esteja reclamando, mas foi... No mínimo, inédito.

Putz, um zumbi-vampiro-coisa sem braços e uma das orelhas quase me mata e de repente morre de uma doença pós-morte crônica. Ok.

Olhei ao redor vendo se havia alguém por perto. As luminárias artesanais que ficavam dispostas na entrada da pousada estavam quebradas, reparei pela primeira vez. O gramado era tenuemente iluminado pelas luzes da vizinhança, mas nada significativo. Com a adrenalina se dispersando, comecei a ter consciência do quão quebrado eu estava. Poderia ter sido pior, é claro, mas não significa que eu não tenha me sentido menos exausto e dolorido do que estava. Minha mão esquerda sangrava, assim como o corte que se esticava pelo meu pulso que não só se abrira drasticamente, como ainda ganhara um enorme rasgo feito pelos dentes daquela coisa 1. Avaliei minha perna, mas, mesmo com toda a dor, não estava nem de longe tão ruim quanto o braço. Havia apenas alguns pontilhados de sangue no local que o troço 2 enfiara os dentes.

Sentindo-me vivo e muito aliviado por isso, respirei profundamente, mesmo sendo doloroso; tinha certeza de que alguns roxos apareceriam, mas isso era o que menos me preocupava, afinal, haviam dois cadáveres na entrada da minha casa, o que exatamente eu faria com eles? Perdi alguns segundos pensando nisso e sentindo-me tonto, louco para sentar em algum lugar, quando meus olhos focaram-se novamente no velotrol estilhaçado. Se os dois vampiros estiveram ocupados em tentar meter os dentes em mim, era certo assumir que o Caique estava bem, mas... – Realmente rezei para que fosse só um delírio da minha parte considerar tal possibilidade. – Um moleque de dois anos não estaria brincando na frente de casa sozinho. Não com a mãe paranoica que tem. Pior, não sem o chiclete do Luan por perto.

Trinquei os dentes e comecei a percorrer o perímetro da pousada. Vi um casal de turistas conversando animadamente enquanto bebiam cerveja próximo às barracas, alguns metros à frente, e me perguntei se por ventura eles não haviam ouvido uns guinchos desesperados de duas coisas carnívoras.

Meus olhos se cruzaram com o da mulher por alguns instantes e eu não sei quão lamentável pareci aos seus olhos, só sei que ela me ignorou como se eu estivesse profundamente dedicado a fazer cosplayers e isso não fosse da conta dela. Queria que fosse mesmo verdade, o último que fiz foi quando eu tinha quatorze anos e eu, a Tabhita e o nosso primo, Iago, fomos a um evento de anime que teve em São Paulo. Tabhita fantasiara-se de Gasai Yuno, Iago de Naruto e eu de Hellsing. Só que, dessa vez, o sangue que se espalhava pelo meu braço, não era em nada como o sangue artificial que a Tabhita confeccionara para bancar a psicopata. – Em uma mistura muito nojenta de mel, Nescau e corante vermelho. – Enfim, o casal deveria estar completamente bêbado.

Não me detive muito nisso, pois logo vi um copo de vidro caído no chão. Dei mais alguns passos cautelosos, rodeando a laranjeira que fica bem em frente ao meu quarto, e vi. Primeiro a mão e depois, finalmente, a tia Lídia caída com uma mistura de sangue grudando-se aos seus fios de cabelos castanhos.

Gelei completamente, vampiros são uma coisa anormal, mas até então eu os encarava como criaturas que podem matar o filho do vizinho, ou algo assim... A perspectiva de que a tia Lídia estivesse... Urgh! Enfim, corri e tentei medir seu pulso. Atrapalhei-me um pouco no início, só então percebendo que estava tremendo, mas cosegui sentir o fluxo frágil do seu pulso. Imediatamente procurei o celular, objetivando ligar para o hospital ou, sei lá... Quando me lembrei de que o havia largado descarregado na casa da Ângela.

— Que droga... — resmunguei indo em direção a entrada lateral da pousada, pela cozinha, bem a tempo de dar de cara com a minha mãe no vão da porta.

Ótimo time!

— Júnior! — minha mãe praticamente berrou, lançando-me um olhar assustado e avaliador de cima a baixo.

— Mãe! Mãe, eu estou bem. — eu disse tentando fazer com que ela me soltasse. — Precisamos ligar pro papai, pro médico, pro hospital... A tia Lidia está pior!

Depois disso o caos desencadeou-se.

Meu pai surgiu do nada de um lado, pelo o que minha mãe disse, ele estava fazendo algumas pesquisas no laboratório e socorreu a tia Lídia, enquanto a polícia e um alvoroço de gente surgiu na entrada da pousada, fazendo questionamentos quanto aos cadáveres e etc. etc. etc. – Aparentemente, o meu amado vizinho, com péssimo gosto musical, ligou para a polícia depois de ver uma agitação suspeita na frente da minha casa. Ótimo, não? Porque não podiam ter chegado há uns cinco minutos atrás?

— Ele te atacou? O Sr. Cleber Ribeiro afirma tê-lo visto parado enquanto o Sr... — o policial parou por um momento para ler o nome escrito no papel. — Alexej Novák contorcia-se de dor e...

— Morria. — completei impaciente, seguindo-o até a entrada da pousada, onde os cadáveres já estavam dentro de sacos pretos, prontos para serem transportados para a mesa do delegado... Quem sabe? — É isso mesmo. Você já deve ter visto, não é? — eu disse indo até um dos cadáveres e abrindo o zíper do saco. — Eles não são... — Quando vi o cadáver perfeitamente humano do vampiro 1, sem pústulas nem pele cinza nem presas... Cogitei a possibilidade de isso ser mais uma vez o meu cérebro me pregando uma peça como acontecera no beco. Mas optei por respirar fundo ao invés de bancar o surtado.

— Estou esperando, rapaz. Eles não são? — ele inquiriu em um tom ríspido.

— Ei, policial, ele é só um adolescente! Faça o favor de esperar o momento certo para fazer essas perguntas! Você por acaso acha... — interviu minha mãe que começou a tecer um intrincado discurso sobre a juventude, traumas infantis e a conduta inadequada do policial.

Quase fiquei com pena dele. Quase.

Aproveitei o tempo, enquanto olhava outro policial puxar o zíper da minha mão e fechar o saco de lona novamente, para começar a inventar uma história. Sim, porque para dois cadáveres eu teria que arranjar uma história. Não era como se a verdade fosse uma opção, os caras nem tinham mais presas! Seus corpos tinham voltado ao normal!

Dessa edificante experiência, ao menos, posso tirar alguns pontos úteis. Existe mais de um tipo de vampiro.

1) Os que se parecem e agem como humanos, mas comem carne. Como o Toni.

2) Os que viram monstros insaciáveis e insanos de pele cinza e, aparentemente, preferem sangue. Como o vampiro 1 e o vampiro 2.

3) Os que se parecem humanos e agem como humanos, mas bebem sangue. Como a Gabrielle.

Ou talvez esses três tipos sejam só estágios diferentes da vida vampiresca... Ok, não tem nexo. O tipo três parece ser o tipo um com sede enquanto o tipo um parece ser o tipo três com fome. Já o tipo dois é bem distinto. Nem se quisesse se misturaria aos humanos. Era pouco mais que um animal, não havia nenhum pingo de intelecto ali no meio. Portanto, a única coisa concreta que pude concluir, foi que se uma pessoa morrer por causa das mordidas de um vampiro tipo dois, ela vai se transformar em um tipo dois, em segundos. – Pelo menos, acho que morrer seja um pré-requisito, já que tanto o vampiro 1 quanto o 2, me morderam e eu não me sinto nenhum pouco com fome, superpoderoso ou descontrolado. – Mas ela, provavelmente vai entrar em colapso e morrer de novo, alguns segundos/minutos depois. Ou o vampiro 2 ter morrido foi uma exceção?

Enfim, a questão é... Se um vampiro transformado por um tipo dois está fadado a morrer, porque o vampiro tipo 1 não morreu? Há duas possibilidades. Ou o tempo de vida varia de vampiro tipo dois para vampiro tipo dois ou o vampiro 1 foi criado de uma forma diferente do vampiro tipo dois. Se esse for o caso, talvez vampiros criados em condições especiais como o 1, sejam estéreis. – Quero dizer... Não que não possam ter filhos, mas e se eles não puderem transformar outras pessoas? Quero dizer, não uma transformação que dure mais que alguns segundos/minutos? Ok. Acho que viajei, mas pensei nisso tudo enquanto estava no carro da polícia à caminho da delegacia.

Interrogaram-me por umas duas horas, mesmo enquanto uma senhorinha de uns cinquenta anos fazia uma sutura no corte do meu braço.

— Sr. Delegado, — eu disse pacientemente, como quem fala com uma criança. — Como eu já te disse em todas as vezes anteriores, esse cara, o Eraldo... — Esse é o nome do vampiro 1 quando era vivo.— tinha acabado de arrancar o segundo braço do Alexej quando eu cheguei.

— E ele arrancou os braços do turista tcheco com um pedaço de velotrol?

— Exatamente! — eu disse tentando não parecer estar falando a maior merda do universo. — Acho que foi isso o que ele fez, não tenho certeza... Já que cheguei no fim da... — desviei o olhar, fingindo estar revivendo um momento traumatizante, o que não foi difícil... Porque foi traumatizante mesmo, apesar de eu ter mentido descaradamente na descrição dos fatos. — Vocês sabem? No fim da parte em que ele arrancava o braço do tcheco.

— E depois ele arrancou a orelha?

— É.

— Com os dentes?

— Huhum. — eu resmunguei vagamente, exausto.

— Aí veio a parte em que ele te viu e... — continuou o delegado com o mesmo ar de incredulidade. Não o culpo por isso.

— Pulou em cima de mim, me mordeu... Também fez um rasgo no meu braço com um pedaço de plástico.

— E?

— E... Como eu já disse, o turista tcheco lá... Levantou.

— Mesmo sem os dois braços.

— Mesmo sem os dois braços. — confirmei, tentando parecer inexpressivo frente ao semblante indignado do delegado.

— E ele atacou o Eraldo?

— Sim, pulou nas costas dele e de algum modo o Eraldo morreu. Nãos ei direito, porque estava zonzo pela pancada na cabeça que havia levado. — eu disse sabendo que era perfeitamente plausível, já que eu estou mesmo com um galo na cabeça.

— E no momento em que você estava zonzo, um cara sem braços simplesmente arranco a cabeça do Eraldo?

— Não sei como foi, mas acho que é isso aí mesmo.

— E como explica o que o seu vizinho disse?

— Sobre a pessoa sem braços agonizando? — eu inquiri, ciente de que o cara estava tentando me vencer pelo cansaço. Não faço ideia do que ele esperava ouvir. Talvez que eu fizera uma cerra elétrica aparecer, cerrara os braços do turista e arrancara a cabeça do vampiro 1. — Depois do Eraldo ter morrido, ele tentou se levantar, falou algumas coisas em outra língua e...

— Morreu.

— É.

— Então, já terminou, delegado? — perguntou minha mãe pela milésima vez. Não sei porque milagre no mundo ela ainda não tinha pulado no pescoço do cara. — Já estamos aqui há mais tempo do que acharia necessário, sem um advogado e logo após o meu filho ter presenciado duas mortes horríveis!

— Sim, sim... — o delegado disse com descaso e eu já estava me preparando para outra leva das mesmas perguntas quando a porta da pequena saleta abafada se abriu.

Uma lufada de ar chegou até as minhas costas e eu suspirei, torcendo para que não fosse outro policial indo cochichar algo no ouvido do delegado Borges. Mas cara, a voz que eu ouvi foi muito nítida e conhecida. Mais que isso, me deu a certeza de que as coisas seriam resolvidas.

— Boa noite. Acredito que você seja o encarregado da situação, Sr...?

— Borges. — respondeu o delegado meio inseguro, endireitando sua postura. Cara, entendo bem o por quê. Victor tem esse efeito nas pessoas.

— É um prazer, eu sou o advogado deles. — ele disse me lançando um breve olhar impassível e cruzando o recinto para apertar a mão do delegado.

— Oh, Victor! — minha mãe disse abraçando-o em seguida. — Que bom que está aqui... Tantas coisas aconteceram...

— Sim. — ele disse com uma expressão afetada. — A Tabhita está desaparecida, já providenciei para que a localização do celular dela seja encontrada por GPS. Agora... — ele disse voltando-se para mim. — Não esperava ter que lidar com homicídios.

Eu não disse nada, não tenho uma relação exatamente boa com o Victor. Apenas sustentei o seu olhar, me sentindo farto de maluquices.

— Essa seção já está durando tempo demais, delegado. Deixe que meus clientes se retirem. Não há embasamento suficiente para que qualquer um deles seja acusado, de fato. — Victor disse ainda me encarando e eu senti minha espinha gelar, ao mesmo tempo em que pensava na informação que ele soltara mais cedo.

O GPS do celular da Tabhita. Meu Deus, eu nem fazia ideia que ela tinha um aplicativo desses. Acho que me senti relaxar pela primeira vez no que me pareceu muito tempo. De algum jeito as coisas vão se resolver, afinal, é do pai da Tabhita que estamos falando.


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Notas finais do capítulo

Hehehe... Amei escrever esse cap! =)
E vcs? Gostaram???
Bjuus!



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